Com nota introdutória de Ana Jorge, ex-Ministra da Saúde, e prefácio do epidemiologista Henrique Barros, presidente do Conselho Nacional de Saúde, o livro “O Negócio da Saúde” do médico neurologista e intensivista Bruno Maia põe a nu as complexas relações entre o governo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e os grupos privados de saúde.
A obra, que é lançada esta segunda-feira à tarde no Porto, expõe os mecanismos pelos quais a medicina privada em Portugal cresceu graças ao SNS e os riscos que o setor público da saúde corre se se mantiver a externalização de serviços médicos essenciais.
A partir de dados de acesso público, produzidos por instituições oficiais, Bruno Maia - que é ainda candidato pelo Bloco de Esquerda (BE) à Câmara Municipal de Gondomar - demonstra que os grandes grupos económicos que dominam o setor da saúde são alimentados pelas falhas do sistema público e pelas rendas do estado.
Como teria sido a prestação de Portugal na resposta à pandemia sem o setor privado?
Acho que o setor privado em nada contribuiu para a resposta à pandemia. Aquilo que eram as grandes necessidades da saúde no último ano e meio foram asseguradas pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). Na verdade, a única resposta que os privados deram foi ao nível dos laboratórios, ao fazerem testes pagos pelo Estado. Mas aquilo que é o mais caro, o mais urgente e prevalente em termos de saúde em tempos de pandemia, foi efetivamente prestado pelo SNS. Estamos a falar de internamentos, cuidados intensivos e cuidados de saúde primários.
Vivemos um círculo vicioso infernal em que o SNS tem sido suborçamentado, ou seja, não tem recebido o investimento que necessita e com isso está a perder aos poucos alguns serviços e é forçado a contratualizar com o privado
De que forma é que a medicina privada em Portugal está dependente do SNS?
Há cada vez mais um oligopólio dos privados na saúde, porque há uma concentração dos negócios em cada vez menos grupos que são cada vez mais poderosos. Estou a falar da Luz Saúde, do Grupo José de Mello e do Lusíadas Saúde. São muito dependentes de acordos que têm com o setor público, como a ADSE, que representa um quarto da faturação destes grandes grupos, e das convenções que têm com o SNS. Eles têm crescido à custa destas convenções que aumentaram cerca de 110% em 10 anos. Nós estamos a pagar cerca de 500 milhões de euros por convenções anualmente. É este um dos mecanismos que tem permitido ao privado crescer em volume de negócios ao longo dos últimos anos.
As falhas no SNS podem ser vistas como oportunidades para o privado?
Sim. Vivemos um círculo vicioso infernal em que o SNS tem sido suborçamentado, ou seja, não tem recebido o investimento que necessita e com isso está a perder aos poucos alguns serviços e é forçado a contratualizar com o privado. O privado ganha esses serviços e essa renda do Estado e com esse dinheiro acaba por investir em si mesmo, porque não está suborçamentado como o SNS. Com isso acabam por ir buscar os profissionais ao SNS e com eles vão os doentes e por vezes os serviços. Quando mais isto se acentua, mais o SNS fica fraco e mais o setor privado se fortalece. E isso significa o quê? Que mais convenções precisam de ser assinadas. Portanto, é um círculo que nunca acaba.
Como é que se combate este círculo?
A resposta é multifatorial. Vem aí algum dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para o setor da saúde e não basta neste momento, perante este círculo infernal, deitar dinheiro no SNS, porque o que vai acontecer é que o SNS vai pegar nesse dinheiro e canalizá-lo para as convenções que tem com o privado. Ou seja, será o privado a ficar com este dinheiro. Precisamos de investir no SNS, renovando equipamentos e infraestruturas, mas precisamos também de captar profissionais. É preciso parar com a sangria de profissionais para o privado e para o estrangeiro. Temos ainda de acabar com a externalização, ou seja, acabar com esta contratualização com os privados que o SNS tem feito nos últimos anos. Só assim conseguiremos ter um SNS autónomo que não dependa de serviços convencionados. Só assim teremos privados que não estão dependentes do público.
Como é que se atraem os profissionais de saúde para a carreira pública?
A desestruturação das carreiras do SNS é um problema que tem décadas. Nós precisamos de recuperar estas carreiras, porque são a única coisa que mantém os profissionais no SNS, porque lhes dá a possibilidade de ter cargos de gestão, participar no ensino, ter avaliação contínua e progredir profissionalmente.
A exclusividade poderia ser um atrativo?
Pessoalmente penso que a exclusividade dos profissionais de saúde tem de voltar, porque só assim é que conseguimos acabar com o pluriemprego dos profissionais, sobretudo dos médicos.
Estamos a falar de uma realidade em que quem trabalha no SNS só trabalharia no SNS?
Acho que devemos pensar num futuro mais distante em que isso acontece, em que o SNS e os privados têm de coexistir e funcionar em harmonia. O que não pode haver é promiscuidade na relação entre os dois setores, porque isso tem prejudicado o SNS e permitido aos privados crescer à custa de rendas do Estado. Tem de haver uma separação dos dois setores.
Como é que essa exclusividade das carreiras na saúde seria atrativa para os profissionais?
A exclusividade não se faz, nem se pode fazer, de um dia par ao outro. Tem de ser progressiva e gradual, mas sobretudo tem que estar fundamentada nas necessidades, ou seja, não pode ser oferecida sem contrapartidas. Tem de ser bem paga e tem de dar a vantagem aos profissionais de terem acesso aos cargos de gestão e de ensino e de ter formação continua ao longo da vida. No fundo, tem de estar alinhada com os objetivos dos profissionais de saúde e dos serviços.
A Lei de Bases da Saúde aprovada em 2019 seria suficiente para essas reformas?
A Lei de Bases da Saúde é só um começo. A anterior Lei de Bases da Saúde que era de 1990 dizia explicitamente que o estado era responsável pelo crescimento do setor privado. Portanto, mudar a Lei de Bases foi um começo. Independentemente disso, temos de aplicar a Lei de Bases, ou seja, temos de tornar efetivo o que lá está escrito, caso contrário não passa de um papel.
O que não pode haver é promiscuidade na relação entre os dois setores, porque isso tem prejudicado o SNS e permitido aos privados crescer à custa de rendas do Estado
De onde vem a perceção velada em alguns setores sociais de que ir ao privado pode ser melhor que ir ao SNS?
Há muitas perceções sobre a saúde e é preciso um estudo científico correto para aferir o que é que as pessoas pensam. Mas globalmente eu penso que a população portuguesa olha para o SNS como um serviço prezado e que quer continuar a ter. Também considero que a maioria das pessoas é da opinião de que se deve investir mais no SNS. Essa opinião foi reforçada com esta pandemia. Mas respondendo à pergunta, o que as pessoas sentem que o privado oferece é a resolução de problemas muito concretos, como procedimentos eletivos de cirurgias ou consultas que estão com listas de espera inaceitáveis no SNS. Para além disso, têm um serviço de hotelaria que é superior ao do SNS e isso ninguém pode negar. Ainda assim, apesar destas pequenas vantagens, o pensamento hegemónico em Portugal é de que o SNS é um serviço valioso que serve a todos e que deve ser preservado e no qual deve ser investido.
A gestão privada pode ser mais eficiente e representar menores custos para o erário público?
Não há nenhum estudo que nos comprove que na área da saúde a gestão privada seja superior. Gerir um hospital privado é totalmente diferente de gerir um hospital público. Isso começa logo pelos serviços que o hospital privado oferece. Os hospitais privados praticamente não oferecem serviços para cuidados agudos, de AVC, de enfartes ou unidades de cuidados intensivos. Os hospitais públicos são obrigados a assegurar essas respostas que são das mais caras que existem.
Os privados não as asseguram porquê?
Porque não são rentáveis. Gerir um privado e um público não são atividades comparáveis em Portugal. Achar que a gestão privada pode ser mais eficiente é uma ideia falsa baseada em análises comparativas entre serviços que não são comparáveis. No entanto, eu acho que no que toca à gestão de dinheiros, não há diferença nenhuma entre privados e públicos, ou seja, existem exemplos de gestão privada e pública que são desastrosas. Mas no caso da saúde, a avaliação da eficácia não pode ser só pela gestão, tem de se basear em indicadores de saúde. Quando nós vamos avaliar os indicadores de saúde, vemos que os países com serviços públicos com acesso universal tendencialmente gratuito são sempre superiores aos países que assentam em serviços privados.
Não quero com isto dizer que devemos acabar com ADSE, porque não podemos fazê-lo neste momento. O ideal seria desenvolvermos o SNS ao ponto de não precisarmos da ADSE
No seu livro “O Negócio da Saúde”, é descrito como cartel o facto dos privados se terem unido para não pagar uma dívida à ADSE relativa a 2015 e 2016. Com a nova tabela da ADSE que entrou em vigor este mês, alguns privados voltaram a fazer um ultimato, ameaçando cortar relações com este subsistema de saúde. A ADSE deixou de ser apetecível para os privados?
A relação dos privados com a ADSE sempre foi de ameaças, mas 25% dos rendimentos do privado são pagos pela ADSE. Portanto, a partir do momento em que se recusem a trabalhar com a ADSE, vão perder 25% dos clientes, porque a esmagadora maioria das pessoas que tem ADSE não tem dinheiro para pagar um seguro privado. A gestão da relação dos privados com a ADSE foi sempre uma negociata feita sob o desígnio de ameaças constantes e bluff para conseguir subir os preços das tabelas que a ADSE paga aos privados.
Na sua opinião, a ADSE deveria ser alargada a outros contribuintes ou deveria ser extinta?
Se nós tivéssemos um SNS que fosse capaz de providenciar cuidados a todas as pessoas que deles necessitam não precisaríamos da ADSE. Nós precisamos da ADSE porque construímos um SNS em muito pouco tempo e não foi possível criar todos os recursos necessários. A ADSE é prévia ao SNS e por isso é que se manteve. A ADSE não é um seguro privado. As pessoas que têm este subsistema de saúde pagam uma percentagem do seu ordenado, o que significa que as pessoas que ganham mais pagam mais e quem ganha menos paga menos. Isso não acontece com um seguro de saúde privado. Os cuidados oferecidos pela ADSE são sempre os mesmos, independentemente daquilo que uma pessoa paga todos os meses. Por outro lado, a ADSE tem 1,2 milhões de beneficiários e há quase 400 mil pessoas isentas de pagamentos por terem baixos rendimentos. O caminho não é o do alargamento da ADSE à população, o caminho é o do investimento e alargamento do SNS para que não seja necessário esse alargamento. Se alargarmos a ADSE, o que estamos a dizer à população é que tem de ir ao privado e deixar de ir ao SNS. Não quero com isto dizer que devemos acabar com ADSE, porque não podemos fazê-lo neste momento. O ideal seria desenvolvermos o SNS ao ponto de não precisarmos da ADSE.
Como vê a criação de cursos de medicina em universidades privadas?
A Ordem dos Médicos defendeu que o curso de Medicina da Universidade Católica não reunia condições para funcionar. O curso acabou por ser aprovado contra a opinião da Ordem dos Médicos. Não há espaço suficiente nas unidades de saúde públicas para ter mais uma faculdade pública ou privada a formar médicos.
Corremos o risco de fabricar médicos sem competências?
Só com as faculdades públicas, nós hoje em dia já temos um problema grave de falta de condições para o ensino. Isso está diretamente relacionado com o enfraquecimento do SNS. Têm saído muitos médicos especialistas para o setor privado e para a emigração, o que tem deixado as escolas médicas com pouca capacidade para formar novos profissionais. Resolve-se este problema investindo nas carreiras.
É preciso investir a sério na prevenção e promoção da saúde. Só quando tivermos unidades de saúde familiar, médicos de família e cuidados continuados e de reabilitação para toda a população é que teremos hospitais que não estão sobrelotados
O ministro Manuel Heitor (PS) anunciou a abertura de três cursos de medicina em Aveiro, Évora e Vila Real até 2023. É uma solução para a falta de profissionais?
O que o ministro Manuel Heitor está a propor é agravar as condições de ensino. O ministro não fez nenhuma proposta para melhorar as condições nas escolas que já existem e a única coisa que faz é criar novas escolas que vão sobrepor-se às que já existem. O ensino médico clínico já é descentralizado, ou seja, os alunos de medicina já vão fazer formação em regiões do país fora dos centros urbanos.
Como ambiciona o futuro do SNS?
O SNS é muito mais resiliente do que se achava. A pandemia provo-o, apesar das décadas de desinvestimento. Mas ser resiliente não basta e temos de acabar com a suborçamentação de forma continuada. É preciso investir a sério na prevenção e promoção da saúde. Só quando tivermos unidades de saúde familiar, médicos de família e cuidados continuados e de reabilitação para toda a população é que teremos hospitais que não estão sobrelotados. Nessa altura deixaremos de ter internamentos sociais. Quando lá chegarmos, vamos estar a poupar muito dinheiro e vamos ter uma população mais saudável.
Qual é a lógica por de trás da suborçamentação crónica do SNS?
Existe por opção política. A mentalidade de gestão dos serviços de saúde nas últimas décadas foi roubada das empresas privadas. Esse paradigma errado só nos trouxe mais despesa e desorganização aos serviços de saúde. Os governos da direita e do Partido Socialista (PS) acharam que se dessem menos orçamento aos serviços de saúde, estes iriam gastar menos no ano seguinte. Olhavam para a suborçamentação como uma forma de controlar os custos dos serviços de saúde, mas basta olhar para a evolução da despesa do SNS nos últimos para ver que estavam enganados. Foi uma estratégia errada porque causaram sofrimento aos serviços de saúde, provocando uma hemorragia de recursos do SNS, sem sequer atingirem o seu objetivo principal que era controlar os custos.
O que ficou por dizer neste livro?
O livro fala sobre o setor privado dos cuidados de saúde e da sua relação com o SNS. Faltou-me falar sobre a forma como a indústria farmacêutica e dos dispositivos médicos tem tornado cada vez mais insustentável o financiamento dos serviços de saúde, pela escalada do preço dos medicamentos e pela lei das patentes. Faltou ainda falar do setor social no sistema de saúde e que tipo de relação é que o Estado deve ter com esta área. Isto são temas que podem dar outros livros.
Enquanto candidato pelo Bloco de Esquerda (BE) à Câmara Municipal de Gondomar, quais são as suas prioridades nestas eleições autárquicas?
O objetivo desta campanha em Gondomar é retirar a maioria absoluta ao PS, que dura há oito anos, e eleger um vereador. Com isto queremos contribuir para uma maioria de esquerda na câmara, sem que haja essa maioria absoluta do PS. Só assim será possível abraçar uma série de prioridades na cidade que têm sido negligenciadas, como a água, a habitação e os transportes.