
A apatia do cidadão perante a ineficácia das instituições, a resistência às reformas, o apego às conveniências do “costume” têm impedido o florescimento de uma verdadeira consciência cívica
«Os homens mudam pouco e então os portugueses quase nada.» Esta citação de António Ferro serve de ponto de partida para uma reflexão desconfortável, mas necessária, sobre a persistente inércia que define, em muitos aspetos, a identidade nacional portuguesa. Ao longo da história, Portugal tem sido um país onde o peso da tradição frequentemente sobrepõe- se ao impulso da mudança. E, ainda que sinais de renovação surjam aqui e ali, a sombra do “homem velho” continua a pairar sobre o nosso imaginário coletivo.
Esse “homem velho”, como bem se refere, vive enclausurado em vedações mentais, fechado em si, protetor dos seus pequenos privilégios, resistente a qualquer transformação estrutural. É o português que, nas palavras de Vergílio Ferreira, diante de uma crise, opta por esperar um milagre ou fazer uma piada – e «o grave disto é que o milagre não vem e a anedota descomprime de tudo». Esta resignação crónica, esta falta de reação, é reveladora de uma mentalidade que se habituou a sobreviver em vez de ousar viver plenamente.
Miguel Torga, in Diário (1978), acentua este traço de passividade coletiva, refletindo uma cultura de conformismo e fatalismo. A apatia do cidadão perante a ineficácia das instituições, a resistência às reformas, o apego às conveniências do “costume” têm impedido o florescimento de uma verdadeira consciência cívica.
Contudo, apesar dessa herança pesada, uma nova silhueta começa a delinear-se no horizonte. Um Portugal que ousa pensar, agir, intervir. Um país que, alicerçado nas mudanças sociais das últimas décadas — como a imigração, a globalização e o acesso à educação — começa lentamente a questionar os velhos dogmas. É aqui que nasce o “homem novo”, símbolo de um Portugal que pretende ser cosmopolita, responsável, informado, e, sobretudo, livre. Livre do medo da diferença, da dependência do Estado e da moralidade hipócrita.
Mas este processo de transformação está longe de ser pacífico ou homogéneo. Persistem assimetrias gritantes — entre litoral e interior, entre elites e população, entre o discurso político e a ação efetiva. A crítica de Sá de Miranda à Lisboa do século XVI, «ao cheiro desta canela, o reino nos despovoa», continua tristemente atual. A concentração do poder político, económico e simbólico na capital revela um país desequilibrado, que insiste em abandonar o seu interior, em nome de uma modernidade que não chega a todos.
A clivagem interior/litoral é mais do que um desafio geográfico: é reflexo de uma falha histórica na construção de uma visão integradora de desenvolvimento. A palavra a “inclusão” não pode ser apenas uma palavra bonita no discurso político da província de Lisboa e do poder local— tem de ser ação, planeamento, investimento com propósito e justiça. A pertença tem que ser sentida por todos, não apenas por quem vive no centro do poder.
Outro obstáculo estrutural é a referida “tradição da dependência do Estado”. Temos que reconhecê-la com lucidez: a sociedade civil portuguesa é fraca e habituada a esperar que tudo venha de cima. Esta passividade foi alimentada por políticas erradas, por um sistema educativo que nem sempre ensinou a pensar criticamente, e por uma elite governante que, por vezes, preferiu o assistencialismo à capacitação dos cidadãos.
É urgente romper com esse paradigma. Precisamos de uma cidadania ativa, autónoma, com sentido de responsabilidade pessoal e coletiva. Como se defende no texto, o Estado Social só pode cumprir a sua função se os cidadãos forem, em primeiro lugar, responsáveis por si próprios. E quando falham — por motivos alheios ou estruturais — então, sim, o Estado deve intervir com
inteligência, exigência , solidariedade e robustecer as instituições de modo a que a democracia seja efetiva.
Esta é, no fundo, a verdadeira libertação: «abrir as cercas do conhecimento», pensar por si, agir com consciência, viver com dignidade. O Portugal que sonhamos não pode continuar a ser adiado por um saudosismo doentio, por uma autoimagem distorcida ou por uma dependência infantil. A mudança não virá de fora nem de cima — começa em cada um de nós.
Como bem disse D. Pedro V, é preciso olhar para a realidade sem ilusões. Mas é também preciso, hoje mais do que nunca, recusar o fado do imobilismo. Portugal merece mais do que um país que ri de si mesmo enquanto espera um milagre. Portugal precisa de cidadãos despertos — homens novos — que tenham a coragem de agir e de pensar. Só assim deixaremos de viver sob a sombra do passado e poderemos, enfim, ser senhores do nosso futuro.