
Numa sociedade que se pretende democrática e justa, as generalizações infundadas representam uma das mais perniciosas formas de destruição da confiança nas instituições e nos profissionais que servem diariamente a nossa comunidade.
O recente episódio envolvendo declarações do presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Impostos (STI) contra a Advocacia portuguesa ilustra perfeitamente como uma generalização irresponsável pode minar a dignidade de milhares de profissionais e, simultaneamente, revelar a fragilidade de um discurso público cada vez mais propenso ao sensacionalismo fácil e à acusação genérica.
A anatomia de uma generalização perigosa
Quando o presidente do STI sugere que há "advogados que só passam fatura se os clientes precisarem de fatura" e propõe "vigiar faturação dos advogados", está a perpetrar uma injustiça coletiva de proporções devastadoras. Está a transformar mais de 36.000 profissionais em suspeitos por associação, sem uma única prova, sem um único facto concreto que sustente tamanha acusação.
Esta não é apenas uma questão corporativa. É uma questão de princípio democrático fundamental: numa sociedade civilizada, não se pode acusar uma profissão inteira com base em suposições ou casos isolados - se é que existem.
Generalizar é o primeiro passo para a destruição da justiça - quando acusamos todos, não defendemos ninguém - esta é a lógica perversa que devemos combater frontalmente.
Vivemos tempos em que as generalizações se tornaram moeda corrente no debate público português. A facilidade com que se ataca uma profissão inteira revela muito sobre o estado da nossa sociedade: uma sociedade onde o ruído substitui o argumento, onde a suspeição generalizada ocupa o lugar da prova factual.
Esta tendência não é exclusiva dos advogados. Já assistimos a generalizações contra médicos, professores, jornalistas, políticos. O padrão é sempre o mesmo: pega-se numa corporação, lança-se uma suspeição geral e espera-se que a opinião pública aceite passivamente a criminalização coletiva.
Mas aqui reside o perigo maior: quando aceitamos que uma profissão inteira pode atacada sem fundamento, estamos a minar os pilares da nossa democracia. Estamos a aceitar que o Estado de Direito pode ser substituído pelo Estado da Suspeição.
A escolha da advocacia como primeiro exemplo de "fuga aos impostos" não é casual. A advocacia incomoda porque questiona, porque fiscaliza, porque defende direitos mesmo quando isso é inconveniente para quem detém o poder.
Atacar a advocacia em bloco é atacar a própria democracia - porque sem advogados independentes e respeitados, não há cidadãos verdadeiramente protegidos.
Um dirigente sindical tem responsabilidades acrescidas. Quando fala publicamente, não fala apenas por si - representa uma categoria profissional e tem o dever de rigor factual.
O caso em apreço é ainda mais grave porque parte de alguém que trabalha na Administração Fiscal e que, presumivelmente, tem acesso a dados concretos. Se tem conhecimento de casos específicos de incumprimento fiscal por parte de advogados, tem o dever legal de os denunciar. Se não tem, tem o dever ético de se calar.
As generalizações infundadas têm consequências que vão muito além do momento em que são feitas. Criam um clima de desconfiança generalizada que contamina toda a sociedade.
Este é o perigo real: não são apenas os advogados que estão em causa hoje - é o princípio de que qualquer grupo profissional pode ser criminalizado coletivamente amanhã.
Não há meio-termo na defesa da dignidade profissional: ou defendemos intransigentemente a verdade e a justiça, ou aceitamos passivamente a calúnia e a injustiça.
Os advogados não aceitarão ser transformados em bodes expiatórios de políticas fiscais ineficazes ou de sistemas de controlo deficientes.
A verdadeira fraude fiscal
Ironicamente, enquanto se generaliza sobre os advogados, a verdadeira fraude fiscal passa despercebida. A economia paralela em Portugal representa cerca de 35% do PIB, segundo estudos recentes - são milhões de euros que não chegam aos cofres do Estado.
Mas é mais fácil atacar uma profissão regulamentada, sujeita a rigoroso controlo deontológico e disciplinar, do que enfrentar as verdadeiras causas da evasão fiscal: a economia informal, o trabalho não declarado ou as transações sem registo.
É mais cómodo atacar quem emite faturas do que perseguir quem nunca as emitiu - esta é a lógica perversa de quem prefere o espetáculo à eficácia.
A única forma eficaz de combater a tirania das generalizações é através da educação e da promoção do pensamento crítico. Precisamos de uma sociedade que questione, que exija provas, que não aceite passivamente as acusações genéricas.
Uma sociedade educada não aceita generalizações - exige factos, procura provas e defende a justiça individual.
A advocacia portuguesa é constituída por profissionais que diariamente servem a Justiça, defendem direitos, protegem os mais vulneráveis e garantem que o Estado de Direito funciona. São profissionais sujeitos a rigorosos deveres deontológicos, a controlo disciplinar permanente e a responsabilização constante perante os seus clientes e a sociedade.
Merecem respeito, não suspeição infundada. Merecem reconhecimento pelo seu trabalho, não ataques gratuitos à sua dignidade.
A qualidade de uma democracia mede-se pelo respeito que tem pelos seus advogados - porque são eles que garantem que os direitos não ficam apenas no papel.
A nossa resposta será sempre a mesma: factos contra generalizações, verdade contra calúnia, dignidade contra injustiça.
Conclusão
Vivemos numa encruzilhada civilizacional. Podemos escolher o caminho fácil das generalizações, dos ataques infundados, da criminalização coletiva. Ou podemos escolher o caminho mais difícil, mas mais justo da prova factual, do debate rigoroso, da responsabilização individual.
A escolha é nossa - e dela depende o tipo de sociedade que queremos ser.
Os advogados, como qualquer cidadão, devem ser julgados pelos seus atos individuais, não por generalizações infundadas de quem prefere o ataque fácil ao trabalho sério.
Numa democracia madura, cada profissional responde pelos seus atos - nenhuma profissão responde por generalizações infundadas.
Esta é a linha vermelha que não pode ser ultrapassada.
Esta é a dignidade que não pode ser negociada.
Esta é a justiça pela qual vale a pena lutar.