
Os sinais, as pistas pelo menos, não eram invisíveis nem escondidas estavam e podem ser descritas com a ajuda de um lugar-comum do futebol. As belgas eram mais fortes e altas, melhores no arcaboiço, já levavam para lá de meia hora a reinarem em tudo quanto eram lances com a bola pelo ar, mas, quando Carolina Correia sofreu uma falta junto à linha de fundo portuguesa, a seleção predispôs-se a entrar na boca do lobo. Outro cliché, também apropriado: as portuguesas não se organizaram para tentarem sair com passes curtos, quiserem bater a bola longa e a defesa assim o fez.
Sem espanto, o chuto para a frente e pelo ar de Carolina Correia, apontado aos 161 centímetros de Diana Silva, foi reclamada por uma adversária envolta numa certa molhada de jogadoras e rapidamente as belgas reciclaram a bola dali para fora até encontrarem Tessa Wullaert, a esperta capitã. Vendo a linha defensiva portuguesa subida e Catarina Amado, na esquerda, a olhar apenas para ela enquanto a lateral, Davina Philtjens, arrancava para atacar as suas costas, meteu o passe no espaço. O cruzamento venenoso, ainda desviado por Ana Borges, daria no golo de Justine Vanhaevermaet. Foi o que deu o chutão para frente.
No confronto entre as seleções saco de pancada do grupo A da Liga das Nações, marcava a que estava obrigada a ganhar, mas que não parecia jogar para tal, contra a que nem precisava de vencer e quis assumir a iniciativa, embora sem mostrar engenho para a ter. A Bélgica dos 16 golos sofridos, 15 deles divididos por Espanha e Inglaterra, ia para o intervalo em cima de Portugal dos 18 golos encaixados, 13 no último par de jogos contra as tais mesmas adversárias de outra casta futebolística. Esse trauma bicéfalo pareceu também estar no Estádio dos Barreiros, no Funchal.
Durante os primeiros vinte e poucos sonolentos minutos, jogados vagarosamente, os únicos sobrolhos erguidos por coisas feitas pela seleção nacional vieram de momentos em nada relacionados com a baliza da Bélgica. As portuguesas, dispostas com três centrais, abusavam da única que não o é realmente, Fátima Pinto, para filtrar passes nas médias e desmontarem a pressão adversária; e quando tinham lançamentos laterais do seu lado, à esquerda, era ela quem os assumia, gerando uma certa confusão nas belgas que Portugal aproveitava para sair dos pequenos cercos junto à lateral. Fora isso, nenhum rasgo, nada de ideias ofensivas.
Foram estes aspetos não indiferentes, mas inofensivos, a pautarem a exibição de uma seleção amorfa até Diana Silva combinar com Andreia Jacinto, à direita, para lançar a média da Real Sociedad - a mais irrequieta e divergente na primeira parte - na linha de fundo e o seu cruzamento rasteiro ser rematado à barra por Andreia Norton. Aparecia o farol de criatividade de Portugal na melhor jogada, mas retornaria à discrição aguda onde estava para a equipa, depois, apenas voltar a ameaçar numa transição rápida, em que Ana Borges correspondeu à corrida de Jacinto, pôs-lhe a bola no caminho e ela rematou à rede lateral da baliza.
A seleção nacional tinha, pelo menos, de empatar de modo a chegar ao único salva-vidas que lhe restava: garantir o play-off de manutenção na principal divisão da Liga das Nações, onde a convivência com as trutas do futebol feminino foi uma dura provação, castigadora nos sete golos de Vigo e nos seis em Wembley, contudo fundamental se a intenção é trepar na ribanceira da competitividade, dar seguimento às consecutivas façanhas de anos recentes.
Para tal, com tanto já sofrido na Liga das Nações, a seleção precisava de algo diferente. No primeiro canto após o intervalo (o sexto na partida), finalmente Portugal teve essa diferença, um gesto que fugisse ao expectável, marcando-o de forma curta, obrigando as adversárias a mexerem-se e criando a dúvida onde descobriu Jéssica Silva, na área, quando cruzou ao fim de três passes. O seu remate não chegou à baliza, porém a rota era essa diferença. No canto seguinte, de novo diferente, Catarina Amado quase desviava junto ao poste mais distante.
Eram provas de que assim era possível tirar a Bélgica da poltrona, roubar conforto às adversárias que nem tinham pressionado alto e limitaram a cerrar espaços na sua metade - o que acabou com estas duas ligeiras ameaças de Portugal. A partir daí, as visitantes avançaram uns metros com os seus apertos à saída de bola e agiram, mais do que esperaram, perante a passividade das ações portuguesas. Aumentado um pouco a velocidade, as belgas, num ápice, tiveram um penálti no resvés da área que Tessa Wullaert tratou de converter. Quatro minutos volvidos, a mesma avançada aproveitou um passe errado para um cá-vai-disto a 30 metros da baliza.
Estar a perder por 0-3, em casa, calou as já tímidas vozes nas bancadas, o Funchal murchou em sintonia com a seleção nacional. Nos 20 minutos que restavam, pouquíssimo se viu das portuguesas, previsíveis no desenho das jogadas e desprovidas de qualquer traço inventivo. Não houve passes que arriscassem rasgar o espaço entre defesas, um posicionamento das avançadas para motivar hesitações, nem lances individuais no ataque que gritassem por entre o marasmo. Avistaram-se as mesmas dificuldades: custava à seleção competir na potência, no físico, nos duelos, mas nunca esse lado do jogo explicará uma lição por inteiro. A Portugal faltou jogo, nunca o teve nesta derradeira tentativa de não regressar ao passado.
A inesperada derrota despediu Portugal do púlpito da Liga das Nações com uma goleada encaixada frente às únicas adversárias que ainda não tinham feito tal desfeita à seleção. Foram 19 bolas encaixadas em seis partidas, estas últimas três, porventura, as mais preocupantes por virem de uma seleção que se julgava paredes-meias, o seu 20.º lugar no ranking da FIFA ali já à vista do 22.º posto português, mas, pelos vistos, matreiro a passar a perna prática a esta teoria.
Há dois meses, em Vigo, ainda no relvado a recuperar o fôlego dos golpes do 7-1, o selecionador Francisco Neto reuniu as jogadoras em roda e disse-lhes que o atropelamento “não” poderia “por tudo em causa”. Um resultado isolado nunca, mas uma campanha que tão contrastante se fez das aventuras em Europeus e Mundiais, onde a seleção, perdendo ou ganhando ou empatando, cerrou sempre os dentes na competitividade, pode colocar questões. Será tempo de renovar o núcleo de convocadas que pouco tem mudado? São precisos novos métodos no banco? Faltam novos estímulos a quem já tanta história logrou de chuteiras calçadas? Está o futebol feminino a estagnar em Portugal?
Haverá respostas, assim dita a evolução. Seja para breve ou para um pouco mais tarde, porque falta só um mês para o Campeonato da Europa, tipo de palco, de ocasião, por arrasto de confrontos, em que esta seleção preencheu os últimos anos a crescer para ser competitiva.