O primeiro impulso é dar meia-volta e sair como se tivéssemos entrado na porta errada. É que estávamos apenas à procura de um torneio de futebol 7 e encontrámos uma rave.

A DJ na lateral do campo fica empolgada à medida que se entretém com a betoneira musical. As bancadas estão tão próximas que há um alerta sonoro que avisa para a possibilidade de, inadvertidamente, a bola atingir o público. O ambiente à FIFA Street, o famoso videojogo de futebol de rua, está montado. Grande parte do público senta-se em cadeiras que parecem retiradas da esplanada de um qualquer café. Algumas delas têm pernas altas o suficiente para chegar ao balcão.

O Manchester City e o Rosengård encetam a competição. De repente, duas equipas que são presença habitual na Liga dos Campeões tiveram que reaprender aquilo para o qual sempre julgaram ser boas no formato tradicional de 11 contra 11. Afinal, o World Sevens Football veio precisamente desconstruir conceitos que, a alto nível, julgávamos que durariam até ao fim dos tempos. Não é por acaso que em nenhum outro sítio são explicadas as regras através do altifalante: sete jogadoras de cada lado, duas partes de 15 minutos, substituições ilimitadas. Implícito está que a DJ vai disparar segmentos melódicos em momentos totalmente aleatórios. Igualmente tácita é a ausência de fora de jogo.

É quando se tira a hipótese de armadilharem as adversárias usando a altimetria da última linha que até as melhores futebolistas do mundo têm que reaprender a jogar. O processo fascina, pois crianças a darem os primeiros passos parecem mais coordenadas.

Estavam as jogadoras mais recuadas do 2X3X1 do Rosengård a tentar calibrar o fora de jogo enquanto Kerolin, internacional brasileira do Manchester City, se escondia junto à linha de fundo tirando partido desde o primeiro segundo do desnorte da equipa sueca. “Isto é muito bom para mim para não estar sempre a correr para trás.” Animada na zona mista, onde foi abordada pela Tribuna Expresso, disse que não se importou de fugir “um pouquinho da realidade, ver o que dá e o que não dá”. “Temos de aproveitar as oportunidades que surgem por não haver fora de jogo”, continuou.

Gualter Fatia

Não há grandes demoras no festejo dos golos. Diga-se que também não vale muito a pena. Neste formato, não são uma raridade. Kerolin assumia-se representante do “gingado” típico do país de onde vem. As características do jogo assim o propiciam. “É muito parecido com o estilo mais de rua do Brasil.” A diferença de expectativas é clara. Enquanto a jogadora de 25 anos dribla sem pensar nas consequências, está instalado um sentido de urgência na equipa do Rosengård que, ao sofrer, só pensa em resgatar a bola da baliza para tentar a vingança.

Kerolin, a ganhar ritmo após lesão, é uma das poucas jogadoras de renome que o Manchester City trouxe ao torneio. Trata-se da exceção. Entre outras estrelas, o Manchester United veio com Ella Toone e o Bayern Munique com Pernille Harder. Outros nomes facilmente reconhecíveis se distribuíram pelos restantes clubes participantes, Benfica, AS Roma, Ajax e Paris Saint-Germain.

O elenco é de Liga dos Campeões e até estão em jogo $5 milhões (cerca de €4,4 milhões) em prémios, embora isso não pareça ser uma prioridade. “É algo em que as jogadoras não pensam, mas claro que é um bónus conseguir o dinheiro”, assumiu Emilia Larsson do Rosengård. Mesmo que o prémio monetário seja “enorme”, para o treinador Manchester United, Marc Skinner, “antes de tudo, as jogadoras têm que desfrutar e passar um bom bocado”. Laura Coombs, do Manchester City, acha “louco” que o prémio para o primeiro classificado ($2,5 milhões, €2,2 milhões) seja maior do que aquele que vai receber o vencedor da Liga dos Campeões ($1,6 milhões, €1,4 milhões): “Mostra onde o jogo devia estar, é um grande abre-olhos para o futebol feminino.”

As cadeiras de pano à beira do relvado com os prédios calcinados que fazem vigia ao Estádio António Coimbra da Mota criam um ambiente veranil. Grace Clinton marcou um dos primeiros golos do Manchester United na competição. “Pedimos todos os dias para fazer isto nos treinos.” À prodigiosa filha de 2003 e candidata a representar Inglaterra no próximo Europeu agrada a reinvenção proposta pelo torneio que vai correr o mundo em etapas com outras equipas.

“Nâo sabíamos o que esperar. Este é o formato que jogamos quando somos crianças, não quando somos adultas,” confessou a defesa da AS Roma, Hawa Cissoko. Inicialmente, Grace Clinton também “não sabia para onde ir” neste que “é um jogo mais forte e intenso”, onde as jogadoras se podem mover “livremente”. “É como a Kings League, na minha cabeça é assim. Podia jogar todo o dia assim”, completou a francesa do emblema giallorossi.

Jess Park, que decidiu um Inglaterra-Espanha (reedição da final do último Mundial) realizado em Wembley no mês de fevereiro, não se distraiu muito com a animação a ladear os encontros entre os maiores clubes do mundo. “Quando estamos a jogar, não ouvimos a música”, disse a jogadora do Manchester City. Kerolin procurou “um balanço” entre a diversão e o facto de ser um torneio “mais leve”. “Obviamente que quando é Liga dos Campeões estamos mais concentradinhas, mas gosto muito de ficar livre.”

Os apanha-bolas não têm permissão para adormecer. As reposições são feitas em poucos segundos. “É uma carnificina”, descreve Marc Skinner. Há um frenesim de substituições a acontecer. Junto à linha do meio-campo, uma impotente árbitra tenta manter alguma ordem e verificar que sai o mesmo número de cabeças que entra. No Manchester United, o treinador deixou as trocas por conta das jogadoras. “Elas próprias geriram a rotação. Quando estavam cansadas, rodavam.” Joel Kjetselberg ainda tentou que o Rosengård “trabalhasse nos princípios”. Depois, percebeu que “não podia falar de formação e estrutura, porque há jogadoras por todo o lado e elas precisavam de tomar decisões muito rápido”, constatou o jovem técnico de 36 anos.

Gualter Fatia

Na Suécia, o campeonato vai a meio e houve quem contestasse a presença do Rosengård. “Temos jogo no domingo”, explicou Emilia Larsson. “Mas não sinto que um jogo do World Sevens Football traga mais sobrecarga do que um treino normal. Também nos podemos lesionar durante um treino, não sinto que a diferença seja grande.” Por escolha da direção do clube, as suecas vieram a Portugal, justificou o calvo Joel Kjetselberg, “para preparar a Liga dos Campeões”.

Participar na fase de grupos da prova mais importante da UEFA foi algo que o Benfica não conseguiu fazer esta época. No World Sevens Football, o representante português defrontou o Paris Saint-Germain, o Manchester United e a AS Roma. Num ambiente descaracterizado, as encarnadas puderam voltar a conviver com os grandes clubes e a serem expostas a dificuldades que não encontram na maioria dos jogos do campeonato nacional. “Precisávamos disso e nota-se”, concordou Filipa Patão, de saída para o futebol norte-americano, quando questionada pelo nosso jornal. “Quanto menos estímulos competitivos destes temos, mais vamos perdendo o andamento e intensidade. O que diferiu no jogo contra o Manchester United foi que elas têm este tipo de intensidade todos os fins de semana, o que obriga a crescer.”

Árbitras a dançar o “YMCA”, jogadoras do Manchester United a fazerem a roda - algumas sem claras habilitações para tal - quando eram apresentadas, prolongamentos em que eram subtraídas duas jogadoras às equipas devido às regras, guarda-redes a chutarem de uma baliza à outra, o Bayern Munique a coreografar um momento de pesca - não perguntem como, mas Linda Dallmann imitou um peixe -, 12 substituições em simultâneo e Cristina Martín-Prieto a liderar a bancada foram alguns dos momentos inusitados que aconteceram. Nas bancadas, pareceu ter sido imposta uma regra que proibia os adeptos de vestirem camisolas de futebol com nomes masculinos. Alguns dos adeptos que as usavam - homens, mulheres, velhos e novos - pareciam ter viajado de propósito para estar ali. É um fenómeno que começa a criar fervorosos.