Não há muito tempo, os recordes eram estanques na sua génese, no sentido de não haver assim tantos nos quais se podiam engavetar as jogadoras. Podia ser a com mais jogos pela seleção, a que marcava mais golos, quem lograva fazê-los na maior sequência de partidas seguidas ou a que mais Bolas de Ouro coleciona, tudo distinções individuais no futebol em que vivalma ganha sozinha. Com o seu iminente descalçar de chuteiras, entre os vários recordes que juntou na carreira, Alex Morgan tem um em particular que longe está de ser o mais espampanante ou reluzente na estima convencional, mas lhe assenta à medida para ilustrar o que representa para o futebol.

É a mãe que mais golos (16) marcou pelos EUA.

O recorde é de Alex Morgan, todas as bolas foram rematadas pelos seus pés ou pela sua cabeça, a goleadora é ela, porém a estatística tem um cariz coletivo, uma dimensão que a extravasa e de certa forma também a supera, tendo uma natureza condizente ao que a norte-americana se esforçou por representar no futebol feminino ao longo dos anos. Mais do que ser a quinta melhor marcadora (123 golos) da seleção com maior sucesso (quatro Mundiais e cinco medalhas de ouro olímpicas) na história, de a própria ter ganhado dois Campeonatos do Mundo de seguida, a voz nunca lhe tremeu, nem os dedos vacilaram, quando foi preciso falar ou teclar pela luta por melhores condições para as mulheres que jogam futebol.

A norte-americana que se veste há muito de megafone, pronta a magnificar várias reivindicações de uma geração de jogadoras, vai, aos 35 anos, deixar os relvados. Será seguro deduzir que demorará muito mais tempo a abandonar a exigência pública de mais condições para o futebol feminino. A despedida de Alex Morgan acontece já na madrugada de segunda-feira (1h), numa partida entre o San Diego Wave que representa e o North Carolina Courage da liga do seu país. Não será um adeus com a camisola dos EUA, que talvez fosse mais condigno, por dois motivos, um mais condicionante do que o outro.

Face à idade e à forma recente, a avançada vinha a perder protagonismo na seleção, sobretudo desde a chegada de Emma Hayes, inglesa que assumiu o comando da equipa pouco antes dos últimos Jogos Olímpicos. E porque Charlie, a sua filha nascida em 2020, está a caminho de ser a irmã mais velha de alguém e Alex Morgan, além da já algo arredada das preferências da nova selecionadora, preferiu não ter de aguardar mais um mês até a seleção dos EUA lhe conceder honras de ter uma despedida em campo com o seu lucky number 13 de sempre estampado nas costas da camisola (os próximos encontros são apenas em outubro, daqui a mais de um mês).

Foram duas novidades embrulhadas no vídeo que a jogadora publicou, na quinta-feira, a anunciar a sua reforma. Morgan sumarizou os seus feitos, falou nos Mundiais e nas medalhas de ouro, confessou que “sentiu no coração e na alma” desde o início do ano que este seria o seu último, teve obviamente palavras para sua carreira ímpar e realçou como deu “tudo por esta modalidade”, tendo recebido “em troco mais do que alguma vez” imaginou. Também deixou a sua versão do que define o sucesso - “nunca desistir e dar o máximo” - e, dando uma pausa a ela própria, estancando um quê de emoção, frisou como deu “tudo” no “incansável esforço pelo investimento global no desporto feminino”.

O fecho da cortina na vida com chuteiras de Alex Morgan haveria de entroncar, por boa inevitabilidade, na sua empatia por causas maiores do que ela.

A cortejar a ribalta desde 2010, quando foi uma jovem californiana de pele habituada ao sol e calor a ter uma estreia pela seleção empapada em neve, no friorento estado do Utah, abraçou-a, no ano seguinte, ao marcar um dos golos da vitória na final do Mundial, contra o Japão, sendo a mais nova da equipa, Morgan usou e dispôs do alcance que construiu na sua personna pública para bater o pé, uma e outra vez, na exigência por melhores condições para as futebolistas americanas.

Em 2016, foi uma das cinco internacionais que se assinaram um protesto enviado à Equal Employment Opportunity Commission, uma instituição governamental, que serviria de base para a acusação formal que em 2019 teve todas as jogadoras da seleção a acusarem a Federação de Futebol dos EUA de discriminação de género. Ela, com elas, jogou e conquistou um Campeonato do Mundo enquanto tinham uma disputa judicial com quem lhes pagava por esse esforço. A lista de feitos futebolísticos de Morgan é vasta, a dos louvores que se lhe reconhecem fora do campo talvez ainda mais.

Em 2022, enalteceu “o momento de orgulho” que foi a federação concordar igualar os prémios de jogo pagos à seleção feminina com os que praticava na equivalente masculina. “O que esperamos agora é que a FIFA faça o mesmo nos seus torneios. É isso que nos propusemos a fazer. Igualdade em todas as frentes”, disse então Morgan. Antes, em 2020, juntara-se a Megan Rapinoe, ajoelhando-se durante o hino nacional dos EUA em protesto contra a violência racial da polícia do país. A sua atenção nunca se cingiu ao cosmos da realidade norte-americana, a nação-bandeira no futebol feminino.

O ano passado, o Lyon, supostamente vanguardista na estima do futebol feminino, suspendeu o salário de Sara Björk Gunnarsdóttir enquanto a islandesa esteve grávida. A jogadora pôs o clube em tribunal e Alex Morgan, ela própria mãe desde 2020, sentiu-se “compelida” a deixar o seu apoio à jogadora no X, escrevendo na rede social cinco coisas em que “no mínimo” o clube deveria apoiar uma futebolista com um filho. A própria americana, em 2016/17, representara a equipa francesa, com a qual ganhou a Liga dos Campeões. Na segunda aventura europeia, seria Morgan quem bateria à porta dos dirigentes do Tottenham pedindo-lhes para deixarem a equipa feminina usufruir exatamente dos mesmos campos de treino indoor que os homólogos masculinos usavam.

A atenta preocupação da ‘Baby Horse’, assim alcunhada nos primeiros tempos na seleção pelo estilo galopante de avançada que sempre foi, cheia de desmarcações e remates na passada, não desvaneceria com a idade. Em 2023, antes do Mundial da Nova Zelândia, quando já era uma das capitãs dos EUA a meias com Megan Rapinoe, criticou o “bizarro” rumor de que a FIFA estaria a negociar um contrato de patrocínio para o torneio com a Arábia Saudita, país onde a homossexualidade é ilegal e os direitos das mulheres estão sujeitos à aprovação dos maridos. “Nem eu seria apoiada e aceite se fosse lá, por isso não entendo e daí que toda a gente tenha criticado porque, moralmente, não faz sentido”, argumentou, sem papas a estorvarem-lhe a língua.

Dona de cara que as câmaras apreciam e heterossexual num mundo onde, ao contrário do dogmático equivalente masculino, é mais aberto a assunções públicas de relações homossexuais, Alex Morgan cedo defendeu os direitos LGBTQI+, criticando publicamente, já este ano e ainda enquanto capitã da seleção, Korbin Albert, jogadora convocada para os Jogos Olímpicos e autora de partilhas nas redes sociais a defenderem que ser gay “é errado”. Sem nevoeiro na cabeça a afetar a distinção entre o certo do errado, Morgan fez a carreira com pouco, se é que algum receio, em assumir posições públicas sobre assuntos sensíveis, coisa que a maioria dos futebolistas, no masculino, fogem a sete pés de fazer até em temas superficiais.

Navegando com mestria nessa exposição, amealhando títulos e marcos no campo, a Alex Morgan jogadora foi crescendo à medida que a sua influência enquanto voz sábia se expandiu no futebol feminino que a acolheu como figura planetária após muito caminho ser desbravado por Marta, ícone mais pela absurdidade de talento, pelos dribles mágicos e pela aptidão extraterrestre em ser superior a todas as adversárias no seu auge. Na primeira década deste século, a brasileira engrandeceu-se ao ponto de ser o maior íman sedutor de atenções que a bola chutada por mulheres já teve. Quando essa base se criou, apareceram Megan Rapinoe ou Alex Morgan, e Alexia Putellas e Aitana Bonmatí depois delas.

Reformada que está Rapinoe, prestes a retirar-se agora Morgan, o futebol jogado por mulheres perde duas vozes que sempre apareciam a estimá-lo, a gritá-lo, nos momentos em que a bola pontapeada por elas mais precisou.