Deixem-me contar-vos uma pequena história, pois sem elas o mundo vai sempre parecer caótico e impossível de destrinçar, independentemente de todos factos ou dados estatísticos que se possam debitar na praça pública – na vã esperança de que o cérebro humano crie, sozinho, uma narrativa a partir de pedaços isolados de informação que encontra ali e acolá, na Internet ou nos ecrãs da televisão. Os novos gurus de hoje, donos das grandes empresas tecnológicas que beberam do espírito de Silicon Valley, com a sua visão redutora de como funciona o mundo e as pessoas que nele habitam, podem acreditar nisso e até conseguiram “vender-nos” essa visão, incluindo aos média, mas os seres humanos são bem mais complexos e de forma alguma são iguais a um computador.
Pois bem, esta é a história de um antropólogo russo que assistiu ao auge e colapso da União Soviética e relatou o sentimento de descrença e indiferença normalizada que ia na cabeça do povo; e de como um documentalista britânico recuperou, nos últimos anos, as ideias que o primeiro escreveu em livro, para assim explicar a visceral sensação de desconforto que temos em relação ao estranho mundo em que neste momento vivemos.
Alexei Yurchak nasceu há 63 anos em São Petersburgo (que no período soviético se chamava Leninegrado), e após a queda do Muro de Berlim e a dissolução da URSS escreveu sobre o que foi viver nos últimos anos da União Soviética. Em Tudo Era Para Sempre, Até Deixar de o Ser - A Última Geração Soviética (2005), Yurchak relata como quase todos, da burocracia dirigente (os membros da nomenklatura) até ao simples operário ou funcionário público, passando pelos marginalizados do movimento punk-rock, sentiam que coexistiam, na década de 1980, num sistema que estava estagnado e paralisado, enxague de novas ideias para o futuro. Contudo, o grande paradoxo foi que a sociedade soviética entrou numa espécie de “faz de conta” de que tudo aquilo era normal, pois ninguém tinha uma ideia coesa de como a sua sociedade poderia ser diferente daquela a que sempre se habituaram a conhecer. Alexei Yurchak deu a este espírito reinante o nome de “hipernormalização”.
Saltemos para 2016, quando o experiente jornalista e documentalista da BBC, o britânico Adam Curtis, lançou uma longa-metragem com o mesmo nome – HiperNormalização –, usando a tese apresentada por Yurchak como um precedente capaz explicar o sentimento de mal-estar, a sensação de que tudo se repete uma e outra vez num círculo vicioso, em que o povo, nas democracias ocidentais do século XXI, se sente enredado. [Clique aqui para ver um trailer do documentário, e para perceber a forma nada ortodoxa que o jornalista prefere usar para contar as histórias que, para o bem e para o mal, modelaram o mundo atual.] Curtis, apesar de evitar entrevistas televisivas e ser bastante criterioso com quem prefere debater as suas visões sobre o que faz, ou não fosse ele um acérrimo crítico do jornalismo que hoje se pratica, resumiu assim, numa longa entrevista para o The Economist, o que está em causa:
“O que ele disse, e que eu achei absolutamente fascinante, foi que nos anos 80 toda a gente, do topo à base da sociedade soviética, sabia que nada daquilo estava a funcionar, sabia que era corrupto, sabia que os patrões estavam a saquear o sistema, sabia que os políticos não tinham uma visão alternativa. E eles sabiam que os seus chefes sabiam que eles sabiam disso. Toda a gente sabia que aquilo era falso, mas como ninguém tinha uma visão alternativa para um tipo de sociedade diferente, aceitavam esta sensação de total falsidade como normal.”
Continua: “Pensei para mim, ‘isto é um título brilhante’ [para usar], porque, embora não estejamos de forma alguma como a União Soviética, existe um sentimento semelhante nos dias de hoje. Toda a gente no meu país [o Reino Unido], na América e em toda a Europa sabe que o sistema em que vivem não está a funcionar como deveria; que existe muita corrupção no topo. Mas sempre que os jornalistas chamam a atenção para o facto, toda a gente diz ‘Ai, isso é terrível!’… e depois nada acontece e o sistema continua na mesma”.
Em Portugal há investigações jornalísticas que “destapam a careca” a partidos financiados por interesses obscuros e que mostram como um banqueiro poderoso agia como “o dono disto tudo”. No fim, todos estes relatos são recebidos com uma apática indiferença. O que se passa?
Foquemos a atenção em Portugal. O ano de 2023 está a acabar e em cima das suas costas estão 15 anos de austeridade económica e financeira, uma política de “terra queimada” promovida pela Troika, baixos salários, a asfixia de pagar as dívidas ao banco, falta de habitação a preços acessíveis, uma delapidação dos serviços públicos (da saúde à educação) e os efeitos psicológicos e sociais de uma pandemia, entre muito mais. Toda uma bola de neve, em crescendo, que criou um sentimento, junto do povo, de que os políticos deixaram de os servir, que os banqueiros e as grandes empresas tomam banho, todos os anos, numa piscina de lucros mirabolantes – além de que evitam os impostos com a ajuda de paraísos fiscais –, isto enquanto vêm a sua vida estagnar, muitas vezes a dar dois passos atrás, sem vislumbre de um futuro diferente ou sequer melhor.
A sociedade portuguesa, e esta é uma das teses deste ensaio jornalístico, também parece ter entrado no decadente espírito da hipernormalização, descrito por Yurchak e Curtis. Paira no ar o espectro de que aqueles que percorrem os corredores do poder desistiram, ou não sabem, apresentar-nos uma história sobre um futuro melhor para a nossa sociedade. Limitam-se, e isso também se nota nos seus discursos, em manter tudo como está, com o argumento de que é para nos “resguardar” de algo pior que aí venha (o velho discurso do medo), ou, então, restaurar o que antes existiu: ou seja, comportam-se como meros gestores do que já existe.
Os média tradicionais, em Portugal e no resto do mundo, adotaram o mantra de que estão a competir na chamada “economia da atenção”, pelo que entraram no lucrativo jogo (porque traz audiências) dos factoides políticos. Falamos de acontecimentos que, passados alguns meses ou semanas, caem no esquecimento, expondo toda a pantomina que é o mercado (a fábrica) de criação de notícias que, todos os dias, nos levam a dizer, olhando para um ecrã ou uma folha de jornal: “Ó, que horror!”, acompanhado do tradicional “Como é possível que isto suceda?”. O problema é que após estes episódios de pantomina mediática, em que “x” responde depois a “y”, com os comentadores “z” e “w” a darem mais caldo ao tema e retro-alimentando todo uma máquina mediática, nada realmente muda na vida do cidadão comum. O pior é que é fora de todo este teatro que o verdadeiro poder se esconde e opera, e, tal como muito bem frisa Adam Curtis, “ninguém está realmente a analisá-lo”.
Peguemos em alguns exemplos recentes.
O jornalista Pedro Coelho liderou uma parceria de investigação que, em 2021, revelou a existência de ligações nebulosas entre o partido Chega – e o seu líder incontestável – com certas figuras de dúbia integridade (envolvidas em esquemas empresariais e lucrativos muito opacos), as quais aparentam ser a fonte de financiamento deste partido político. Quais os seus interesses em alimentar um partido que faz mais contestação que oposição política, e que parece conseguir surfar com sucesso pelas ondas de insatisfação social cada vez mais tumultuosas? O jornalista foi, depois, vítima de mensagens nas redes sociais e ameaças por parte de dirigentes do partido.
Repercussões? Nas eleições de janeiro de 2022 o partido tornou-se na terceira força política da Assembleia da República, passando de um para 12 deputados.
Recentemente, o mesmo Pedro Coelho e a sua equipa analisaram, minuciosamente, as agendas pessoais de Ricardo Salgado, procurando saber com quem este regularmente se encontrou ao longo de vários anos. Tal como descreve o jornal online Setenta e Quatro, que também integra esta investigação: “a agenda do [antigo] presidente-executivo do BES tem deputados; tem secretários de Estado; tem ministros; tem primeiros-ministros; tem presidentes da República; tem presidentes da Comissão Europeia”. A reportagem de investigação foi transmitida com maior detalhe, em episódios semanais, no canal de televisão SIC. Basicamente, destapou-se um pouco a cortina de um dos bastidores em que opera o verdadeiro poder.
O que sucedeu nos dias seguintes, após a exibição de cada uma das peças desta reportagem? Quase nada. Nenhum outro órgão de comunicação social deu destaque ao assunto, não houve debates com comentadores sobre o tema. Não se vislumbrou qualquer tipo de consequências políticas. Mais uma vez, tudo ficou na mesma, mas os fait-divers políticos, esses, não faltaram: fossem eles sobre os emails do senhor Presidente da República ou o “diz e volta a repetir” que são as declarações dos candidatos a secretário-geral do Partido Socialista.
Perante este fenómeno de apática normalidade perante o anormal, que atingiu a sociedade portuguesa, parece seguro dizer que entrámos no estágio de hipernormalização.
Sigam o odor a petróleo. Afinal, quem é que leva a sério o logro que está a ser a última cimeira para as alterações climáticas, no Dubai?
O fenómeno é global e tem-se adensado e arrastado de forma penosa nos últimos anos. Aliás, e continuando com um outro caso paradigmático, como explicar a incrível deriva para o campo do surreal que está a ser a 28.ª Conferência das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, a Cop28, e que se prolongará até 12 de dezembro no Dubai? Um evento da maior importância, devido ao estado de urgência climática em que o planeta está, tal como voltou a atestar, em 2022, o mais importante relatório científico que avalia a situação. Um dos elementos bizarros é o facto de, a liderar a cimeira, estar o sultão Ahmed Al-Jaber, dos Emirados Árabes Unidos, que também é o diretor-executivo da Adnoc… a empresa petrolífera estatal desta monarquia do Golfo Pérsico.
De acordo com um estudo da ONG Global Witness, esta petrolífera está a contribuir para o aumento da temperatura média global, tendo concluído que demoraria 343 anos para que se capturasse as emissões de dióxido de carbono que a empresa emitirá nos próximos seis anos: só para contextualizar, Ahmed Al-Jaber e a empresa que lidera defendem que as tecnologias de captura de dióxido de carbono são a principal solução para evitar o aquecimento global.
Dito de outra forma, a apresentação desta solução pela Adnoc é, acima de tudo, uma operação de relações públicas e de cosmética, nada mais. Tanto assim é que, uma semana antes do início da Cop28, Ahmed Al-Jaber não teve pudor em dizer. numa sessão privada online que precedeu o principal evento, (algo estranho, pois este tipo de debates não costuma estar vedado ao público ou aos média), que "não existe qualquer ciência, tampouco um cenário, que diga que a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis é o que vai permitir atingir os 1,5 graus celsius”. Ou seja, alvitrou que não existem evidências de que essa ação evitará que o planeta aqueça mais 1,5 graus, em relação ao período pré-industrial.
Essencialmente, este homem de grande poder, cuja vasta fortuna pessoal e a da sua família depende da venda do crude que existe no subsolo do país, atirou para o seu caixote do lixo todo o robusto consenso científico que existe em torno do tema. Ainda este ano, em novembro, foi divulgado um estudo que reforçou a conclusão de que, conforme diz um dos seus autores, “o limite de 1,5 graus Celsius está morto e enterrado”, com a maioria dos cenários a apontar que esse valor seja superado ainda nesta década. Entretanto, o planeta já aqueceu 1,2 graus Celsius. Quando as palavras de Ahmed Al-Jaber foram publicamente reveladas pelo jornal The Guardian, com o sultão a admitir que as proferiu e dando em troca, durante uma conferência de imprensa, rebuscadas e nada científicas explicações, seguiu-se a estupefação e, em seguida, um sentimento de resignação, típico de quem sabe que nada – mais uma vez – irá substancialmente mudar.
O quem têm todos estes problemas que ver com o jornalismo que atualmente se faz?
Adam Curtis dá uma resposta mordaz, e bastante crítica do estado em que se encontra o jornalismo atual, no documentário HiperNormalização, apontando o dedo à tendência cada vez mais intensa, dos média, para simplificar e abordar pela superfície as grandes questões atuais, aquelas que precisam de uma boa explicação.
Mais. Interpretando a visão crítica do documentalista britânico, podemos dizer que foi a partir do momento em que os jornalistas pararam de tentar contar as grandes histórias (as narrativas) de que são feitas a realidade em que vivemos, que as pessoas comuns – o povo – deixaram de conseguir encontrar um sentido em relação a tudo o que se passa à sua volta. Essa, basicamente, deveria ser uma das tarefas do jornalismo. A análise sobre o mundo foi entregue numa bandeja de prata, pelos média, aos comentadores “especialistas”, muitos deles ligados a grupos ou a think tanks políticos e económicos que vêm a sociedade como uma entidade que tem de ser gerida de forma cautelosa e burocrata, para manter tudo num ambiente de estabilidade: ou seja, para que tudo, ao fim e a cabo, fique sempre igual.
Na entrevista que deu ao The Economist, Adam Curtis lança outra farpa:
“O problema que tenho com muito do jornalismo de investigação é que está sempre a dizer que ‘devia existir mais jornalismo de investigação’. É então que eu penso: ‘Quando me dizem que muitas pessoas ricas não pagam impostos, fico chocado, mas não fico surpreendido porque já sei disso. Não quero ler outro artigo que me diga a mesma coisa’. O que eu quero é um artigo que me diga porque é que, quando me dizem isso, nada acontece e nada muda. Nunca ninguém me explicou isso.”
“Apenas vos quero reportar, enquanto jornalista, que o povo sente que o capitalismo não lhes dá um futuro: dá-lhes zero, porque já não lhes conta uma história sobre para onde vão, sobre para que serve tudo isto.”
Em jeito de remate final, fiquemos com a inquietante observação que Adam Curtis fez, quando foi convidado a falar, em 2018, num fórum cujo tema era Os Múltiplos Futuros do Capitalismo. Cinco anos depois, ainda é algo para refletir com seriedade:
“Eu sou um jornalista, e se há algo em que os jornalistas são mesmo bons é em ir para a rua e descobrir aquilo que as pessoas pensam e sentem. Estive aqui sentado, ao longo de toda a tarde, e fiquei um pouco chocado por ninguém dos painéis de debate ter mencionado… o povo, aquilo que o povo pensa sobre o capitalismo. A sério? Estas são as pessoas em nome das quais vocês fazem funcionar este sistema: é esse o vosso trabalho, o de fazê-lo funcionar em prol delas. Apenas vos quero dizer, e de uma forma bastante sucinta, que vocês estão face a um problema bastante sério, e não me parece que o tenham realmente encarado ao longo de todas as conversas que tiveram durante a tarde de hoje.
No meu país [Reino Unido] e nos EUA, o povo – e atenção que não estamos aqui a falar dos ‘deploráveis’ a que a senhora Hillary Clinton fez menção [durante as presidenciais de 2016 nos EUA, referindo-se aos apoiantes de Donald Trump], estamos a falar de grandes segmentos do povo – pensa que o capitalismo não lhes dá futuro algum e, ainda, que talvez aquilo que exista já não seja capitalismo, tendo-se mutado para outra coisa. Mas, e nisso eles têm certeza, o que existe não vai ao encontro dos seus interesses. […]
Eu fui ensinado a acreditar que a democracia e o capitalismo estão intimamente interligados. A ideia é esta: nós damos-vos o nosso voto e, em troca, vocês levam-nos a até um lugar em que a nossa vida será melhor. Essa interligação parece estar quebrada na mente de milhões e milhões de pessoas. Dai estar um pouco chocado por não terem mencionado nada disto. […] Se não soubermos para que é que tudo isto serve, então vamos virar a nossa atenção para uma outra pessoa, a qual nos vai contar histórias sobre o que certa coisa é… e essa coisa não é o capitalismo, isso garanto-vos eu.
Acho que todos vocês são muito inteligentes, muito mais do que eu. Apenas vos quero reportar, enquanto jornalista, que o povo sente que o capitalismo não lhes dá um futuro. Dá-lhes zero, porque já não lhes conta uma história sobre para onde vão, sobre para que serve tudo isto.”