Maria Abranches, de 33 anos, conquistou o prémio WPP na categoria "Histórias", na região Europa, com a reportagem "Maria" sobre a empregada doméstica e cuidadora Ana Maria Jeremias, "traficada de Angola para Portugal aos nove anos, sob falsas promessas de educação", como indica a apresentação do projeto no site oficial do WPP.

Em declarações à Lusa, horas depois de o prémio ser anunciado, a fotógrafa partilhou ter "esperança que a visibilidade de um trabalho sobre as cicatrizes que foram deixadas pelo colonialismo português possa ser um ponto de partida para o debate sobre a reparação histórica".

"Esse é o meu principal objetivo, e também fazer uma homenagem a todas estas mulheres, que, como a Ana Maria, dedicam as suas vidas a construir o mundo e a permitir que as pessoas e as instituições continuem as suas vidas", disse.

Além disso, "Maria" é ainda, "de certa forma, uma homenagem à presença secular africana em Portugal, que também foi determinante para construir a identidade portuguesa".

Reconhecendo que houve já "muitas tentativas de outras pessoas" para colocar a reparação histórica no seio da discussão pública, Maria Abranches defende que "já se devia ter começado a falar mais sobre isso do que se fala".

"Acho que nunca foi um tema que tivesse a atenção que merece, e acho que seria determinante para mudar um bocado as estruturas sociais do nosso país, que se mantêm desde o colonialismo, e o racismo, que vem como consequência disso", afirmou.

O "trabalho invisível, mas com enorme impacto e que muitas vezes não é reconhecido", de mulheres como Ana Maria Jeremias, foi uma das coisas que impulsionou Maria Abranches a querer contar esta história.

A consciencialização para esta questão foi surgindo à medida que foi crescendo.

"Fui criada por uma mulher chamada Júlia, que, com a minha mãe, ajudou na minha construção enquanto pessoa e tem uma história que, apesar de não ser igual, faz-me muito lembrar a da Ana Maria Jeremias. A Júlia vem de uma terra pequenina no interior de Portugal para Lisboa à procura de oportunidades e teve esse papel muito importante que ia muito além das suas obrigações profissionais", contou.

A isso juntou um outro tema, que lhe é "muito familiar": o colonialismo.

O pai de Maria Abranches foi combatente na Guerra Colonial e isso "deixou-lhe cicatrizes profundas", tanto que "era um tema de que não se falava em casa".

"As duas coisas ligaram-se e eu sabia que queria contar esta história. Isso só foi possível quando fui selecionada para a Masterclass Narrativa, com o fotógrafo Mário Cruz, que foi quem orientou e editou este trabalho e que me ensinou a contar histórias", referiu.

Chegar a Ana Maria Jeremias foi fácil, até porque também fez parte da sua infância. "Ela começou a trabalhar em casa de uma grande amiga minha, Madalena, quando finalmente se conseguiu libertar da família de portugueses que a levou para Coimbra. Era uma pessoa muito afetuosa, alegre, que partilhava sempre histórias", recordou.

A notícia de que "Maria" venceu um WPP deixou Ana Maria "felicíssima", mas Maria Abranches sente que o mais importante para ela "foi poder ver a sua história contada em voz alta, que era algo que ela nunca tinha feito assim a sério".

"Houve coisas de que ela se foi lembrando no processo, enquanto eu estava a fotografar e quando lhe fazia perguntas, porque havia muitas coisas que estavam adormecidas", partilhou.

Mais do que exposições e prémios, Maria Abranches acredita que o que Ana Maria Jeremias "verdadeiramente queria era ver a sua história em livro, para poder de alguma forma organizar as suas memórias e dar-lhes um novo significado também".

Algo que irá acontecer.

O livro "em formato diário" sobre o trabalho premiado no WPP é apresentado no dia 27 de abril, no espaço Narrativa, em Lisboa.

Além das imagens premiadas, o livro inclui "uma série de colagens do arquivo fotográfico da própria Ana Maria, porque ela tinha um registo enorme da sua vida, de documentos a fotografias, postais, e tudo isso está no livro".

A isto juntam-se dois textos escritos à mão por Ana Maria, "que são muito fortes".

O prémio conquistado por Maria Abranches coloca-a como finalista para a "Fotografia do Ano", cujo vencedor é anunciado em 17 de abril.

Fotógrafa 'freelancer', Maria Abranches trocou a Arquitetura pela Fotografia há cinco anos.

"Despedi-me em 2020, uma semana antes da pandemia. Acabou por correr bem, mas na altura foi um susto. Decidi fazer o curso de fotografia no Ar.Co, depois fiz estágio no Público e começaram a abrir-se portas", recordou.

Maria Abranches espera que o prémio WPP lhe permita, acima de tudo, "continuar a contar histórias, sobre mulheres".

"Mas não tenho pensado muito no futuro. Tenho ideias para outras coisas que quero fazer, mas para já estou focada nesta história e no livro que vou lançar em abril", afirmou.

A fotógrafa espera também que o prémio "abra portas para futuros trabalhos" e que lhe traga mais possibilidades para poder dedicar-se mais ao fotojornalismo e à fotografia documental. "Porque tenho de fazer outras coisas para poder sustentar-me, além destes trabalhos de paixão".

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