O que tem estado em debate e inflamado as hostes na casa onde se sentam os eleitos pelo povo para legislar de forma a resolver problemas e ineficiências que a todos os portugueses afetam é uma questão de superior importância. E nem sequer estou (ainda) a ser irónica. O tema é que, nos 50 anos do 25 de Abril, parece que muitos — e, surpreendentemente, a maioria dos que se dizem "donos da Revolução" — ainda defendem que a liberdade deve ser só para alguns. A mordaça só mudou de lado, passando a ser brandida por quem antes a queria queimar.
Veja-se o pé de vento montado pela esquerda, a que se diz moderada e a que não se assume extremista, contra Aguiar Branco depois de o presidente da Assembleia da República ter feito uma afirmação que, repito, 50 anos depois do 25 de Abril, não devia precisar de ser feita. "Se houver alguém que acha que deve ser feita censura à intervenção dos deputados recorre da decisão do presidente da Assembleia. Aí o plenário é que fará a censura, não serei eu."
Mas a esquerda não concorda. Antes considera que se deve medir as palavras pela bitola daquilo que a esquerda entende ser correto — o que nem é surpreendente vindo de quem há tempos queria acabar com o "machismo dominante" alterando a designação do Cartão "de Cidadão" para "de Cidadania" ou que perverte diariamente as regras da língua portuguesa (perdemos "todes" a cabeça?!) porque tem de ser moderninho. Os mesmos que pugnam pela imposição do politicamente correto, independentemente de quem ofendam, mas não se coíbem de fazer verdadeiros manifestos contra a moeda única ou a pertença ao espaço europeu e à Aliança do Atlântico Norte. Os mesmos que defendem a liberdade para todos, desde que esses todos pensem da mesma maneira que eles e que por isso não perdem um segundo a insurgir-se contra um ato grave como a vandalização da fachada de um órgão de comunicação social — porque, acreditam, quem o fez está "do lado certo".
A mim, surpreende mais, por exemplo, que ninguém se sinta tocado com as acusações frequentemente trocadas na Assembleia entre os adultos na sala... mas isso sou eu. Eles lá saberão se têm ou não razão para se ofender quando acusados de mentirosos, criminosos, ladrões e tudo o mais de muito pouco edificante que se escuta a quem ali devia fazer ponto de honra da defesa do mandato que lhes foi entregue. Mas adiante.
A verdadeira questão é que há quem pretenda que devem existir limites a priori à liberdade de expressão. O que, numa palavra, se traduz por censura. Mais, entendem que esses limites devem ser estabelecidos por alguns pretensos defensores de uma certa moral, mesmo que contra a perceção e os princípios de outros. E advogam essas limitações ao discurso com a mesma veemência com que criticam aqueles que, em tempos idos, proibiam a liberdade de expressão.
E repare-se que os tiques totalitários — é mesmo disso que se trata — vão ao ponto de não se querer debater o assunto ou sequer escutar antigos presidentes do Tribunal Constitucional sobre a eventualidade de ser recomendável, ou não, traçar linhas vermelhas ao discurso dos deputados. Quer-se proibir alguns de dizer tudo o que pensam na casa da democracia. É isto. Sendo que os censurados são um grupo muito bem identificado: os deputados do Chega, o terceiro partido mais votado nas últimas legislativas. Que é o mesmo que dizer que se quer limitar ou silenciar a vontade expressa por mais de 1 milhão de portugueses.
Não preciso de me incluir nessa fatia para considerar ofensiva e extremamente perigosa a mera pretensão de que uns têm mais direito a estabelecer balizas do que outros, quando todos foram eleitos no mesmo sufrágio e pelas mesmas regras, estando ali a cumprir um mandato tão legítimo quanto todos os demais. Longe vão, de facto, os tempos em que o fundador do Be, Francisco Louçã, jurava que diria sempre, na Assembleia, "tudo aquilo que quisesse dizer", defendendo que "a democracia é defender o direito da opinião de TODOS, sem exceção".
É isto que nos traz a ditadura do politicamente correto: a ideia de que uns valem mais do que outros, de que as ideias de uns são mais válidas do que as de outros. Não concordar com uma ideologia não significa que seja legítimo proibir ou limitar o discurso a quem a expressa — não é exatamente isso que se critica ao anterior regime? Os abusos estão previstos na lei e os abusadores sujeitos a sanções. Mas nunca podemos aceitar que a regra seja a proibição.
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