É isso mesmo, disse-o a alguém na semana passada e repito. Enquanto durar este campeonato do mundo de clubes só escrevo sobre râguebi, por pirraça. Que é, aliás, a forma ingénua da justiça. Sim, senhor. Só sobre râguebi. Como poderia ser diferente? E o que poderia fazer um adepto assim? Um info-excluído como eu? Um desgraçado sem paypal? Encurralado entre a RTP Memória e a solidão do Frei Luís de Sousa?

Bem. Não poderia fazer grande coisa, eis a verdade. Se não fosse sobre râguebi seria sobre o quê? Canoagem? Ciclismo? Pois seja. O Fernando Pimenta teve um desempenho notável. E o João Almeida também. Dois nomes de heróis. Dois nomes de anónimos.

Há qualquer coisa nestes patinhos feios, não se sabe o que lhes deu, meteram-se nuns desportos que ninguém liga. É como se fossem os sobreviventes dessa primeira nobreza que o desporto ensinou ao mundo. Essa ideia esplêndida segundo a qual o desporto é uma actividade maravilhosamente inútil, sem que a sensatez o justifique. O desporto como alívio do fardo da vida. Como a crença de que o corpo e alma são a mesma totalidade e que a saúde de um decorre da saúde do outro.

Tudo ideias incompreensíveis. Hoje, pelo contrário, estranha-se que alguém empreste tanto esforço e dedicação a modalidades exóticas, sem o aparato financeiro e o estrondo mediático do futebol. Num mundo de expositores, em que tudo o que se faz só tem existência na medida em que é exibido e visto, quem se torna conhecido por brilhar numa modalidade obscura, não pode ser bom da cabeça. Ou é mártir, ou é génio, ou é os dois.

Toda a gente devia levantar-se e aplaudir sempre que ouvissem os nomes de Fernando Pimenta e João Almeida. São os campeões dos treinos solitários. Da dieta espartana. Do selim gasto; do remo partido. São os heróis das manhãs de Domingo que, enquanto os outros dormem, lá vão eles por esse rio acima e esse alcatrão adentro. Não saem à noite ao Sábado. Vão deitar-se cedo. Num mundo eléctrico e nocturno, estes homens vivem do Sol que Deus lhes dá, como se fossem menonitas dos Olimpos. Há quem emita um comunicado por cada vez que espirra. E depois há Fernando Pimenta e João Almeida que fazem do silêncio modo de vida: treinam, sofrem, ganham e perdem, tudo na mais copiosa discrição.

É uma gente que não tem o prestígio e a fama até serem mesmo os melhores dos melhores dos melhores. E mesmo assim, caro leitor, mesmo assim, se perguntar ao primeiro sujeito com quem se cruzar depois de ler este texto quem é Fernando Pimenta ou João Almeida, a reacção será aquele ligeiro entortar de focinho que os cães fazem quando tentam perceber alguma coisa. Como se tivesse tossido ou como se não tivesse dito nada.

Não bastava terem de adquirir o próprio equipamento anos a fio, pagar as despesas para ir a torneios e pedir licenças aos patrões. Ainda têm de perseverar perante a ignorância de todos quantos endeusam o primeiro pré-adolescente que dá uns biqueiros na bola do seu clube. Todos sabem esta verdade atroz, mas ninguém a diz e é preciso fazê-lo: no futebol basta ser um Secretário para passar ao estatuto de Deus. Secretário: foi um jogador; e foi um cavalo.

Mas os nossos heróis têm nome de homens adultos. Com peso, gravidade e dignidade civil. Por isso repita, caro leitor. Repita como se estivesse a invocar a ladainha dos Santos. Como se estivesse a entoar os nomes de Parsifal e Galaaz, Rolando e El Cid, Artur e Godofredo de Bulhão. Repita para não se esquecer: Fernando Pimenta e João Almeida. Fernando Pimenta e João Almeida. Fernando Pimenta e João Almeida.

Enquanto isso, na América, um conjunto de meninos mimados e primas-donas sobrevalorizadas dão uns chutos nuns estádios, com investidores nas bancadas em vez de adeptos. Parece que o Benfica venceu ontem o Bayern. Pela primeira vez. Devia ser motivo para 14 crónicas. Mas não conta.

O que interessa de verdade, amigo leitor, é que ninguém sabe quem são os verdadeiros heróis. Isso é injusto e precisa ser reparado. Se barulho é a única coisa que este mundo ouve, então façamo-lo: Fernando Pimenta e João Almeida. Fernando Pimenta e João Almeida. Fernando Pimenta e João Almeida.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.