Em março deste ano foi publicado no Journal of Psychiatric Research um artigo científico, em que Michelle Magid surge como um dos autores, que combinou e analisou os dados estatísticos de cinco estudos diferentes realizados de forma independente por outras equipas de investigação (trata-se de uma meta-análise, portanto), sobre os efeitos do Botox em pessoas com depressão. A crer nas suas conclusões, os dados que escrutinaram exibem fortes evidências de que este fármaco antirrugas também pode ser usado pela psiquiatria, enquanto tratamento. Como é isso possível?
Na base de tudo está a ideia, há muito sob estudo, de que eliminar os traços físicos associados a emoções negativas vai influenciar o que as pessoas sentem. Por exemplo, se estivermos tristes e preocupados podem surgir pregas entre os sobrolhos, uma manifestação corporal que vai depois reforçar essas emoções. Daí que, ao se impossibilitar esse franzir, torna-se possível atenuar o que sentimos. Mais à frente, explicaremos melhor em que consiste esta hipótese científica.
O psicólogo Nicholas Coles, da Universidade de Stanford, igualmente nos EUA, é um dos especialistas que discorda dos resultados apresentados por esta meta-análise, revelando preocupação pela forma como se está a apresentar o Botox como panaceia para a depressão profunda. Tal como explica a revista Science, num texto dedicado a esta polémica, Coles foi o autor principal, no passado mês de maio, de uma incisiva resposta às conclusões então divulgadas.
Segundo ele, a pesquisa assinada por Michelle Magid não dá resposta a muitos dos problemas que ele e outros investigadores antes encontraram, numa outra meta-análise que realizaram em 2019 e que usou quase todos os mesmos dados, tendo alcançado conclusões contrárias às de Magid e seus restantes colegas. Se os psiquiatras insistirem no uso de terapias com base na injeção de Botox, sem que existam sólidas provas de que funcionam mesmo, há “pessoas que podem sair prejudicadas”, assinala.
Para perceber o que está em causa, embrenhemo-nos um pouco na história do Botox, um fármaco que, inicialmente, se destinava a combater o estrabismo, mas que, à medida que foi gerando centenas de milhões de euros em receitas, se tornou num famoso antirrugas que também é usado para tratar quem tem dores de cabeça crónicas.
O Botox é sintetizado a partir de um dos sete tipos de neurotoxina gerados pela bactéria Clostridium botulinum. Destinava-se, inicialmente, a tratar o estrabismo, hoje é um antirrugas que só em três meses gera vendas de 375 milhões de euros.
Clostridium botulinum. Eis o nome da bactéria que pode causar o botulismo em algumas pessoas, uma doença rara que pode ser fatal, cujos primeiros sintomas são a fraqueza muscular, cansaço, visão turva e dificuldades em falar. Basicamente, esta bactéria consegue produzir, quando entra no organismo humano através de alimentos ou água contaminada, sete diferentes tipos de neurotoxinas, afetando os neurotransmissores (as substâncias químicas que transmitem informação entre as células) relacionados com as contrações musculares. Daqui resulta a paralisia dos músculos, a qual pode estender-se ao diafragma e dificultar a respiração ou causar a morte por asfixia.
Todavia, em 1989, nos EUA, a empresa farmacêutica Allegen, após apresentar os resultados de dezenas de estudos com milhares de pacientes, conseguiu que a Food and Drug Administration (FDA) aprovasse o uso do fármaco Botox – uma marca registada que é o diminutivo, em inglês, do nome ‘toxina botulínica’. Basicamente, a Allegen conseguiu purificar e sintetizar, a partir de um dos sete tipos de neurotoxina gerados pela Clostridium botulinum – a neurotoxina A, neste caso –, uma substância capaz de tratar o estrabismo, causado por uma desordem no músculo do olho, assim como os espasmos da pálpebra.
A FDA deu a sua bênção ao Botox porque o então novo fármaco demonstrou ser seguro, desde que injetado em áreas bastante específicas e com doses rigorosamente determinadas. Em 2002, a agência aprovou o uso da toxina botulínica do tipo A para fins dermocosméticos: ou seja, as injeções de Botox passaram, igualmente, a ser utilizadas para reduzir ou eliminar temporariamente as pregas que surgem no espaço compreendido entre os sobrolhos (a chamada glabela). Mais tarde, começou a ser aplicado para ‘apagar’ as rugas em redor dos olhos e na testa, assim como os papos no pescoço.
Atualmente, tornou-se corriqueiro, na área da dermocosmética, injetar quantidades mínimas de Botox em músculos faciais específicos para bloquear impulsos nervosos e, consequentemente, paralisar músculos que enrugam, dando à pele uma aparência mais suave.
Entretanto, em 2010, a FDA disse ‘sim’ a injeções da toxina botulínica A para o tratamento profilático das cefaleias primárias (as enxaquecas, ou dores de cabeça) mais crónicas.
Em suma, o Botox tornou-se num fármaco extremamente rentável, nas últimas décadas, ao ponto de a Allegen, a empresa que a produz, ter sido comprada em 2020 pela gigante farmacêutica AbbVie, também ela dos EUA. Quanto pagaram? Perto de 53 mil milhões de euros.
Para azar da AbbVie, a pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 provocou um rombo nas receitas da empresa, isto porque muitas pessoas decidiram adiar os procedimentos clínicos não-urgentes. No segundo trimestre de 2020, quando a pandemia começou a varrer o globo, a venda de Botox para fins cosméticos caiu 43,1%, em comparação com o período homólogo de 2019, cifrando-se nos 190 milhões de euros. Todavia, 2020 foi apenas um intervalo neste lucrativo negócio, pois no primeiro trimestre de 2021, por exemplo, tudo foi diferente: um crescimento de 44,7% na compra de Botox, em relação ao período homólogo do ano anterior, o que permitiu à farmacêutica arrecadar 375 milhões de euros, em apenas três meses, só à custa da toxina botulínica A.
Segundo a ‘hipótese do feedback facial’, expressões físicas geradas por emoções, como rir e franzir os sobrolhos, produzem, por sua vez, um envio de informação ao nosso cérebro (uma resposta de retorno) que reforça ou faz disparar uma experiência emocional.
Voltemos à glabela, o já referido espaço entre as sobrancelhas. As pregas que nela surgem não são, somente, um resultado do envelhecimento do nosso corpo. Uma das expressões faciais mais universais do ser humano é, precisamente, o franzir dos sobrolhos, em que estas se contraem e unem, enrugando a testa. Esta expressão, que podemos ver em pessoas de qualquer idade, cria, na nossa face, uma aparência severa, podendo indicar que estamos a vivenciar sentimentos de desagrado, tristeza ou preocupação, mas também de confusão ou concentração.
Eis o momento para falarmos de uma teoria científica que ganhou fulgor desde o último quartel do século XX: a ‘hipótese do feedback facial’. Segundo ela, as contrações dos nossos músculos faciais não servem, apenas, para comunicar a quem nos rodeia o que sentimos; elas também nos transmitem as emoções que estamos a experienciar. Dito de outra forma, e de acordo com a teoria, as nossas expressões faciais têm uma influência direta e modelam, a um nível subjetivo, as nossas emoções e a forma como as sentimos. Tal como explica a notícia da Science, expressões físicas geradas por emoções, como rir e franzir os sobrolhos, produzem, por sua vez, um envio de informação ao nosso cérebro (um feedback, quer dizer, uma resposta de retorno) que reforça ou faz disparar uma experiência emocional.
Na década de 1970, estudos na área da psicologia começaram a sugerir que sorrisos falsos, por exemplo, podem melhorar o humor de uma pessoa. Isto significa que se o nosso cérebro é capaz de reconhecer uma manifestação emocional a nível corporal, então “a emoção que está por trás dela é enriquecida”, frisa à Science o psiquiatra e investigador Tillmann Krüger, da Escola de Medicina de Hannover, na Alemanha.
Esta opinião de Krüger não causa estranheza a ninguém, pois foi precisamente ele quem liderou a meta-análise em que esteve envolvida a psiquiatra Michelle Magid, a mesma que prescreveu tratamentos de Botox para os seus pacientes, por acreditar que injeções desta substância, na região da glabela, produzem resultados a nível físico que geram, em seguida, um feedback que reduz a depressão.
Quatro dos cinco estudos que surgem na meta-análise publicada em março, a qual conclui que é benéfico injetar Botox em pacientes com depressão, foram realizados por investigadores que receberam pagamentos da Allergan, a farmacêutica que produz o Botox.
A meta-análise coordenada por Krüger incidiu sobre cinco investigações conduzidas entre 2012 e 2020. Os pacientes destes testes, que sofriam de depressão, receberam nos músculos da testa uma injeção: parte da amostra levou com uma dose de Botox, enquanto a restante recebeu um simples placebo (logo, sem qualquer impacto) de soro fisiológico. Nenhum dos grupos recebeu informação sobre qual a substância que lhes foi aplicada. Semanas mais tarde, os dois conjuntos de pacientes foram avaliados psicologicamente. Os resultados da meta-análise, dizem os autores da mesma, revelam que o Botox tem uma eficácia mais do que duas vezes superior no alívio da depressão, em comparação com os melhores antidepressivos orais que neste momento estão disponíveis e aprovados. Além disso, o Botox “tem uma excelente tolerabilidade e segurança, e os pacientes não têm de pensar em tomar um comprimido todos os dias”, acrescenta Krüger.
O problema é que a outra meta-análise feita pela equipa do psicólogo Nicholas Coles, datada de 2019 e que teve em conta quatro dos mesmo cinco estudos, levanta sérias questões que metem em causa os resultados de Krüger e Magid. Primeiro: cada teste teve como amostra menos de cem pacientes, além de que estes eram capazes de distinguir se tinham sido injetados com Botox ou um placebo, pois os efeitos da toxina na face são óbvios de constatar.
Segundo: a putativa superioridade do Botox em relação a antidepressivos convencionais foi notada, mas essa enorme diferença levanta suspeitas. Nomeadamente? O efeito do Botox mostrou ser quatro vezes maior do que em testes realizados com base na hipótese do feedback facial: nestes testes, o estado emocional das pessoas é aferido e medido após manterem, durante vários segundos ou minutos, a mesma expressão facial.
Eiko Fried, pesquisador na área da depressão pela Universidade de Leiden, na Bélgica, quando questionado pela Science manifestou preocupações similares. Conforme explica este investigador, que não esteve envolvido em nenhum dos estudos referidos, os grandes efeitos que surgem em pequenas investigações tendem a dissipar-se em testes maiores, realizados com mais pessoas. Trata-se de uma tendência que abrange, igualmente, os antidepressivos que atualmente mais se prescrevem. Outro dos seus receios, conta, é que os psiquiatras que estejam a aconselhar Botox para a depressão possam estar a dar falsas esperanças aos pacientes, privando-os, ao mesmo tempo, de tratamentos já comprovados.
Para rematar, Coles afiança que quatro dos cinco estudos que surgem na meta-análise publicada este ano foram realizados por investigadores que declararam ter recebido pagamentos da farmacêutica Allergan, precisamente a que produz o Botox. Aliás, tanto Krüger como Magid, dá a conhecer a Science, “receberam compensações por aconselhar a Allergan” nos testes que a empresa tem vindo a desenvolver para utilizar o Botox como terapêutica para a depressão.
Um conflito de interesses que pode ferir de morte as conclusões a que chegaram a equipa liderada por Krüger, ao mesmo tempo que faz erguer dúvidas éticas sobre as injeções de Botox receitadas por Magid a dezenas de pacientes seus.
Deve o Botox, que induz a paralisia de determinados músculos, ser usado em pessoas que sofrem de depressão profunda, apesar de se desconhecer até que ponto pode mesmo ajudá-los? Face aos seus (raros) efeitos secundários vale a pena o risco?
Em resposta às críticas, o psiquiatra da Universidade de Medicina de Hannover argumenta que o efeito do Botox é muito maior do que nos testes de feedback facial porque evita o franzir dos sobrolhos dia após dia, ao longo de semanas, enquanto os testes em laboratório apenas duram alguns minutos. Além disso, alega, o Botox pode afetar diretamente o sistema nervoso central, melhorar a imagem que os pacientes têm de si próprios e, inclusive, mudar a forma como as pessoas interagem com elas.
Deve esta substância, que induz a paralisia de determinados músculos, ser usada em pessoas que sofrem de depressão profunda, apesar de se desconhecer, como admite Krüger, até que ponto ela pode ajudar estes pacientes? A sua resposta é um inequívoco ‘sim’, quando mais não seja porque também não é claro, diz ainda, quais os mecanismos através dos quais a serotonina influencia o nosso humor e estado mental, sendo que os antidepressivos convencionais atuam sobre este neurotransmissor.
Para Jonathan Kimmelman, da Universidade de McGill, no Canadá, a equação que é preciso ter em conta é bastante simples: o risco de usar o Botox só faz sentido se ele for realmente mais eficaz no tratamento da depressão, e ponto final. “Nada é seguro até que exista uma razão para se o usar”, resume o especialista em bioética, em declarações à Science.
E de que riscos estamos nós a falar? Além dos que já foram referidos em cima, para os pacientes que buscam uma solução para o seu estado mental, há que ter em conta que o Botox, enquanto fármaco dermocosmético, pode produzir efeitos secundários, embora raros, que são bastante perigosos. Falamos da dificuldade em respirar e engolir, incluindo fraqueza muscular, que surgem em alguns casos, o que obrigou a Food and Drug Administration dos EUA, por exemplo, a emitir em 2009 um aviso de segurança em relação a este fármaco, acrescentando, ainda, que a toxina pode espalhar-se a partir da área onde foi injetada e produzir sintomas de botulismo. Em janeiro de 2021, a FDA ainda mantinha o mesmo aviso, em grande destaque, no folheto informativo do fármaco.