
Já está aposentado, mas continua ativo… A MGF é assim tão irresistível?
Sim, estou a dar aulas de Pós-graduação no INDEG/ISCTE e vou sempre acompanhando tudo o que se passa na MGF, com muito interesse e … preocupação. As pessoas, apesar de aposentadas, podem estar em muito boa forma! Obviamente, hoje, tenho mais tempo para outras atividades. Por exemplo, nunca tinha ido para o ginásio e, nos últimos tempos, vou com regularidade. Ainda escrevo artigos, nomeadamente para revistas. O mais interessante é, sem dúvida, dar aulas.
Ainda consegue aprender com os alunos?
Sim, sempre! Lecionei durante muitos anos na Faculdade de Ciências Médicas, dando aulas a alunos de Medicina e foi uma experiência muito gratificante. Nas pós-graduações são pessoas com experiência profissional e o debate é muito mais vivo, com partilha de experiências pessoais.
E porquê essa preocupação de que acabou de falar quando olha para a MGF?
Estou bastante preocupado. Há um conjunto de fenómenos que foram, inclusive, partilhados pela Dr.ª Mónica Granja, num excelente artigo que publicou recentemente, e com os quais concordo totalmente. Em primeiro lugar, esta transformação, a nível do SNS, em unidades locais de saúde (ULS), que é algo pernicioso para a saúde em geral e, em particular, para a MGF.
Em segundo lugar, o movimento de alguns médicos de família que se centram na prevenção da doença e na promoção da saúde quase em exclusivo, deixando áreas importantes, como a doença aguda e a agudização de doenças crónicas. Se as pessoas não conseguirem encontrar no seu médico de família, na sua equipa de família, resposta para essas situações vão acabar por ir às urgências hospitalares, com todas as consequências daí decorrentes. A continuidade de cuidados, que é uma das características da Medicina Familiar, está a ser posta em causa com essa falta de resolutividade dos centros de saúde. Na Holanda, 95% das situações que chegam ao centro de saúde são resolvidas, apenas 5% são encaminhadas para hospital. Isso devia ser a nossa realidade, mas vejo que surge este movimento, em que parece que se esquece a Medicina curativa.
Em terceiro lugar, temos descurado, um pouco, o atendimento fora de horas. Os CSP têm de se organizar para prestar esse serviço, não deixando tudo para os hospitais.
“As ULS, para os CSP, contribuem para que estes percam autonomia e as suas características identitárias”
Tendo em conta esses tópicos que acabou de abordar, comecemos pelas ULS. Por que é pernicioso ter ULS em todas as regiões?
O problema, em si, é o modelo. Primeiramente, gostaria de deixar claro que é sempre perigoso generalizar e que temos ULS a funcionar de forma muito distinta e com níveis de satisfação diferente de profissionais e utentes. Já tínhamos, há uns anos, oito ULS e a única avaliação das mesmas, por parte da Entidade Reguladora da Saúde, não foi propriamente favorável. O que sabemos, de acordo com experiências no estrangeiro, como Espanha ou EUA, é que não são positivas. As ULS, para os CSP, contribuem para que estes percam autonomia e as suas características identitárias. A Prof.ª Bárbara Starfield, nos seus trabalhos de investigação, demonstrou que os CSP são a maneira mais eficiente de prestar cuidados de saúde e de se obter melhores resultados a um custo mais baixo. Isso deixa de acontecer nas ULS, porque os médicos de família passam a comportar-se como médicos hospitalares, ficando para trás a eficiência e a proximidade. O modelo em si – independentemente das pessoas que estão à frente e que têm muito valor – tem uma organização com uma cultura muito enraizada de comando e controlo, própria de hospital. Os hospitais, sobretudo os maiores, têm necessidades complexas, que absorvem a ULS, e os CSP perdem com isso.
Dever-se-ia, antes, ter-se optado por soluções ad hoc, com base na realidade local e focadas na articulação entre CSP e hospitais?
Sou completamente a favor da integração de cuidados! Não existe qualquer dúvida de que os diferentes níveis de cuidados têm de trabalhar em conjunto, dando respostas coordenadas entre todos. Mas isso não significa que tenham que ser geridos em conjunto, porque perdem a sua autonomia, que é absolutamente necessária à satisfação dos profissionais e dos utentes. Não o é sequer para os hospitais que foram sobrecarregados, repentinamente, nas áreas de logística e recursos humanos, ao integrarem os CSP. A integração é importante, sobretudo, em duas áreas fundamentais: sistemas de informação, que devem ser comuns; e as normas de orientação clínica. Com estes dois aspetos consegue-se muito mais resultados em termos de integração do que com uma gestão conjunta.
“A situação não é positiva: a população queixa-se da falta de acessibilidade e não vemos as melhorias que sonhávamos em 2005 – mesmo onde se conseguiu, não há visibilidade”
O Governo caiu, mas, poucos dias antes, anunciou o regresso de cinco parcerias público-privadas (PPP). Se esta medida avançar, acha que ainda vai tornar este processo das ULS mais complicado?
Sim, vai com certeza. No caso das ULS universitárias, teve de se encontrar uma solução. Com as PPP, se se avançar, também se terá de encontrar uma forma de gerir os CSP nessas regiões. Vai haver soluções diferentes, o que não é mau, porque não tem que existir um único modelo. As necessidades de cada região diferem. Vamos ver…
Esteve à frente da Unidade de Missão dos CSP (MCSP), acompanhando a reforma desde o início. Imaginou que, em 2025, houvesse esta crise nos CSP?
Celebramos, em outubro deste ano, 20 anos da reforma dos CSP. Escrevi, com o Dr. Victor Ramos, um artigo para a revista brasileira “Saúde e Ciência Coletiva”, no qual dividimos a reforma em quatro períodos de 5 anos. Entre 2005 e 2010 viveu-se um grande entusiasmo e as pessoas estavam muito motivadas e confiantes, tendo-se criado muitas USF; de 2010 a 2015 passámos por uma crise económica e a reforma sofreu contratempos, já que se esperava que os ACeS tivessem os profissionais e as competências que todos desejávamos, como Psicologia, Nutrição, Fisioterapia, etc.; entre 2015 e 2020 foi um período terrível, porque ainda não se tinha conseguido recuperar de uma crise e já se estavam a pedir mais sacrifícios; e, por fim, entre 2020 a 2025 temos a pandemia de covid-19, com toda a sobrecarga e, mais recentemente, a mudança e a transformação do SNS em ULS.
Olhando para estes períodos, vê-se que se perdeu o entusiasmo e o brilho iniciais. Seria necessário dar nova vida e mais ânimo às pessoas. Esta transformação precipitada em ULS, colocando os CSP, mais uma vez, subalternizados aos cuidados hospitalares, gera ainda menos confiança. A situação não é positiva: a população queixa-se da falta de acessibilidade e não vemos as melhorias que sonhávamos em 2005 – mesmo onde se conseguiu, não há visibilidade. É deprimente olhar para os noticiários e ver apenas o que acontece de mal no SNS! Tudo o que é bom não vê a luz do dia. É preciso trabalhar esta questão. Não se pode dizer que a culpa é dos jornalistas. Ou nós mostramos as boas práticas ou só se fala dos 1,5 milhões de cidadãos sem médico de família, que os políticos utilizam, constantemente, como arma de arremesso uns contra os outros.
E como se pode voltar a ter ânimo e confiança?
Os CSP, neste momento, estão completamente atomizados pelas ULS. Corre-se o risco de cada um começar a ‘inventar’ coisas e haver até alguma competição entre ULS. Os cuidados primários têm de trabalhar, primeiramente, para que haja acessibilidade – é crucial e não considero que seja sempre a prioridade – e têm que ser eficientes. Para o SNS, a equidade é essencial: dar uma resposta segundo a necessidade existente. Deveria existir uma estrutura que permitisse a uniformização. Obviamente, a criatividade é ótima, mas tem de ser para toda a população. E desta forma também se conseguiria alterar a imagem que estamos a projetar, atualmente, para o exterior.
“Gostava que não tivesse havido transições quase passagens administrativas. Ter USF em modelo B é positivo, mas deveria ser por mérito…”
Neste momento, nem sequer a Equipa Nacional de Apoio (ENA) consegue trabalhar…
Sim. Essa uniformização até deveria estar sob a alçada da Direção Executiva do SNS (DE-SNS), mas tem tido tantos problemas… Não tem havido a estabilidade necessária para esta tarefa hercúlea. A MCSP estava apenas dedicada a essa área, com elementos de diferentes áreas (sindicatos, ordens, associações, etc.) que tinham um conhecimento profundo do que eram os CSP.
Como avalia a generalização das USF modelo B, quando havia equipas que ainda não tinham todos os critérios que se exigia, anteriormente, para essa transição?
Gostava que não tivesse havido transições quase passagens administrativas. Ter USF em modelo B é positivo, mas deveria ser por mérito, sendo claro para todos que se cumpriram os requisitos e a metodologia. Face à realidade atual, é preciso dar mais apoio a essas unidades, mas as equipas regionais de apoio (ERA) desapareceram e, dentro das ULS, poderão vir a ser abandonadas.
Esta medida não poderá, de algum modo, desvirtuar a USF modelo B?
Esse é o receio. Todos sabiam que o modelo B é sinónimo de qualidade; as equipas ultrapassavam um conjunto de estádios de desenvolvimento. Se se facilita ou se se criam degraus de acesso mais simples, poder-se-á desvirtuar o modelo e pôr em risco a forma de pagamento, de organização, a própria credibilidade do modelo USF.
“As USF têm de perceber que, à sua volta, existem outras unidades. Não há ilhas de excelência no meio do nada”
Relativamente à remuneração, ainda temos questões que se podem considerar eticamente discutíveis, quando o Índice de Desempenho da Equipa (IDE) dá muita importância a indicadores como prescrição de MCDT e fármacos?
Os profissionais de saúde têm a sua ética. É possível ter-se eficiência sem quebra de qualidade e isso sempre foi dito desde o início. O modelo USF foi criado e aceite, porque os ganhos de qualidade e de eficiência, nomeadamente nos MCDT e fármacos, era suficiente. O modelo pagava-se a si próprio, sem grande dificuldade. É preciso que o IDE seja, de facto, sinónimo de eficiência e não outra coisa qualquer. Esta questão dos indicadores e do pagamento por desempenho é algo muito trabalhoso e requer acompanhamento constante. Não pode haver qualquer dúvida de que aquelas pessoas que ganham mais, merecem-no. À semelhança do que faziam os ingleses há uns anos, seria importante que entidades independentes, como universidades, estudassem os indicadores e, periodicamente, os alterassem, se fosse necessário.
E, além dos incentivos financeiros, também deveria haver outros não financeiros. Hoje, quer-se melhores condições de trabalho e de vida, conciliar a vida profissional com a pessoal e nada disso se tem visto. Às vezes, até surge legislação, mas não é posta em prática. E é preciso ter atenção a outro aspeto: cuidar de quem cuida. Preocupam-me os jovens. Para se manterem ativos e saudáveis, deve haver investimento na Saúde Ocupacional nos CSP. Esta área falha por completo. Nas ULS, existe Saúde Ocupacional, mas está, atualmente, sobrecarregada, ao ter de dar resposta aos profissionais dos hospitais e dos CSP.
Na reforma dos CSP há quem critique a rigidificação das USF. Concorda?
Sim, concordo. Mas, apesar disso, se o ambiente de trabalho for bom e se houver apoio, as pessoas procuram soluções e continuam a avançar. Essa rigidez nas USF também acontece, porque estas unidades nasceram num contexto difícil, tendo havido conflitos com os centros de saúde e isso levou a que as USF olhassem muito para o seu umbigo, centrando-se muito em si. O Dr. Victor Ramos dizia, há uns tempos, que as USF não podem ser ilhas isoladas, mas arquipélagos. As USF têm de perceber que, à sua volta, existem outras unidades. Não há ilhas de excelência no meio do nada. O que também contribui para o desgaste é o trabalho em equipa e as USF também passaram pela fase de que se saía alguém que tinha iniciado o projeto, seria uma tragédia. Não se vê nada disso. As pessoas podem entrar e sair das organizações sem grande problema, porque se se mantiverem podem até tornar-se disfuncionais, como já se observou na Catalunha ou em Inglaterra. Eles começaram o trabalho em equipa muito antes de nós e, quando avançámos com as USF em Portugal, já eles sentiam o desgaste de trabalharem sempre com a mesma equipa, sem terem apoio para gerir os conflitos.
“Há um movimento oposto à saúde global, que é a saúde local. Há uma certa nostalgia, saudade, dos centros de saúde que surgiram nos 1970 e que é um conceito que se arrisca perder”
Não tem havido também uma rigidez em relação aos colegas das UCSP?
De facto, foram pouco solidárias com os restantes colegas do centro de saúde. Obviamente, não podemos generalizar, mas, de uma forma geral, aconteceu isso. Repare, a falta de equidade na distribuição de recursos foi assumida ainda inicialmente. Não era possível que se começasse logo a criar USF em todas as regiões. Primeiro, era preciso provar que era um bom modelo, para depois se generalizar. Ao longo destes 20 anos tem havido muitas vicissitudes, com recuos, avanços, paragens… Às vezes, isso também contribui para que as USF se protejam para conseguirem sobreviver num ambiente hostil…
No futuro, tem que se pensar no que vai acontecer. Há um movimento oposto à saúde global, que é a saúde local. Há uma certa nostalgia, saudade, dos centros de saúde que surgiram nos 1970 e que é um conceito que se arrisca perder. Quando foi a reforma de 2005 não se quis perder o conceito de centro de saúde, mas quando desapareceram os ACeS deixou de haver referência aos centros de saúde. Apesar de tudo, para nós, é um termo que tem conotações muito positivas, que lembram proximidade, qualidade. Nos anos 1970, o conceito era small is beautiful. No fundo, é pensar globalmente e agir localmente. Esta saúde local é importante, porque parece que tudo se resolve com linhas telefónicas… Não pode ser! A equipa de saúde familiar é de primeira linha, não se pode transformá-la numa linha telefónica. Tem de se repensar o que fazer para voltar a ganhar resolutividade nos CSP. Provavelmente, neste conceito de ULS, muitos dos que trabalham no hospital, teriam que trabalhar no ambulatório, tendo em conta a Saúde Local. Existem atualmente alguns absurdos, em que o mais caricato será o doente já estar no hospital e ter de ligar para uma linha telefónica para ser consultado! É um completo non-sense!
E os utentes sem médico de família? Não deveria haver alternativas às USF?
Isso resolveu-se da pior maneira, com a criação de centros clínicos de atendimento que são como os serviços de atendimento permanente (SAP), apesar de se ter chegado à conclusão de que estes não são uma boa solução. As USF, no início, deram grande cobertura às necessidades da população, com muita qualidade, e sem terem utentes à porta desde a madrugada. E ainda assim o é em muitos locais. Mas, o modelo de pagamento por desempenho levou-nos muito a centrar a nossa atenção na prevenção da doença, na promoção da saúde e nos doentes crónicos estabilizados. E os outros? Estão na urgência do hospital ou nos centros clínicos para situações agudas. Também temos que chamar os doentes que não cumprem o tratamento e isso é possível nos CSP.
“Todavia, não acho que as USF C sejam uma ameaça, um perigo ou a privatização do SNS. Isso é um completo disparate!”
Como vê projetos como o “Bata Branca” e a USF modelo C?
O projeto “Bata Bata” resolveu algumas situações e até foi buscar apoio na área social, que tem apetência para trabalhar com o SNS. Penso que se podem encontrar boas soluções nesse âmbito. A experiência da Via Verde Saúde também foi uma boa iniciativa. Quanto ao modelo C, parece-me que vai ser um problema grande, porque este estava previsto para ser algo complementar, em locais onde não havia capacidade de resposta. É demasiado trabalhoso montar um modelo C para que se resolva algo. Não acredito que seja a solução, a não ser, talvez, nalguns casos pontuais.
Todavia, não acho que as USF C sejam uma ameaça, um perigo ou a privatização do SNS. Isso é um completo disparate! Aliás, em Inglaterra, as clínicas de CSP são privadas (pertencem às equipas) e têm um contrato com o Estado. É prestado por privados? Desde que cumpram as regras estabelecidas pelo Estado… O mais importante é que se avaliem estes projetos, para se perceber se, de facto, são uma mais-valia…
Esse é um problema e uma falha em Portugal… Não se avalia.
Pois, é verdade. Nos EUA, o sistema de saúde não é um bom exemplo para nenhum país, mas há algo que fazem muito bem: avaliação. Ao final de um ano de projeto, sabem muito bem se ganham ou se perdem. Em Portugal, eternizamos os modelos sem sabermos se são eficientes ou não.
Outra das suas preocupações é o excesso de foco na prevenção da doença e na promoção da saúde. Que movimento é esse?
Ouve-se nas redes sociais e nos fóruns de que o ‘negócio’ dos CSP é a saúde e não a doença e que a prevenção é a base da nossa atividade. McWinney no seu tratado de Medicina Familiar, já dizia, há muitos anos, que não se deve perder uma oportunidade para se fazer prevenção. Isso é importante, mas não se deve fazer disso a nossa atividade principal.
E depois há a questão dos horários de atendimento…
A nossa resposta não pode ser das 8h às 20h. Qualquer país civilizado tem um modelo de atendimento fora de horas durante a semana e ao fim de semana. Mesmo que não esteja o médico de família do utente, há outro. Isso contribui para que se olhe para os CSP com confiança, como uma entidade que dá resposta. Esta não tem, contudo, que ser uniforme a nível nacional; vai ter em conta as necessidades de cada local.
“Ser médico de família é uma profissão complexa, por isso é preciso que haja também incentivos não financeiros e apoio”
Não tem que ser um SAP, mas deve existir alguma resposta.
Sim. A partir das 0h até às 8h, dificilmente se justificará que os CSP estejam abertos, a não ser em situações muito excecionais.
Os mais jovens têm uma nova maneira de ver a vida, querendo maior equilíbrio entre vida profissional e familiar e pedem maior flexibilidade de horário. Concorda?
Sim, completamente. Já em Inglaterra, quando começou a haver mais mulheres na profissão, se percebeu como era importante esse equilíbrio e flexibilidade e conseguiram, com algumas medidas, aumentar 20% os recursos em saúde. Portugal age como se não houvesse grávidas, como se ninguém adoecesse… Os médicos têm direito a ter uma vida pessoal. Ser médico de família é uma profissão complexa, por isso é preciso que haja também incentivos não financeiros e apoio. É preciso apostar na atualização de conhecimentos, com bons programas de formação – segundo as necessidades dos médicos e não da indústria farmacêutica – e prevenir o burnout. Neste momento, o brilho de ser médico de família está a empalidecer-se…
Há muitos jovens que não querem ter uma especialidade. Já não se trata apenas de não se ficar no SNS. O segredo para captar e fixar médicos é mesmo esse: não nos limitarmos a incentivos financeiros?
Estive durante 17 anos no European Working Party on Family Practice e, nessa altura, já se discutia esta questão noutros países, como na Finlândia. A ideia romântica do médico de família que vive numa comunidade isolada já era posta em causa. Temos que ter atrativos. O Estado tem que ter uma oferta que seja competitiva com o setor privado, que oferece outras condições e flexibilidade. Assim como imagem. O privado ainda tem aquele brilho – vamos ver durante quanto mais tempo… É uma concorrência desleal, de facto.
Esteve à frente da ARS LVT. Concordou com a extinção?
Tenho conflitos de interesse … [risos] Estive na ARSLVT quase 15 anos como vice-presidente e como presidente e, quando estive na MCSP, também acompanhei a ARSLVT. As ARS tinham já 32 anos de atividade e, anteriormente, tinham existido 18 ARS, durante 11 anos. É um nível de gestão intermédio que é útil e interessante e que outros países estão a adotar. Portugal, sem uma razão muito evidente – como se quisessem encontrar um bode expiatório – extinguiram-nas. As ARS, basicamente, colocavam no terreno as políticas de saúde do Ministério da Saúde. Não tinham políticas próprias e sempre procuraram estar interligadas para existir alguma uniformidade na forma como as aplicavam. Parece-me que a sua extinção não resolveu nada, além de ter sido feita de forma atabalhoada, de ter gerado stress e problemas para muitas pessoas que trabalhavam nas ARS, por causa da incerteza sobre o seu futuro. Poder-se-ia ter feito as coisas de forma mais clara. No caso da LVT, havia mais de 500 portas abertas, mais de 10000 pessoas a trabalhar, era responsável pela saúde de 3 milhões e 500 mil pessoas, cerca de um terço da população portuguesa! É estranho que, de repente, deixasse de existir. Veremos, no futuro, a falta que este nível de gestão fará… sobretudo na diminuição da variabilidade indesejável.
“A carreira na gestão em saúde foi algo acidental, porque sempre me vi a terminar a minha carreira como médico de família”
Havia queixas de que as ARS eram uma “máquina pesada”. O que tem a dizer desta crítica?
Essa queixa mantém-se sem as ARS. A maior crítica, que é justa, é a falta de autonomia, seja das ARS, das ULS… obviamente, se é preciso um arranjo numa unidade que não fica em Lisboa, fala-se com as autarquias, que vão dar apoio. Aliás, em relação aos municípios, devo dizer que a colaboração entre ARS, autarquias e Ministério da Saúde funcionou muito melhor, quando era voluntária, do que quando se transferiu competências. Também não podemos esquecer a forma como funciona a Função Pública, onde se criou um conjunto de burocracias muito complicado.
Ainda colabora com o Brasil?
É verdade, é uma colaboração longa. Uma delegação da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro virá a Portugal, ao Congresso Mundial da WONCA, em setembro, onde teremos uma mesa com o Dr. Daniel Sorans, que é o secretário de estado da Saúde do Rio de Janeiro. Vamos também lançar a revista “Saúde e Ciência Coletiva”, com artigos de portugueses e brasileiros. Temos a mesma língua e objetivos semelhantes, daí esta colaboração. Os artigos serão, ainda, traduzidos para inglês e espanhol, o que lhes dá ainda mais visibilidade.
Ao longo destes anos, o que gostaria de destacar na sua carreira profissional?
Gostei muito de ser médico de família, é a minha formação de base. Fui médico de família durante 14 anos na Foz do Arelho e foi uma experiência muito boa. Depois, ao fim de 12 anos fora da região, regressei para mais um ano e meio de atividade clínica. Adorei! Tenho sido um felizardo por conseguir abraçar projetos muito interessantes como o Instituto de Qualidade da Saúde, onde trabalhei com uma equipa de luxo. Foram 5 anos muito gratificantes. O mesmo senti na MCSP, porque o Ministro da Saúde Correia de Campos deu-nos muito apoio e autonomia. Foi extraordinário! Outro ponto que guardo com gratidão foi o ser presidente da APMCG. Trabalhar na associação é contar com pessoas muito interessadas e motivadas, que admiramos, é algo muito bom. A ARS foi um desafio terrível! Devo ter batido todos os recordes de permanência numa ARS, de 2011 a 2024, em que se teve de ultrapassar uma crise económica, uma pandemia… Aliás, sabia que não ia ser fácil, porque vi como foi com colegas anteriores. Mas, após ter feito tantas coisas boas, também devia ter uma tarefa mais difícil. A nível internacional estive, durante 7 anos, na direção da Sociedade Europeia. Aprendi muito e trouxe esse conhecimento para Portugal. A carreira na gestão em saúde foi algo acidental, porque sempre me vi a terminar a minha carreira como médico de família.
Maria João Garcia
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