No filme Lawrence da Arábia, um épico de 1962 baseado nos relatos do aventureiro e oficial do exército britânico T.E. Lawrence, durante a revolta árabe contra o Império Otomano, na Primeira Guerra Mundial, um dos momentos mais icónicos ocorre quando o protagonista convence um exército formado por uma união de tribos árabes a atravessar o infernal deserto de Al-Nafūd – os árabes consideravam que a região era impossível de cruzar. Na verdade, e de acordo com o livro Os Sete Pilares da Sabedoria, as memórias que T.E. Lawrence publicou em 1922 sobre aquele período histórico que moldou o atual mundo árabe, para chegar à cidade costeira de Aqaba (fica na ponta nordeste do Mar Vermelho, no Golfo de Aqaba) e depois conquistá-la aos otomanos o percurso que empreenderam evitou o Al-Nafūd. O motivo é fácil de perceber.
Situado a norte da Península Arábica, a região do Al-Nafūd apanha uma grande porção do Deserto da Arábia, estendendo-se por cerca de 65 mil quilómetros quadrados: Portugal, a título de comparação, abrange um território de 92 mil quilómetros quadrados. A vasta e árida paisagem situa-se sobre uma grande depressão oval (uma bacia) que está cercada por zonas de maior altitude, uma espécie de caldeirão que foi sendo preenchido pelas areias provenientes do processo de erosão a que estão submetidas as formações rochosas situadas a noroeste.
Acima de tudo, o Al-Nafūd destaca-se pela sua areia da cor de cobre, um cenário arenoso repleto de dunas em forma de meia-lua que, devido às contantes e violentas tempestades de vento que assolam a região, está constantemente a mudar de aspeto, o que dificulta ainda mais a sua travessia.
Todavia, ele esconde um segredo milenar. Centenas de leitos secos de antigos lagos foram aí descobertos nas últimas décadas, levando muitos investigadores a escavar os sedimentos que estão sob as suas superfícies, não só para determinar a idade destes extintos lagos, mas também para reconstruir como é que o ambiente, no que é agora um deserto, evoluiu e mudou ao longo de centenas de milhares de anos.
Estas escavações, assim como os modelos paleoclimáticos que foram desenvolvidos com base no que foi encontrado nas diferentes camadas de sedimentos, mostram que nos último meio milhão de anos a região teve breves períodos em que que o clima era húmido e quente, provocando chuvas sazonais que transformaram as zonas de bacia em lagos e os seus sulcos em rios. O deserto da Península Arábica costumava dar lugar, portanto, a uma luxuriante paisagem verde, mas algum tempo depois voltava a tornar-se seco e árido.
O caso tornou-se bem mais interessante em setembro deste ano devido a um artigo científico publicado na revista Nature, o qual dá conta da descoberta de centenas de ferramentas em pedra em alguns dos antigos lagos do Al-Nafūd, assim como “evidências de que múltiplas vagas de Homo sapiens e seus parentes migraram através do interior Arábico [vindos de África] desde, pelo menos, os últimos 400 mil anos”, frisa uma notícia da revista Science sobre esta pesquisa.
Basicamente, estas conclusões reforçam a ideia de que os períodos em que o atual território do Deserto da Arábia era verde e estava cheio de lagos coincidem com aqueles em que os seres humanos se atreviam a atravessá-lo, permitindo que se dispersassem para fora do continente africano. Assim sendo, torna-se bastante plausível que o ponto de passagem para diferentes grupos de humanos tenha sido a Península do Sinai – situada entre os dois braços de água do Mar Vermelho (o Golfo de Suez e o Golfo de Aqaba) que se estendem para norte. Em pleno século XXI, a Península do Sinai encontra-se partilhada e controlada por dois países – Egipto e Israel –, mas há milhares de anos não existia qualquer tipo de fronteira que impedisse os humanos de a atravessar e, mais à frente (em direção a leste, saindo de África e entrando no Médio Oriente), cruzar a região a que hoje em dia damos o nome de Al-Nafūd.
“Assim que lá chegámos, existiam ferramentas de pedra por todo o lado, pelo que soubemos de imediato que este era um local espantoso.”
Este cenário começou a ganhar forma em 2013, quando uma equipa internacional e multidisciplinar de cientistas, liderada por Michael Petraglia, do Instituto Max Planck, na Alemanha, se interessou por uma zona específica repleta de leitos secos, a norte do Al-Nafūd. Visto do céu, através de imagens obtidas por satélite, o local a que os cientistas deram o nome de Khall Amayshan 4, e que está entrincheirado entre enormes dunas, têm uma coloração incomum, indicativa de que ali poderiam existir várias camadas de sedimentos de diferentes períodos climáticos: épocas em que chovia e os lagos ficavam cheios e outras em que a falta de precipitação os levava a secar.
“Assim que lá chegámos, existiam ferramentas de pedra por todo o lado, pelo que soubemos de imediato que este era um local espantoso”, recorda à Science o arqueólogo Huw Groucutt, igualmente do Instituto Max Planck e que também faz parte da equipa que assinou o recente estudo.
Uma vez no local, escavaram os leitos e dataram as camadas de sedimentos através da técnica de ‘luminescência opticamente estimulada’, a qual é capaz de determinar a última vez que grãos de areia estiveram expostos à luz solar. Para cada camada que analisaram fizeram o registo de quais os tipos de ferramentas que nelas existiam.
Uma fez feito o trabalho de sapa, chegaram a várias conclusões de monta: os lagos em Khall Amayshan 4, que incluem os mais antigos vestígios de hominídeos (seres humanos) alguma vez encontrados na Península Arábica, “revelam, pelo menos, que ocorreram cinco expansões para o interior da Arábia, coincidindo com breves janelas ‘verdes’ de reduzida aridez, por volta de 400 mil, 300 mil, 200 mil, entre 130 e 75 mil e 55 mil anos atrás”, aponta o estudo. “Cada fase de ocupação é caracterizada por uma forma distinta de cultura material, indicando a colonização por diversos grupos de hominídeos.” Todavia, acrescentam, não há sinais de que cada um desses grupos aí tenha permanecido a longo-prazo. Mais concretamente, desconhece-se por completo o que sucedeu a estes antigos migrantes.
A 150 quilómetros de Khall Amayshan 4, a leste, junto ao oásis de Jubbah – zona onde vivem cerca de 20 mil pessoas, totalmente cercada pelas dunas vermelhas do Al-Nafūd –, o grupo de cientistas encontrou outro antigo lago com ferramentas humanas pré-históricas, enterradas entre sedimentos que datam de há 200 mil e 75 mil anos.
“Além das ferramentas, os investigadores encontraram, em muitos dos lagos secos, ossos fossilizados de animais, o que sugere que grandes animais africanos como hipopótamos, elefantes e avestruzes também seguiram esta rota verde que os levava para fora de África”, reporta a Science.
Não obstante, não foram encontrados nestes velhos leitos quaisquer fósseis de espécies humanas.
As ferramentas mais recentes que foram encontradas no deserto podem ter pertencido aos Neandertais: uma possível prova de que esta espécie viajou da Europa até ao território do Al-Nafūd.
Até ao momento, descobriram-se fora do continente africano muitos poucos fósseis de hominídeos com mais de 60 mil anos. O mais antigo foi encontrado em 2018, numa gruta de Israel, precisamente pela mesma equipa liderada pelo arqueólogo Michael Petraglia: trata-se de um osso do maxilar superior, com cerca de 120 mil anos, de um Homo sapiens.
Na Península Arábica, o mais velho fóssil humano foi descoberto – outra vez pelo grupo de Petraglia – em 2016, num leito seco situado em Al-Wusta, no deserto de Al-Nafūd. Neste caso, era um osso com 88 mil anos de um dedo.
Quanto aos achados de Khall Amayshan 4, o estudo recentemente publicado não consegue identificar que espécie humana foi responsável por criar as ferramentas nas duas camadas mais velhas, datadas de há 400 mil e 300 mil anos. Todavia, os rústicos machados de mão, feitos em pedra, que encontraram são normalmente atribuídos ao Homo erectus. Estima-se que esta espécie humana tenha surgido há cerca de dois milhões de anos e entrou em extinção há cem mil anos, mas durante o tempo em que pisou a Terra terá sido responsável por criar, em África, a primeira indústria padronizada de utensílios, uma revolucionária tecnologia de machados em pedra lascada a que se deu o nome de cultura Acheulense.
Quanto às ferramentas em pedra datadas de há 200 mil anos e de há entre 130 e 75 mil anos, elas são mais pequenas e foram trabalhadas (lascadas) com maior precisão, assemelhando-se aos utensílios criados pelo Homo sapiens, a espécie a que pertencemos, indica Huw Groucutt à Science.
As mais recentes que estavam em Khall Amayshan 4, com 55 mil anos, os arqueólogos envolvidos na pesquisa asseguram que se assemelham às que eram usados pelos Neandertais (Homo neanderthalensis), espécie que viveu na Eurásia e que desapareceu por completo há 40 mil anos.
Os fósseis e os vestígios de ADN que encontrados até ao momento apontam que os Neandertais emergiram na Europa há mais de 400 mil, tendo depois chegado a algumas partes do Médio Oriente, onde, provavelmente, entraram em contacto e acasalaram com os humanos modernos que vinham de África. Se se confirmar, de futuro, que os utensílios encontrados pertencem mesmo ao Homo neanderthalensis, isso pode sugerir que desceram mais abaixo do atual território de Israel e também chegaram à Península Arábica, durante os períodos intermitentes em que o acobreado do deserto se transformava numa paisagem totalmente diferente, pintada com as cores da água e da vegetação.