
A destreza bípede de Kvaratskhelia é ímpar. Recebeu a bola na área, rodeado por maralha, reduzidas as suas possibilidades a um espaço curtíssimo, mas, com pézinhos de lã, desvia a bola do adversário, deixa-a na chuteira esquerda e o remate, cheio de jeito, pinta uma curva no ar que sobrevoa o guarda-redes para entrar na baliza. Embelezado o golo, ido o Parque dos Príncipes à loucura, pouco tardou a que as modernices falissem a jogada por detetarem o calcanhar do barbudo georgiano em fora de jogo. O Paris Saint-Germain estava a ganhar e de repente já não, frustrado pela tecnologia.
O futebol não tem vagar para deceções, o encontro prosseguiu rápido, ninguém realmente com cara de incómodo pelo golo anulado. Vivalma sabia, de facto, o simbolismo proporcionado pela perfeita trajetória do remate do barbudo Kvaratskhelia: seria o único a escapulir-se à envergadura do albatroz posto na baliza do Liverpool. E ambivalente foi a bola que entrou ser a que não valeu. O PSG faria 22 remates e nenhum superaria Alisson Becker fora aquele aos 22 minutos, coincidência dada pelo relógio para uma noite a provar as necessidades exigidas na Liga dos Campeões.
Na prova que mais decanta a qualidade e a filtra ao ínfimo detalhe, em Paris encontraram-se provavelmente as equipas mais em forma na Europa. Perdeu, por 0-1, com golo aos 87' de Harvey Elliot, a que não perdia desde novembro, vinda de 10 vitórias seguidas. Ganhou a que vai embalada para a conquista da Premier League, mas, em semanas recentes, aparentava titubear um pouco. E na hora e meia parisiense, o algodão da relva tirou a limpo várias conclusões sorridentes para o PSG.
Viu-se o poderoso Nuno Mendes, pulmão humano incansável, a amestrar à nulidade Mohamed Salah, egípcio dos 30 golos e 22 assistências que criou zero remates, dribles ou chances de golo. É verdade que Ousmane Dembélé, demónio delgado das fintas e acelerações a quem o futebol parecia indiferente até esta época, infernizou adversários e pediu, esbracejando, que os adeptos fizessem barulho. O sucessor dos Mbappés, Messis e Neymars como desequilibrador de serviço, o mais terreno Barcola, atirava-se em carrinhos na relva para roubar bolas. A supercola de Vitinha mandava na bola, mágico a escondê-la de toda a gente enquanto a ia pondo bem à mostra de quem acha possível tirá-la dos seus pés. Numa frase que embrulhe isto tudo, o PSG foi melhor, dominou, encostou o Liverpool à sua área, fartou-se de rematar à baliza.
Ganhou em muita coisa, mas perdeu no que importa. “Creio estar seguro de que não houve uma partida esta temporada em que o Liverpool tenha ido para o intervalo com 0,0 de expected goals na primeira parte”, queixou-se Luis Enrique, o seu treinador, socorrido da estatística que afere a probabilidade de oportunidades de golo criadas resultarem em golo, tentando medir a sua qualidade, onde o PSG venceu em toda a linha. “Este é um desporto injusto muitas vezes e tens que o aceitar. É assim que isto funciona”, lamentou depois, invocando a fortuna, a moralidade da bola. “O Liverpool jogou assim apenas contra nós, porque nós não o deixámos jogar”, constatou ainda, indo ao fio de jogo, à dinâmica da sua equipa, à exibição em si. O espanhol foi a tudo antes de ir ao fulcral.
O jogo “não se perdeu por detalhes”, esse chavão. “Perdemos o jogo porque o senhor Alisson fez cinco paradas incríveis. Os detalhes estão em Alisson. Normalmente, os detalhes são quando os encontros estão igualados. Aqui houve uma equipa muito superior à outra”, explanou, por fim desaguando no homem cujas feições e olho azul foram um chamariz, no Brasil, à prevalência das aparências para o batizarem de “goleiro gato”.
Alisson Becker fez, ao todo, nove defesas, várias incríveis como Luis Enrique destacou. Nunca o brasileiro, em sete temporadas de Liverpool, colecionara tantas num jogo. Nunca sequer um guarda-redes dos reds se vira obrigado, ou conseguira (depende das circunstâncias) tantas paradas num encontro da Liga dos Campeões. As estatísticas, sozinhas, ilustram a façanha de Alisson, o próprio admitiu “serem muito boas para mostrar uma parte do jogo”, a que se traduz nas “tantas ações” em que foi obrigado a “estar alerta para ajudar a equipa”.
O par de constatações que espremidas dão um sumo de nada de foram as únicas intervenções estéreis do guarda-redes após a partida. Ainda equipado, descontraído por conviver, em pessoa e à distância, com antigos jogadores na flash interview da “CBS Sports”, o colecionador de 71 internacionalizações pelo Brasil acrescentou uma análise técnica à partida, saliente em detalhes. Sem os mencionar, Alisson começou por dar contexto além do óbvio para os 22 remates e volume atacante do PSG. “Às vezes, quando enfrentas muitas oportunidades de golo, parece que a equipa está a trabalhar mal defensivamente, mas na maior parte dos remates que tiveram havia um jogador nosso na bola, a tentar bloquear, o que torna o trabalho do guarda-redes um pouco mais fácil”, explicou a Peter Schmeichel, o dinamarquês conhecedor da poda, protetor da baliza do Manchester United em 1999, na épica final da Champions conquistada pelo clube.
A falar em inglês, mas falando como o português do Brasil diz, Alisson falou verdade: em dois remates de Kvaratskhelia, na segunda parte, feitos fora da área, o guarda-redes tinha jogadores seus no caminho; noutro, de Désiré Doué, igualmente com mira posta no ângulo superior da sua guarida, a distância do alvo tinha muitos adversários encafuados na sua frente. Em parte, porque o PSG assim os forçou, noutro prato da balança por estratégia do Liverpool. “Parte do plano era estamos um pouco mais baixos, mas não tanto, fomos baixando por eles serem tão bons com a bola e, a partir de um certo momento, já não os conseguíamos pressionar. Aí é melhor assentar o bloco um pouco mais recuado em vez, tentar defender mais em baixo, de te expores a correr de forma errada e a abrir espaços”, comentou o brasileiro.
Quando a palavra chegou à aura de Thierry Henry, o mais detalhista dos membros do painel do canal norte-americano, por hábito mais apologista de ir à minúcia do que Jamie Carragher e Micah Richards, a pergunta oferecida a Alisson inquiriu sobre a força que o guarda-redes tem nas palmadas quando barra rematas da sua baliza e afasta a bola da sua zona, para longe de uma recarga. De onde vem essa fortaleza de pulso? “É treino. Enquanto guarda-redes, tens de ter mãos fortes, caso contrário não vais jogar no Liverpool”, respondeu sem aprofundar, intuindo um retorno às salas vazias dos lugares-comuns.
Mas não. Sem ser questionado, adensou uma radiografia a ele próprio: “Isto de avançar e fazer defesas longe da linha da baliza é algo pessoal, tem a ver com a mentalidade, gosto de avançar, de ter essa postura. Como avançado, se olhares para o guarda-redes e ele está parado, olhas para a bola, voltas a levantar a cabeça para e se ele estiver mais adiantado, é difícil fazeres algo. Nem sempre consigo fazer isso, mas tento facilitar a vida a mim próprio durante o jogo.” Foi a ligação a outro facto: em todas as defesas deixadas no Parque dos Príncipes, o brasileiro estava uns bons passos à frente da baliza, destemido a cortar ângulos ao rematador, fazendo a sua figura notar-se.
Nenhuma das tentativas válidas do PSG suplantou Alisson Becker, o goleiro gato, e analítico. E a sua melhor versão. “Até agora, podemos dizer que foi a melhor atuação da minha carreira. Em termos de volume de ações, não só as defesas, mas também muitos cruzamentos em que tive de sair”, reconheceu, a falar já na sua língua-mãe, à “TNT Sports”. A avalanche de futebol ofensivo do PSG apetrechado de gente estouvada e perigosa no ataque, mandão da bola no meio-campo, pressionante que nem louco no momento da perda de bola, espremeu o jogo de uma vida do guarda-redes do Liverpool. É nas balizas que as partidas se resolvem.
O guarda-redes foi o mais influente, o elemento que estancou a toada do primeiro ato da eliminatória entre as duas prováveis equipas que melhor jogam, de momento, na Europa - e recordou que o futebol extrai muito do seu cariz espetacular da improbabilidade originar vitoriosos. Em Paris, essa magia veio de todos os remates que Alisson barrou.