A globalização e a complexidade das cadeias de abastecimento no mundo atual, sobretudo no pós-pandemia e com as disrupções provocadas pelas transformações em curso — energética, digital, ambiental —, trazem desafios ao espaço europeu. E o primeiro deles, para o advogado especialista em Direito Aduaneiro José Rijo, é a necessidade de reforçar e aplicar medidas de execução com vista a garantir a segurança dos consumidores. Mas há muito mais questões que se levantam, recorda, num "novo contexto geopolítico, em evolução constante" e que tem provocado enorme impacto na indústria, sobretudo com o "notório crescimento da concorrência mundial, do protecionismo, das distorções do mercado e das tensões comerciais".
São estes alguns dos temas que vão estar em foco, nos dias 4 e 5 de setembro, no Centro de Congressos da Alfândega do Porto, com a Invicta a receber, pela primeira vez, a reunião mundial de Direito Aduaneiro. Académicos, investigadores, membros de instituições internacionais, advogados, economistas, despachantes aduaneiros e representantes das alfândegas irão debater os riscos e oportunidades de uma conjuntura sem precedentes ao nível do comércio internacional e dos mercados globais. Para Andrés Rohde, presidente da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (ICLA), "as condições atuais do comércio internacional exigem a aplicação de medidas de segurança e de controlo para a proteção dos cidadãos, do bem-estar ambiental e do comércio legítimo, em cuja vigilância as regras aduaneiras assumem uma importância crescente".
Em entrevista ao SAPO, José Rijo explica a importância de ter o Centro de Congressos da Alfândega do Porto como palco deste momento. E analisa a importância de se prever riscos e antecipar remédios. Para o também docente da Universidade Católica, as estruturas alfandegárias e as regras aduaneiras têm "um papel fundamental" nesta equação.
Porquê trazer esta reunião para o Porto e o que se pode esperar do encontro?
A Reunião Mundial de Direito Aduaneiro realiza-se anualmente e reúne os mais prestigiados especialistas nas temáticas relacionadas com a dimensão aduaneira do Comércio Internacional. Realizar este evento no Porto permitirá dar uma enorme visibilidade às empresas nacionais com vocação para transações internacionais de mercadorias para os múltiplos mecanismos aduaneiros, cujo conhecimento e domínio se revelam primordiais para o seu sucesso na disputa das quotas dos mercados globais.
Uma das áreas relativamente às quais o Direito Aduaneiro tem vindo a assumir uma cada vez mais intervenção é a fiscalização dos mercados e da conformidade dos produtos que chegam ao espaço europeu.
Mas de que forma pode este tipo de organizações ajudar a garantir a segurança nos produtos que chegam ao espaço europeu?
Uma das áreas relativamente às quais o Direito Aduaneiro tem vindo, em crescendo, a assumir uma cada vez mais importante intervenção é justamente a da fiscalização dos mercados e da conformidade dos produtos que chegam ao espaço europeu. Tal como reconhece a legislação europeia, os desafios gerados pela globalização do mercado e a complexidade crescente da cadeia de abastecimento, bem como o aumento de produtos colocados à venda em linha destinados a utilizadores finais na União, exigem o reforço e a aplicação de medidas de execução com vista a garantir a segurança dos consumidores. Há, assim, que assegurar que esses produtos respeitam requisitos necessários a um elevado nível de proteção dos interesses públicos, como a saúde e a segurança em geral, a defesa dos consumidores, a proteção do ambiente, a segurança pública, etc. Atenta que está a esta realidade, a Academia Internacional de Direito Aduaneiro não deixará certamente de incluir no programa da Reunião Mundial de Direito Aduaneiro de 2025 esta importante e atual temática.
Esse debate faz mais sentido num momento em que perseguimos metas ambiciosas de sustentabilidade?
As metas de sustentabilidade são um grande desígnio, mas também um gigantesco desafio lançado à indústria europeia. O objetivo da neutralidade climática em 2050, como prescreve o Acordo de Paris, implica uma profunda reforma dos atuais processos industriais. Em vista de tal fim, serão necessárias matérias-primas “verdes” que substituam a atual dependência dos combustíveis fósseis. Pretende-se uma indústria mais ecológica e mais digital, que se mantenha competitiva à escala mundial. Todavia, o novo contexto geopolítico, em evolução constante, está a ter um impacto profundo na indústria face ao notório crescimento da concorrência mundial, do protecionismo, das distorções do mercado e das tensões comerciais que se vão registando em diferentes geografias. Para se tornar mais competitiva e, simultaneamente, mais ecológica e circular, a indústria necessitará de um aprovisionamento seguro de energia e matérias-primas limpas e a preços acessíveis.
E as estruturas alfandegárias, bem como a vigilância de cumprimento das regras aduaneiras, têm nisso um papel a cumprir?
Já têm um papel fundamental, pois a elas cabe, por imperativo legal, a proteção contra o comércio desleal, bem como a proteção da saúde e da vida das pessoas, dos animais e das plantas, a proteção do ambiente, a proteção do património nacional de valor artístico, histórico ou arqueológico, e a proteção da propriedade industrial e comercial. Vários exemplos, e bem ilustrativos, se podem trazer à colação no que toca ao papel do Direito Aduaneiro em domínios de atuação não exclusivamente relacionados com a sua dimensão “fiscal”.
Quer dar-nos um?
Desde logo, a já mencionada fiscalização dos mercados e conformidade dos produtos, mas também em áreas tão diversas como a monitorização e controlo das transações do chamados produtos de duplo uso (civil e militar), o mecanismo de ajustamento carbónico fronteiriço (CBAM – “Carbon Border Adjustment Mechanism”) para dar resposta às emissões de gases com efeito de estufa incorporadas em determinadas mercadorias a fim de evitar o risco de fuga de carbono, reduzindo assim as emissões globais, designadamente através da criação de incentivos à redução das emissões pelos operadores de países terceiros. E ainda o tema da desflorestação e degradação florestal, o qual visa controlar a disponibilização no mercado e a exportação de determinados produtos de base e produtos derivados (a saber, bovinos, cacau, café, palmeira-dendém, borracha, soja e madeira), que se mostram indispensáveis para a manutenção das funções dos ecossistemas, nomeadamente na purificação das águas e dos solos, e na retenção e recarga de águas.
Quando as autoridades competentes concluem que há produtos que apresentam um risco grave, cabe-lhes tomar medidas para proibir a sua colocação no mercado.
Como é que as regras aduaneiras protegem, na prática, os comerciantes e os cidadãos?
Naturalmente, através da aplicação de medidas coercitivas e sancionatórias. Note-se que as normas europeias impõem aos Estados-membros a adoção de comportamentos muito firmes no que toca às regras de fiscalização de mercado e à conformidade dos produtos importados de países terceiros. Assim sendo, os procedimentos aduaneiros de importação devem ser imediatamente suspensos no caso de os produtos não apresentarem a documentação exigida ou sempre que exista uma dúvida razoável quanto à sua autenticidade, exatidão ou integralidade de tal documentação. O mesmo sucede quando os produtos não se apresentam marcados ou rotulados, ou ainda quando não ostentam a marcação «CE» ou outra marcação exigida pela legislação da União que lhe seja aplicável. Caso as autoridades competentes venham a concluir que os produtos apresentam um risco grave, devem tomar medidas para proibir a sua colocação no mercado. Essa sua decisão é partilhada num sistema comum de informação e comunicação ao nível da União Europeia.
Políticas mais protecionistas farão sentido na relação do espaço europeu com os seus parceiros externos?
Creio que a adoção de medidas protecionistas, em si mesmo, são genericamente nocivas ao progresso económico e social. A proliferação de acordos de comércio livre e de uniões aduaneiras ocorridas nos últimos 30 anos à escala global contribuiu decisivamente para o crescimento económico. De igual modo, a eliminação e a redução de obstáculos pautais e não pautais ocorridas naquele mesmo período, na sequência da celebração do Acordo que criou a Organização Mundial do Comércio, permitiram um significativo incremento do bem-estar social e económico de muitos milhões de pessoas nas mais diversas geografias. Todavia, tal não deve obstar, sempre que se mostre indispensável, que as instituições europeias recorram a mecanismo de defesa comercial com vista à proteção de certos setores ou fileiras industriais que estejam confrontados com danos graves (ou estejam na iminência de os sofrer), muitas vezes causados por práticas concorrenciais desleais protagonizados por certos países terceiros. A título de exemplo, atente-se no que se passou com a indústria siderúrgica do ferro e do aço, a partir de 2018, e, mais recentemente, com a adoção de direitos de compensação provisórios no que toca à importação de veículos elétricos.
Estima-se que o novo regime de comércio eletrónico traga receitas aduaneiras adicionais da ordem de mil milhões de euros por ano.
Está prevista uma profunda reforma do código aduaneiro da União Europeia. O que trará de novo?
Estamos ainda numa fase muito precoce desta reforma, pelo que se mostra prematuro antecipar as consequências práticas que dela venham a decorrer. O projeto lançado pela Comissão Europeia assenta basicamente em três pilares estruturantes, a saber, a implementação da Plataforma de Dados Aduaneiros da União Europeia, a criação da Autoridade Aduaneira da União Europeia e a simplificação dos procedimentos aduaneiros. Tudo isto alavancado numa nova parceria entre as empresas e as administrações aduaneiras, no âmbito da qual a partilha de informações relevantes para os processos aduaneiros seja registada na referida Plataforma. Por outro lado, essa partilha ocorrerá por uma só vez e será válida para várias remessas, podendo os operadores económicos mais confiáveis colocar as suas mercadorias em livre circulação sem intervenção ativa das autoridades aduaneiras. Esta nova plataforma estará disponível para os operadores de comércio eletrónico em 2028, para os demais importadores em 2032 (a título meramente facultativo) e em 2038 (já em velocidade cruzeiro). Esta abordagem mais inteligente dos controlos aduaneiros permitirá uma visão panorâmica das cadeias de abastecimento e, consequentemente, o reforço da fiscalização aduaneira.
E que mais trará esta reforma?
Está igualmente previsto o recurso à inteligência artificial para analisar e monitorizar os dados, a fim de prevenir problemas antes de as mercadorias serem transportadas para o espaço europeu. Todos os Estados-membros terão acesso a dados em tempo real e poderão reunir informações para responder de forma mais rápida, coerente e eficaz aos riscos. A nova Autoridade Aduaneira da UE vai assegurar a coordenação entre as diferentes administrações aduaneiras nacionais e outras autoridades. Esta centralização de funcionalidades, segundo a Comissão Europeia, permitirá poupanças significativas dos Estados-membros nos gastos com os seus sistemas informáticos, que poderão atingir inicialmente os 194 milhões de euros, evoluindo para 2,3 mil milhões/ano ao longo dos próximos 15 anos.
Há algo previsto especificamente para as trocas comerciais digitais?
No que toca, em particular, ao comércio eletrónico, as plataformas serão responsáveis por garantir que os direitos aduaneiros e o IVA sejam pagos na compra dos bens por parte dos consumidores. A par disto, e visando claramente a simplificação dos envios de e-commerce, a projetada reforma simplifica o cálculo dos direitos aduaneiros para as mercadorias de baixo valor, reduzindo os milhares de categorias de direitos aduaneiros possíveis para apenas quatro. Estima-se que o novo regime de comércio eletrónico traga receitas aduaneiras adicionais da ordem de mil milhões de euros por ano. A simplificação dos processos por via da recolha dos dados de uma só vez num único interface contribuirá para uma significativa diminuição dos encargos administrativos para o comércio legítimo.
Por fim, assinalar que teremos um novo processo simplificado de introdução de mercadorias na União Aduaneira baseado em informações antecipadas ao carregamento das mercadorias. O objeto central das administrações aduaneiras deixará de ser a remessa individual para passar a ser a fiscalização da cadeia de abastecimento, a fim de identificar os riscos potenciais. Futuramente, as várias declarações aduaneiras serão gradualmente substituídas pela utilização de dados comerciais, após um período de transição para o desenvolvimento dos sistemas necessários.