
Antes de se sentar num banco da Premier League, Gonçalo Santos aprendeu a escutar e interpretar o silêncio. O silêncio de um balneário magoado. O silêncio ensurdecedor que se segue a uma derrota. O silêncio interior que só se compreende quando se olha, de verdade, para dentro do grupo e de si.
Não começou com vitórias fortes, flashes vistosas ou estádios cheios. Começou com perguntas. Como liderar um grupo? Como reagir à frustração? Como treinar o mental e o «invisível»?
Numa altura em que tanto se fala da importância do trabalho mental por parte dos jogadores, decidimos apontar o foco noutra direção, no caso para o banco de suplentes.
Esta é a história de um treinador que decidiu preparar-se bem antes de ser chamado ao cargo com maior escrutínio no desporto-rei. A história de um treinador que percebeu que o jogo se ganha muitas vezes antes mesmo de começar - seja nas rotinas mentais, nos «apontamentos secretos», ou nos ensaios para entrevistas que ainda nem planeadas estavam.
Esta é a história de Gonçalo Santos. E da importância de Paulo Gama, coach e treinador mental, que acompanhou e ajudou o ex-jogador a potenciar as suas maiores qualidades e defeitos. Trabalho esse que se espelhou num salto estratosférico dos sub-19 do Estoril para o topo do futebol internacional, em Craven Cottage, em pouco mais de um ano.
O primeiro treino foi interno
O início de Gonçalo Santos como treinador não teve câmaras, atenção ou milhares de olhos apontados a si. O início fez-se nos juniores do Estoril Praia, no primeiro ano como interveniente direto fora das quatro linhas. E percebeu logo que treinar ia muito além do que se dizia e explicava no «quadro tático».
«Eu tinha de perceber o jogador, mas também tinha de perceber como é que ele reagia. Quando o jogador não jogava, quando era substituído, quando eu próprio estava frustrado com o treino... tudo isso me passava um bocado ao lado.»

Foi aí que surgiu a primeira grande mudança: começou a ser acompanhado por Paulo Gama, especialista em coaching e desenvolvimento mental - e a sua equipa formada por Paulo Ferreira e Carolina Taborda. O objetivo não era resolver uma crise, era evitar que ela chegasse.
Gonçalo procurou ajuda quando ainda estava bem. E isso, como destaca Paulo, é raríssimo. «Mostra a sua humildade e vontade em ser melhor. Queria ter mais consciência. Queria estar preparado para o que aí vinha.»
Começaram a trabalhar em sessões semanais. Comunicação, linguagem corporal, análise de perfil, gestão emocional, visualização. Gonçalo sentia que os jogos já tinham acontecido antes mesmo destes se realizarem: «Era como se aquele momento não fosse novo porque eu já o tinha ensaiado. Isso trazia-me calma.»
Ensaiar o futuro
Quando surgiu a oportunidade como adjunto no Casa Pia, Gonçalo preparou-se como quem ia para uma final: «Treinámos bastante a entrevista», recorda Paulo. Que imagem queria transmitir? Que postura adotar? Como apresentar-se perante uma equipa técnica profissional? Tudo questões que passaram a inundar o quotidiano do técnico.
A entrevista correu bem. Gonçalo entrou como adjunto de Filipe Martins e, mais tarde, manteve-se com a chegada de Pedro Moreira. A grande mudança chegou quando os casapianos ficaram novamente sem treinador. Sem aviso, Gonçalo ficou no meio do furacão - mas com a confiança de toda a estrutura.
Paulo lembra-se bem: «Era a altura dele, não havia por onde falhar. O balneário estava com ele... o cozinheiro, o motorista, o senhor da cantina, toda a gente estava com ele. O respeito conquista-se todos os dias e não se finge.»
«Não era só sobre treinar. Era sobre escutar. Saber o que dizer e, mais importante ainda, como dizer. O Gonçalo percebeu que liderar implicava conhecer as pessoas. O que funciona com um, pode não funcionar com outro», explica. E foi nesse detalhe que aplicou tudo o que tinha treinado: como manter o grupo unido, gestão de expectativas, comunicar com assertividade, entre muitas outras coisas.
Sem esperar, tornou-se o ponto de estabilidade do clube. E isso não foi ao acaso - foi fruto da grande preparação que realizou. «Escrevia tudo», conta Paulo Gama. «Tinha um caderno onde apontava o que faria se fosse o treinador principal. Depois comparava. Era um treino. Um treino para o futuro.»
Premier League, o palco maior
Entrar no Fulham, na Premier League, não foi só um salto de contexto. Foi também um teste àquilo que já tinha interiorizado. Mais ritmo. Mais pressão. Mais olhos em cima. «Ali, tudo é amplificado. E o que pode desequilibrar são os pequenos detalhes», explica Paulo Gama. «Mas o Gonçalo já levava estrutura. Já sabia quem era. Já tinha enfrentado o desconforto.»

Hoje, faz parte de uma das equipas técnicas mais estáveis da liga inglesa, com Marco Silva ao leme, e venceu recentemente o Liverpool, quebrando uma sequência de mais de 20 jogos sem perder dos reds - que muito provavelmente serão campeões.
E se o trabalho mental já não é tão frequente como no início, o efeito, esse, mantém-se intacto. «Aquilo que treinou antes ficou com ele. A forma como lida com a derrota, com o erro, com a crítica... Tudo isso foi trabalhado. Ele chegou lá com base, com ferramentas. E isso faz toda a diferença.»
Gonçalo confirma: «Antes, perdia e ficava dias sem conseguir desligar. Hoje, consigo respirar. Sei que o futebol não é vida ou morte. Parece, mas não é.»
A grande lição
A maior lição de todo este caminho talvez não tenha sido tática. Foi humana. «O treinador sofre muito sozinho», diz Gonçalo. «É sempre o primeiro a ser culpado, o primeiro a cair. Nas redes sociais, no estádio, em todo o lado. E, se não tiveres estrutura emocional, acabas partido.»
Para Paulo Gama, é um problema estrutural. «A sociedade e o futebol ainda olham para o treino mental como um sinal de fraqueza. Ainda existe muito estigma. Mas os melhores não são os que não sentem nada. São os que sabem o que sentem e sabem o que fazer com isso», disparou.
E o caso de Gonçalo é prova disso. Um treinador que treina a si próprio com o mesmo rigor com que treina os outros. Que começou a preparar-se para liderar muito antes de começar, efetivamente, a fazê-lo. Que chega à elite com o tipo de força que não se mede nos resultados: a força de se conhecer.
«Porque um dia perdes. E se nesse dia não estiveres preparado, é aí que o jogo começa verdadeiramente.»
