As eleições só funcionam se todos os intervenientes respeitarem o seu resultado. Ontem, o triunfo de Donald Trump foi amplo e inquestionável. Já imaginaram o que seria se os democratas viessem dizer que foi tudo roubado e foram eles quem ganharam?

Pois, mas foi isso que quem ontem ganhou fez há precisamente quatro anos. Estamos com um sério problema quando quem ganha, com legitimidade, não reconheceria se o outro lado tivesse ganho. É uma espécie de jogo sujo: a Democracia, para quem ganhou, só vale se o resultado for positivo para um lado.

Ora, isso já não é verdadeiramente uma Democracia: quem agora voltará ao poder estaria hoje a atirar para a lama e para o risco de violência e perturbação se ontem tivesse ficado do lado dos derrotados. Como esteve há bem pouco tempo.

Em vez de ter sido censurado em definitivo, 6 de janeiro de 2021 foi premiado e, de algum modo, legitimado pelo voto popular. Os eleitores americanos assim o quiseram, os eleitores americanos assim o terão.

Ao contrário de 2016, não foi um triunfo curto e questionável. Foi uma vitória clara, também no voto popular e em todos os estados decisivos. O povo americano é soberano e decidiu, em Liberdade. Fica, por isso, responsável pela escolha livre que entendeu fazer – provavelmente esperando a demagogia da “era dourada” que Trump promete (quando, na verdade, a América que herda está num momento de crescimento económico admirável, muito melhor que o dos países europeus).

Beneficiar dos procedimentos que tentaria destruir se perdesse

Biden, que sucedeu a Trump, será sucedido por Trump. É assim a Democracia. Mas com uma diferença fundamental: Trump perdeu para Biden em 2020 -- não admitiu e não foi à tomada de posse do sucessor. Biden não só admite a derrota da sua vice como, certamente, irá à tomada de posse do seu sucessor. Em Democracia é tão digno ganhar como perder. E é nestes momentos que se percebe quem é verdadeiramente democrata e quem gosta verdadeiramente da Democracia dos EUA.

A vitória de Trump é preocupante para a Democracia americana, mas pelo menos é clarificadora. A metade do país que perdeu não tem forma de pôr em causa a legitimidade política de quem ganhou.

Atendendo ao momento hiperpolarizado dos EUA, isso acaba por ser um alívio. Mas temos de ser exigentes com quem ontem ganhou com tanta clareza e brilhantismo: Trump tomará posse beneficiando de procedimentos democráticos que tentaria destruir se ontem tivesse ficado do lado dos derrotados. Não é um pressuposto: aconteceu há apenas quatro anos.

Movimentos inesperados

Kamala ficou abaixo de Biden 2020 em todos os condados. Dois terços dos eleitores disseram que a situação da Economia era má. Destes, 70% votaram Trump. Os hispânicos viraram o tabuleiro do avesso. Dez pontos de movimento nos condados com mais de 25% de hispânicos.

Há 20 anos que um candidato republicano não ganhava o voto popular. Trump teve ganhos em segmentos improváveis. Subiu quatro pontos nos condados com mais de 50% de licenciados; teve ganhos enormes nos homens hispânicos e nas mulheres brancas, dois segmentos decisivos para a sua grande vitória.

O aumento de “turnout” foi favorável a Trump e não a Kamala, como se imaginou. Os brancos quebraram a tendência e aumentaram a participação. Os dados do “early vote” foram melhores para Kamala do que os dados do dia da eleição. Em Wayne County, por exemplo, condado de Detroit e grande centro urbano do Michigan, um terço do voto foi para Trump – muito acima do esperado.

Casa Branca, Senado, Câmara dos Representantes, Supremo

Nem Obama nem Biden reuniram todo este poder: Trump nomeou três juízes jovens para o Supremo (pode nestes quatro anos vir a nomear mais um ou dois, caso Alito e Thomas abram vaga); controla o poder político e fica com caminho para mudanças dramáticas e duráveis na estrutura política e judicial dos EUA.

A primeira Presidência Trump ainda teve, na fase inicial, elementos credíveis e com qualidade, como os generais Mattis (Pentágono), McMaster (Conselho de Segurança Nacional) ou Kelly (chief of Staff). Ainda Bolton e Tillerson, entre mais alguns outros. Mas todos foram saindo, incompatibilizados com o Presidente, dizendo cobras e lagartos sobre o seu caráter, ética e comportamento. E manifesta falta de preparação em temas como a Defesa, a Política Externa ou a Segurança Nacional.

Não se espera nada disso desta vez: o critério de escolha, no lugar da credibilidade e da experiência, serão a lealdade e a obediência.

E veremos que centralidade terão figuras como Elon Musk ou Robert Kennedy Jr. Sobretudo Musk, pelo alcance que deu à campanha Trump no X e pelo financiamento; RFK remete para o lado mais bizarro e fora da caixa em ideias como tirar o fluor da água ou “as vacinas criam autismo nas crianças.

A longa mudança do Partido Democrata

O julgamento político da Presidência Biden fez-se ontem à noite. O final do mandato, até 20 de janeiro de 2025, arrisca-se a ser politicamente penoso. Os democratas começam, agora, uma mudança geracional, acabada que foi a longa era Clinton/Obama/Biden. Para uma máquina de poder como o Partido Democrata, que ocupou a Casa Branca em 12 anos nos últimos 16, será doloroso e demorado.

Mas absolutamente necessário.