O financiamento do Estado ao desporto tem estado sob especial atenção por virtude da inesperada “surpresa” do respetivo valor no Orçamento de Estado para 2025. O Governo entregou o OE no dia 15 de Outubro, no dia seguinte disse que ia retificar a “inconsistência”, mas ainda não o fez. E agora, depois da aprovação na generalidade, só poderá ser o Parlamento a cuidar do desporto e a assegurar um OE que o apoie e respeite adequadamente. Estou convicto de que isso vai acontecer.

As minhas opiniões e preocupações sobre esta matéria já foram expostas aqui extensivamente, portanto pretendo agora avançar e usar este espaço para examinar com atenção o passo seguinte. Consideremos a forma como o Estado confia aos seus parceiros institucionais - clubes, associações, federações - os euros que o OE reserva para o desporto e que, sendo sempre escassos, são essenciais para o seu desenvolvimento, nalguns casos mesmo a sua sobrevivência.

É normal, como regra do Estado de direito que somos, que esses financiamentos se fixem, depois de ponderados e decididos, em contratos que estabelecem os mútuos deveres e as necessárias obrigações. Trata-se aqui de dinheiros públicos e importa que se acompanhe e fiscalize o seu destino e aplicação. São os chamados contratos-programa que a Administração Pública, por via do Instituto Português do Desporto e Juventude, celebra com os seus parceiros para formalizar os seus financiamentos, nos termos da Lei dos Contratos-Programa de Desenvolvimento Desportivo.

O que não é normal é que tais contratos contenham cláusulas com exigências injustificáveis e inacreditáveis que, sendo uma vergonha para a Administração Pública que as impõe, são também uma humilhação para quem dela depende e a tal se sujeita para receber ajuda. E o que espanta mais ainda é que isto aconteça sem luta, com total ausência de reação! Manda quem pode, obedece quem precisa. Para ilustrar, dois exemplos, retirados de uma simples visita ao site do IPDJ, onde constam todos os contratos de financiamento com clubes, associações e federações. Vai do absurdo ao inaceitável…

1- O ABSURDO. Encontremos um contrato no qual o IPDJ concede a uma associação desportiva do Norte do país uma comparticipação financeira no âmbito da medida “Reativar Desporto” para promoção das suas atividades desportivas. Nesse contrato, assinado pelos respetivos presidentes do IPDJ e da associação, constam as obrigações a que se compromete quem recebe a comparticipação.

Entre outras, as de: a) apresentar relatório final de execução das atividades, acompanhado de balancete analítico do centro de custos, relatório e contas, com a ata da Assembleia Geral e sua aprovação; b) apresentar comprovativo da execução da despesa; c) incluir no seu registo contabilístico o registo adequado dos proveitos referentes aos apoios concedidos; d) facultar, sempre que solicitado, na sua sede social, para validação técnico-financeira, todos os documentos da despesa, legal e fiscalmente aceite. Há mais, mas fiquemos por aqui.

Já dá para perceber o poder e o peso burocrático da Administração Pública, vertido nas exigências contratuais a uma associação desportiva que lhe pediu ajuda. O nome desta associação está disponível no site do IPDJ, basta consultar. Ofereço desde já uma pista aqui, na forma do ridículo montante de financiamento concedido... E escrevo por extenso, para que ninguém imagine erro editorial ou de escrita: trezentos e vinte e cinco euros. Sim, 325€!

Eu não sei se o presidente da associação em questão teve de ir do Norte a Lisboa assinar o contrato em pessoa. Se teve, esgotou em ida-e-volta o financiamento público na gasolina, nas portagens e na “bucha” da Mealhada! Isto não é ficção, é crua e absurda realidade. E apenas um exemplo.

2- O INACEITÁVEL. Encontre-se também neste transparente e informativo site um outro contrato-programa, no qual o IPDJ concede a uma federação desportiva a sua comparticipação financeira para o desenvolvimento desportivo da respetiva modalidade.

Nele constam as obrigações que, perante a administração pública, têm de ser cumpridas pela federação como contrapartida pelo financiamento a que se refere o dito contrato. De entre as inúmeras obrigações, está a de fazer certificação das suas contas por um revisor oficial de contas.

Ora, as federações desportivas tendem a refletir a dimensão nacional das respetivas modalidades e, por isso, recebem naturalmente diferentes comparticipações financeiras do Estado, que vão desde 2 ou 3 milhões de euros/ano para as maiores, até 20 ou 30 mil euros/ano para as mais pequenas. Será compreensível e de bom senso que sejam diferentes as exigências contratuais para parceiros tão diferentes e com meios tão díspares.

Por isso, na legislação dos contratos-programa - que bem conheço, pois datam de 2009 - se estabelece (no seu artigo 20) que não carecem de certificação legal por revisor oficial de contas quando os apoios concedidos são inferiores a 50 mil euros. Fui ler alguns dos contratos-programa de federações com comparticipação inferior aos estipulados 50 mil euros e no entanto lá se escreve e exige “Certificação Legal de Contas”. E o Estado, que fez a lei, sabe que não é aplicável! Um lapso destes, mesmo que se confirme ser simplesmente administrativo, é inaceitável.

O resultado real é que, não sendo legalmente obrigatório, estas mais pequenas federações se veem obrigadas a gastar - e a efetivamente “perder” - 10 ou 20% do montante que recebem do Estado para cumprir uma “falsa” exigência contratual. Há aqui sério trabalho a fazer, quer pela administração pública quer pelo movimento associativo desportivo.

Estas práticas, absurdas e claramente inaceitáveis, não são de hoje, são já de há anos, e merecem uma justificada e urgente revisão.