Uma inesperada onda de calor varreu o território suíço na segunda metade do mês de agosto, atingindo com maior violência cantões como os de Genebra (com a temperatura na cidade que lhe dá nome a chegar aos 39,3 graus Celsius) e Valais (com o termómetro na urbe de Sion a registar 37 graus), refere o jornal online Swissinfo. Noutras regiões do país as temperaturas oscilaram entre os 33 e os 35 graus. Em suma, os recordes de temperatura desde ano foram batidos, sendo que em várias localidades atingiram-se números nunca antes registados, adianta a Radio Televisão Suíça (a RTS).
Para piorar o cenário, esta canícula, de acordo a agência de notícias AFP, “elevou a linha de zero graus que marca a altitude que regista essa temperatura”, tendo chegado, na Suíça, na noite de 20 para 21 de agosto, aos “5298 metros de altitude, o que constitui um recorde desde o começo das medições em 1954”. O anterior recorde data de 25 de julho do ano passado, quando chegou aos 5184 metros. “Desde a década de 1970 que este aumento acelerou, especialmente na primavera e verão”, adianta a agência de meteorologia e climatologia MeteoSwiss. “A razão principal desta tendência é o aquecimento global provocado pelo ser humano.”
Tal como explicou para a RTS o meteorologista Mikhaël Schwander, "esta vaga de calor é realmente excecional, ocorrendo na segunda quinzena de agosto, quando o sol está um pouco mais baixo, os dias são um pouco mais curtos e as noites um pouco mais longas".
No dia 23 de julho, no cantão de Genebra, e após 13 dias consecutivos de intenso calor, o Departamento de Educação Pública autorizou que as escolas dessem folga aos alunos nos dois dias seguintes (quinta-feira e sexta-feira), durante a tarde. A decisão, não mandatória, deixava para as instituições de ensino a decisão de aplicar ou não a medida, conforme os casos, salientou na altura a RTS. No entanto, e para os alunos do ensino primário, se as escolas não dessem dispensa os pais tinham autorização para manter os filhos no seu lar, no caso de “considerarem que as condições de acolhimento podem ser mais adequadas em casa”.
Apesar da lei suíça não contemplar a dispensa de trabalhar em caso de calor extremo – tal como sucede nos estados-membros da União Europeia, onde apenas existem orientações (conselhos) sobre o trabalho em ambientes de temperaturas elevadas –, a fustigada Genebra considerou que existia a urgência de salvaguardar, por via legal, a saúde dos trabalhadores da construção civil.
No dia 21 de agosto (uma segunda-feira), e naquilo que foi uma medida totalmente inédita no cantão, de acordo com a RTS, “a Inspeção do Trabalho de Genebra decidiu proibir os trabalhos de construção mais pesados durante a tarde, nos períodos de maior calor”, numa medida que se estendeu pelo seguintes dias. Basicamente, e a partir do meio-dia, quem trabalhava, por exemplo, na construção ou arranjo de telhados, na alcatroagem de vias ou operava martelos pneumáticos, devia terminar de imediato as suas tarefas. Quanto aos trabalhos “pesados”, como escavar ou empurrar carrinhos de mão, esses deveriam cessar às 14 horas.
As medidas, ainda segundo o órgão de comunicação social público, foram bem acolhidas pelos sindicatos, que as consideram “históricas”, tendo sido efetuadas inspeções preventivas de controlo pelas autoridades, para garantir que as medidas eram seguidas. Estas foram colocadas em prática, indica a RTS, em concertação com o patronato do cantão de Genebra.
Este problema não constituí uma novidade, pois segundo os dados da agência de seguros Suva, uma das empresas deste setor que mais seguros para acidentes de trabalho providencia na Suíça, quando as temperaturas ultrapassam os 30 graus Celsius, os acidentes de trabalho aumentam 7%, causados pelo aumento da fadiga e uma diminuição na capacidade de concentração, sintetiza o 24 Heures – o principal jornal diário do cantão de Vaud, onde também se registaram altas temperaturas durante este verão.
Trabalhar sem parar em locais “infernalmente” quentes e com elevada humidade é receita para o desastre: o corpo, incapaz de suar para arrefecer, sobreaquece e adoece
Estes sintomas, causados pelo trabalho em ambientes de alta temperatura, especialmente no exterior, há muito que estão estudados e documentados. A Agência Europeia para a Segurança e a Saúde no Trabalho, sob dependência da União Europeia, lançou este ano um guia onde dá conta dos riscos associados ao trabalho em condições de temperatura elevada, formulando, em seguida, orientações práticas sobre a melhor forma de gerir estes riscos. Salientamos, em seguida, quatro pontos importantes que constam no documento:
1. “Trabalhar em condições de exposição ao calor pode ser perigoso e causar danos aos trabalhadores. O corpo humano requer uma temperatura constante de aproximadamente 37 graus Celsius. Se o corpo tiver de se esforçar demasiado para se manter fresco ou começar a sobreaquecer, o trabalhador pode desenvolver doenças relacionadas com o calor.”
2. “As exposições ao calor podem aumentar o risco de acidentes no local de trabalho causados por palmas das mãos suadas, óculos de segurança embaciados, tonturas e redução das funções cerebrais. A exposição prolongada ao calor pode provocar efeitos como a desorientação, a diminuição da capacidade de discernimento, a perda de concentração, a redução do estado de vigilância, a falta de cuidado e a fadiga, aumentando assim o risco de acidente. A redução das capacidades cognitivas e os períodos de reação mais longos podem afetar os trabalhadores que desempenham tarefas de alto risco (por exemplo, condutores). A exposição direta à radiação solar também pode prejudicar eventualmente o desempenho cognitivo e, juntamente com a elevada temperatura ambiente, pode aumentar o risco de lesões.”
3. “A evaporação do suor da pele arrefece o corpo. Este processo ocorre mais rapidamente e o efeito de arrefecimento é mais percetível na presença de ventos fortes e baixa humidade relativa. Em locais de trabalho quentes e húmidos, há um menor arrefecimento do corpo resultante da evaporação do suor, uma vez que o ar não consegue reter mais humidade.”
4. “De um modo geral, as pessoas não conseguem detetar os seus próprios sintomas relacionados com o stresse térmico. A sua sobrevivência pode depender da capacidade dos colegas de trabalho de reconhecerem estes sintomas e pedirem atempadamente a intervenção de primeiros socorros e assistência médica.”
Os suíços detestam que os seus comboios se atrasem, mas quando os carris habituados à neve atingem os 50 graus e cedem às leis da física… é o que pode suceder
Passemos, em seguida, para as conclusões de um importante estudo sobre a realidade suíça. Realizada pela Universidade de Berna e publicada em julho na revista científica Environmental Research Letters, esta investigação conclui que “o aquecimento global causou 60% das mortes por calor na Suíça, no verão de 2022”, refere a instituição através de comunicado de imprensa. “Os números relativos ao verão quente de 2022 são impressionantes: em Genebra, por exemplo, foram registados mais de 30 graus Celsius em 41 dias, em Sion foram 49 dias e em Lugano 38.”
E, ao que parece, os suíços não estão de todo preparados para lidar com esta nova realidade, afiançam os autores: “Os cantões urbanos de Genebra, Vaud, Basileia-Cidade e Zurique foram particularmente afetados. Nem todos os cantões e cidades estão igualmente equipados para lidar com o calor. Em Basileia e Zurique, por exemplo, não existe uma estratégia de saúde pública, sistemática e abrangente, para lidar com o calor.”
Entretanto, até infraestruturas que são consideradas pelos suíços como fundamentais e imprescindíveis, como são o caso das ferrovias, não escaparam ilesas à vaga de calor que apanhou de surpresa o país. Por exemplo, um dos troços de uma das linhas de comboio que parte da cidade de Nyon, no cantão de Vaud, teve de ser encerrada devido ao calor. Os carris desta linha estão preparados para as baixas temperaturas (com neve) que se fazem sentir nos três meses de inverno, as quais podem oscilar entre os zero graus e os cinco graus negativos – por vezes, até descem mais. Todavia, a meio de uma das tardes de agosto último, a temperatura dos carris “subiu para os 50 graus Celsius, provocando uma expansão considerável do metal”, noticiou o 24 Heures.
Não obstante, e a crer na empresa que explora a linha ferroviária, trata-se do troço mais antigo da linha, onde os carris estão assentes sobre um terreno rochoso e com pouco balastro: ou seja, com pouca gravilha, a pedra britada que costumamos ver ao longo das ferrovias e que serve para garantir a sua robustez e estabilidade, além de que ajuda a reduzir a temperatura do metal que a atravessa.
Entretanto, e porque na Suíça existe uma cultura de pouco tolerância para com comboios que se atrasem ou fiquem parados, já foram iniciadas obras de modernizaçáo para toda a linha, anunciou a empresa. Mesmo assim, e caso regressem temperaturas tão elevadas como as que foram registadas na última quinzena de agosto, não foram dadas garantias de que não voltem a surgir vulnerabilidades e problemas semelhantes em algumas zonas.