Como é que surgiu a ideia de se criar a Associação Portuguesa de Médicos de Família Independentes?

A APMF é o renascer de uma associação que já existiu há 25 anos. Os médicos de família privados, independentes, têm um espaço no sistema de saúde, mas precisam da sua ‘enxada’ de trabalho, que é prescrever meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). Por outro lado, a APMF visa promover a Medicina Geral e Familiar (MGF) no setor privado e que é uma realidade desde há muitos anos, mesmo antes da criação da especialidade, assente sempre numa relação de confiança entre doente e médico.

Na prática, há quem prefira ir ao médico de família no SNS, mas também há quem entenda que deve ter essa assistência no setor privado e é preciso que haja essa oportunidade, sem penalizações, nomeadamente no que diz respeito ao acesso a MCDT com comparticipação do Estado.

Atualmente, Portugal tem 1 milhão e 600 mil utentes sem médico de família. O Ministério da Saúde abriu, recentemente, a hipótese de se criarem USF modelo C e de se instituírem convenções de MGF. Supostamente, deveria ter aberto um concurso para modelo C em julho do ano passado, mas tal ainda não aconteceu. Um dos problemas que poderá justificar este atraso é o preço proposto pela ACSS , que não é minimamente atraente.

As convenções de MGF também estavam previstas no Plano de Emergência e Transformação da Saúde para 2024, mas as mesmas também não avançaram. Nem sequer temos informações sobre esta medida. A associação pretende, assim, ter um papel como interlocutor junto do Ministério da Saúde nestas áreas, para defender, nomeadamente que estes médicos podem ajudar os muitos portugueses sem médico de família.

Por outro lado, nos subsistemas de saúde e nos seguros de saúde também é preciso haver um interlocutor dos médicos de família. E depois há uma outra área, onde há muitos médicos de família que trabalham como independentes, como é o caso dos prestadores de serviços nos hospitais privados. Trabalham, mas não são representados pelos sindicatos. Esta associação também engloba estes profissionais.

“Há quem vá ao médico no privado, mas depois não tem como pagar os exames, o que acaba por não ter qualquer benefício prático para a sua saúde”

Relativamente aos médicos de família do setor privado, um dos principais desafios é mesmo esta questão da prescrição dos exames?

A prescrição dos exames é uma ‘enxada’ fundamental para o nosso trabalho. Já pedimos mesmo reuniões para discutir esta questão com a Ordem dos Médicos e o Ministério da Saúde.

Note-se que podemos ser uma grande parte da solução dos utentes sem médico de família. São um milhão e 600 mil utentes sem médico de família e este número vai, certamente, aumentar à medida que os imigrantes forem legalizados. Quem não tem médico de família fica excluído do acesso à saúde. Mesmo estando no privado, não tem como fazer os exames comparticipados – nem todos os podem pagar -, não há continuidade de cuidados, nem pode ser referenciado para o hospital. A única porta de entrada é a urgência hospitalar e, muitas vezes, vão já numa fase tardia da doença.

Repare que, no Norte, em que existe uma cobertura praticamente total de médicos de família do SNS, não houve problemas nas urgências. No Sul, houve bastantes. Estas dificuldades acarretam um custo grande, quer do ponto de vista pessoal, quer financeiro. E estamos a falar de vários anos, deixando estes utentes perdidos, sem acompanhamento, sem rastreios. Este problema só se consegue resolver com recurso à rede privada de médicos de família, que está presente em todas as regiões em consultórios, clínicas ou hospitais privados.

Face a isto, os médicos de família deveriam poder prescrever exames comparticipados aos utentes que não têm médico de família, assim como poderem referenciar para hospital. Há quem vá ao médico no privado, mas depois não tem como pagar os exames, o que acaba por não ter qualquer benefício prático para a sua saúde.

Por outro lado, se permitirmos e facilitarmos o opting out, possibilitando ao utente escolher se quer ter médico de família no público ou no privado, isso iria permitir disponibilizar as vagas deixadas em aberto por quem opta por um médico de família privado, para quem precisa no SNS. Atualmente, há quem tenha médico de família nos dois setores, porque receia perder direitos, nomeadamente o aceso a exames com comparticipação. Com o opting out, apenas em Lisboa, seriam mais 200 mil utentes que passariam a ter médico.

Existem outras soluções, como as convenções, que ainda não avançaram. Mais uma vez, a única razão que se encontra para não terem ainda avançado será o preço que o Ministério das Finanças permite pagar. Se não for atrativo, não há candidatos. O mesmo problema acontece com as USF modelo C, que são estruturas mais complexas e onerosas. O que se sabe das primeiras propostas negociais avançadas é que aquilo que a ACSS estava disposta a pagar não chegaria sequer para pagar os ordenados equiparados aos dos profissionais das USF modelo B em início de carreira. E faltava, claro, ter financiamento para as restantes despesas, isto quando o modelo de contratação previsto é o de concurso público, que implica uma caução pesada e uma responsabilidade por um período de 5 anos.

Se se possibilitasse aos médicos do privado, independentes, prescrever MCDT, ter-se-ia uma solução mais fácil, mais rápida e mais barata.

“A ministra é ministra da saúde, não é só ministra do SNS. A complementaridade entre setores não pode ser vista só quando é o Estado a pagar”

E evitar-se-ia que uma “essoa tivesse dois médicos de família…

Exato, há muitas pessoas nestas condições, quando quem mais precisa está sem médico. É o caso dos idosos, que são aqueles que mais necessitam de cuidados de saúde e que não têm acesso a seguros de saúde. O preço é inacessível a muitos deles. Seria importante apostar-se na complementaridade entre o setor público e o privado, que é, inclusive, uma causa deste Governo. A primeira, e a principal promessa eleitoral da AD, em 2023, foi dar um médico de família, até ao fim de 2025, a todos os portugueses. Isto só vai ser possível recorrendo à rede privada de médicos de família. E esta medida pode ser tomada sem grandes burocracias e sem concursos complicados. Tenho esperança que o Ministério da Saúde olhe para este problema e que vá ao nosso encontro. A ministra é ministra da saúde, não é só ministra do SNS. A complementaridade entre setores não pode ser vista só quando é o Estado a pagar. É preciso que as pessoas também possam escolher sem serem penalizadas por isso. Atualmente, se a pessoa optar por médico de família no privado é penalizado e não tem acesso aos exames comparticipados, mesmo quando não os pode pagar. Isto não faz sentido!

Tem existido sempre uma grande pressão ideológica na saúde?

Sim, existe uma visão estatista, que persiste desde Salazar. A complementaridade contribuiria para uma maior harmonia entre setores, ao contrário do que se passa quando se tem, por um lado, uma rede pública, e por outro, uma rede privada. A visão do Estado e do Ministério da Saúde tem que ser para a globalidade do sistema de saúde, para que se possam resolver os problemas existentes e para que haja, inclusive, maior fiscalização na rede privada. Neste caso concreto, a Entidade Reguladora da Saúde só atua quando há queixas ou cinge-se apenas a questões burocráticas. O processo de licenciamento é extremamente complexo e dispendioso no privado.

Quando se fala em MGF, em cuidados de saúde primários, destaca-se sempre o papel da equipa de saúde familiar, que incluiu outros grupos de profissionais de saúde. No privado também deveria haver alguma replicação deste modelo?

Em grande parte dos países avançados, não existe esta ideia de equipa de saúde. Um dos problemas que existe em trabalhar em conjunto com a enfermagem no setor é que a mesma não é paga. Os seguros de saúde não pagam consultas de enfermagem e dão muito pouco por tratamentos de enfermagem. Não tenho nada contra a multidisciplinaridade, mas existe, de facto, um problema de financiamento. Provavelmente, deveria existir uma articulação entre os médicos privados e os enfermeiros das unidades públicas.

“A integração permitiria ter uma radiografia da saúde da população portuguesa”

Além da decisão política, que passos devem ser dados para que possam prescrever exames?

A decisão política é a medida mais fundamental, seguindo-se a partilha do sistema informático do SNS. Neste campo seria importante avançar-se com o processo eletrónico único; já se está a trabalhar nesse sentido e esse pode mesmo ser o passo essencial para um trabalho de maior complementaridade entre setores. O Estado, atualmente, não sabe o que é que se passa em termos estatísticos e de resultados clínicos nos hospitais privados. A integração permitiria ter uma radiografia da saúde da população portuguesa. Por outro lado, seria possível à ACSS ter controlo da despesa feita pelos médicos de família privados com MCDT.

Considera que a aposta nas USF modelo C, por parte do Governo, pode pôr em causa ou atrasar de alguma maneira esta vossa proposta da complementaridade para que deem resposta a utentes sem médico de família?

Não, penso que o Ministério já percebeu que é mais fácil optar por este modelo de permitir que os privados possam prescrever MCDT com comparticipação. As USF modelo C são estruturas muito pesadas. O Ministério das Finanças está muito preocupado com a abertura dos MCDT comparticipados nos privados, mas tal não se justifica, porque esta resposta seria apenas para quem não tem médico de família.

Relativamente aos seguros e aos subsistemas, o que defendem?

Uma das ideias a estudar é a possibilidade de passar a haver a alternativa de pagamento por capitação. Também devem ser revistas as tabelas. E sendo o financiamento do setor privado da saúde, maioritariamente, pago pelos seguros de saúde e ADSE, a adesão dos médicos de família deve ser aberta a todos os médicos.

Para quem queira fazer parte da associação, o que é que pode fazer?

Basta enviar um e-mail para APMF@APMF.pt. Quantos mais médicos de família privados estiverem associados, mais força teremos.

Maria João Garcia

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