
No número 144 da Rua das Carmelitas, no Porto, vive uma casa de histórias. E é mesmo impossível fugir-lhes, ou não estivéssemos nós prestes a entrar numa livraria. Entre as prateleiras, a escadaria, as paredes ou os vitrais, forma-se um grande enredo que aqui lhe vamos contar. Mas, por enquanto, esta história começa no piso de baixo da Livraria Lello.
“Em 2023, no final do ano, comprámos as 42 cartas de Bob Dylan. Essas cartas são aquilo que nós chamamos de os nossos atos de loucura”, conta Aurora Pedro Pinto, responsável pela livraria Lello, à Forbes. As cartas estão expostas na Sala Gemma, ao lado de uma série de livros especiais. Como todas as primeiras edições da série Harry Potter assinadas pela autora e os espólios da Coimbra Editora, a Lello Editores e a Brazenhead Books. Estas três editoras são, aliás, o grande destaque da visita a esta sala.
Na entrada, do lado esquerdo, a Brazenhead Books, do último pirata de Nova Iorque. Foi este o título que leram na imprensa norte-americana e lhes fez despertar para mais uma “loucura”. “Era uma livraria e editora de um sujeito, Michael Seidenberg, que tinha a sua libraria em Manhattan. Ele teve de entregar o prédio onde estava e passou o negócio para sua casa. Recebia às horas que queria, sempre com um copo de vinho na mão, com grandes conversas. Quando ele faleceu, o New York Times disse: Partiu o último pirata de Nova Iorque”, conta Aurora, que depressa soube que teria de procurar a história. Acabou por conseguir contactar a viúva de Michael e adquirir algumas das caixas que estavam guardadas. Mesmo sem saber o que lá estava dentro. “Nessa meia dúzia de caixas vêm coisas maravilhosas, como livros do Bob Dylan assinados ou como este livro do Woody Allen”, diz.
Continuando no mesmo corredor surge a Lello Editores e a Coimbra Editores. A primeira não precisa de justificação. Apesar de ter declarado falência, a livraria fez questão de manter o espólio. A segunda é mais uma história para contar: “A Coimbra Editores editava Miguel Torga, que era uma pessoa contra o regime, e a editora era de Salazar também. É a tal história que depois nós procurámos o que há ali atrás e encontramos histórias maravilhosas”, conta.
A determinado momento Aurora relembra a frase que leu pela primeira vez no passeio dos autores, em Nova Iorque: “Nós não somos feitos de átomos, mas de histórias”. A Lello é isso mesmo.
119 anos de história
A Livraria Lello abriu portas a 13 de janeiro de 1906, numa altura em que os irmãos Lello também adquiriram o espólio do Ernesto Chardron. “Deste modo eles conseguiram abrir com uma grande pujança ao nível da importância que a literatura poderia ter, porque o catálogo que Chardron englobava mais de 600 títulos. O Chardron era um grande editor, o maior de Portugal seguramente”, diz Aurora, destacando o quão arrojado o negócio foi naquela altura, uma vez que estamos a falar de uma época em que grande parte da população era analfabeta.
Nos anos seguintes o negócio tornou-se uma referência dentro e fora de Portugal, sendo que eram um grande exportador para outros países de língua portuguesa. Até que chegaram as décadas de 50 e 60 e as coisas começaram a correr mal. Ainda assim, a Lello persistiu e foi mantendo as portas abertas. Só que nos anos 90 e no início dos anos 2000 as coisas pioraram muito. O que pode surpreender muita gente, uma vez que se associa uma boa dose de sucesso do espaço à sua ligação à série Harry Potter, que teve um enorme sucesso ao longo dos mesmos anos. A família Pedro Pinto comprou a Lello em 2015 – primeiro 51% e mais tarde o resto – e Aurora recorda aquilo que encontraram.
“Quando cá chegámos chovia dentro da livraria, existiam bacias em cima das mesas junto com os livros para apanhar a água. Recebia já bastante gente, foi a época da explosão em que começaram quer o Porto, quer a livraria a ser reconhecidos internacionalmente. Mas as pessoas entravam, fotografavam e saiam. Ou seja, não havia negócio. E por isso é que ela estava tão degradada, porque não havendo negócio não havia como sustentar tudo isto”, conta.
A primeira decisão que tomaram partiu da seguinte pergunta: Transformar o espaço num museu, que as pessoas apenas visitam, ou ser uma livraria? “A opção foi logo clara, nós queremos ser aquilo para que nasceu esta casa, nós queremos ser uma livraria. Depois foi todo um caminho que desenvolvemos. A grande alavanca para que isto pudesse de facto desenvolver-se desta maneira foi termos criado um voucher, por um lado as pessoas pagam para entrar, mas por outro o que nós estamos a promover é a leitura, é que saiam com o livro na mão, e isso deu-nos algum fogo económico. Logo no primeiro ano que cá chegámos nós aumentámos em 1000% a venda de livros”, afirma a responsável pelo espaço. Os vouchers são simples, as pessoas pagam para entrar, mas esse valor é convertível na compra de um livro.
O passo seguinte foi restaurar o espólio e a própria casa, desde o interior, às montras, passando pelo vitral, onde ficou, seguindo a tradição, um emoji a sorrir como símbolo da época em que o restauro aconteceu, e pela fachada, que exigiu que fossem tiradas 12 camadas de tinta até chegar ao original. Lá dentro deu-se o desenvolvimento da sala que já lhe apresentámos anteriormente, a criação da sala do Principezinho e da sala Saramago.
10 anos depois, todo o trabalho da família Pedro Pinto deu frutos. A livraria recebe por ano cerca de 1,2 milhões de visitantes, sendo que em 2024 venderam cerca de 1 milhão de livros. “Todos os dias, tirando o fim de semana, entregam de madrugada em média 3500 livros. Nesta altura andará mais nos 3 mil, mas depois no verão passa para os 4 ou 5 mil”, afirma.
“O que interessa é que se entrar um leitor ele vai levar um livro, e se não entrar um leitor ele vai-se transformar em um. Isso para nós é que é gratificante, saber que de facto as pessoas olham para isto como uma livraria, que levam os livros consigo e que estamos a contribuir quer para a literacia, quer para desenvolvimento de pensamento crítico, quer também, e muito importante, para exportar cultura portuguesa para o mundo”, diz Aurora.
Ao Porto!
Novos espaços relacionados com a livraria, nova programação cultural e um investimento no valor de 60 milhões de euros em novos projetos para a baixa do Porto. É isto que está desenhado para o futuro deste projeto.
A 31 de outubro de 2024 iniciaram as obras na casa ao lado livraria com o objetivo de criar um espaço onde poderão acolher melhor quem os visita. Será ainda um espaço que vai permitir alargar a programação cultural da livraria. Outra das iniciativas, uma vez que a Lello dedica 2025 ao amor, envolve o país inteiro: “As nossas montras estão dedicadas ao amor romântico e lançámos um desafio ao país, que é de rebatizar a tradicional sobremesa de queijo com marmelada, a que normalmente chamamos Romeu e Julieta, para o nosso Simão e Teresa”, diz Aurora. Na programação cultural estão já confirmadas conversas com Eduardo Souto Moura, Poiares Maduro e Sobrinho Simões. O acervo literário vai continuar a aumentar: com a novidade da compra do espólio de Amy Winehouse.
Já no início de 2025, iniciaram as obras em nove prédios, que irão dar lugar a um espaço de experiências diferenciadoras. Este projeto vai criar mais de 80 postos de trabalho na cidade. O escritório da empresa inicia também obras, para que possa crescer. E, por fim, um projeto que Aurora opta por manter em segredo: “Temos um projeto que já está em desenvolvimento com o arquiteto Souto de Moura, na Rua do Cativo, que vai ser também um projeto na área cultural com muita relevância arquitetónica e com relevância histórica, que a seu tempo divulgaremos”, diz.
A Fundação Livraria Lello não é um projeto novo, mas também ela vai receber uma novidade: o Jardim do Pensamento.
Todo este trabalho é feito em nome da leitura, da arte e da cultura, mas também em nome da cidade que o acolhe em todos os projetos. “O território, para nós, é sempre muito importante. Quando falamos, falamos sempre do Porto. O nosso Porto. E, de facto, tudo aquilo que temos feito é também para dar a conhecer o Porto e para criar no Porto um interesse para quem nos visita, para quem cá mora e para quem cá vem trabalhar”, conclui.
(Artigo publicado na edição fevereiro/março 2025 da Forbes Portugal)