No texto de introdução da História Global de Portugal, o Carlos Fiolhais, assim como os historiadores José Eduardo Franco e José Pedro Paiva, escrevem que a história deve ser vista enquanto dinâmicas entrelaçadas, e que é preciso entender o mundo a uma escala global e não somente nacional. Em Portugal, a história que é ensinada nas salas de aula explica e transmite essa visão mais global e interconectada com o exterior, quando se trata de falar de Portugal? Ou ainda é um ensino que, mesmo que não intencionalmente, cria a ideia de que existe a nossa história e a história dos outros?
Ainda é assim. Eu aprendi, como muitos, a história de Portugal que vinha de uma tradição nacionalista. Essa tendência ainda persiste, de ver a história apenas dentro das fronteiras de um país, seja o nosso ou outro. A verdade é que, desde que a humanidade existe, sempre houve interações entre grupos humanos sem que se pensasse em fronteiras. Aliás, as fronteiras são uma invenção relativamente recente, sendo que as de Portugal são das mais antigas da Europa, mas na pré e proto-história não existiam fronteiras. A recente tendência historiográfica da história global visa, precisamente, ultrapassar essa limitação. Ganha-se uma visão mais verdadeira se percebermos que sempre houve circulação de pessoas, bens e ideias. A maior parte dos fenómenos históricos só podem ser compreendidos num contexto global, isto é, superando a ideia de fronteiras nacionais. Só no século XIX é que os estados-nação se fixaram e as histórias foram reescritas, à luz dessa nova realidade. Neste mundo que é agora global, temos de saber fazer novas leituras da história. A História Global de Portugal, que agora publicámos, é um projeto que procura inovar na leitura da nossa história, ao adotar a visão global. Juntaram-se neste projeto quase cem historiadores e cientistas, nacionais e estrangeiros, a trabalhar aqui e lá fora.
O que se ganha, a nível de compreensão e conhecimento, quando analisamos os fenómenos e acontecimentos históricos como um emaranhado entre o local e o global, entre as visões micro e macro? O que podemos aprender sobre nós, os portugueses?
Não é possível compreender tudo o que se passou no território a que hoje damos o nome de Portugal, e que é ocupado há, pelo menos, 240 mil anos, se ficarmos confinados dentro das nossas fronteiras. Para começar, os Homo neanderthalensis e os Homo sapiens que aqui se cruzaram vieram de outros sítios da Europa. Muitos dos fenómenos que foram contribuindo para a configuração da identidade deste espaço e das suas populações não nasceram aqui. Por exemplo, a religião cristã veio de fora, estilos artísticos como o gótico e o românico vieram de fora, e até o liberalismo veio de fora. Portugal foi recebendo influências do mundo. Houve, também, processos que se iniciaram aqui e que contribuíram para transformações no mundo, por vezes bem longe daqui: na expansão marítima, que se deu a partir do século XV, houve processos de descoberta e de encontro de culturas, assim como houve marcas de violência, como a escravização de povos africanos. Portugal foi influenciando o mundo. Basta ver que a língua portuguesa é a mais falada no hemisfério Sul. Ficamos todos mais ricos se soubermos relacionar o local e o global, num conceito novo a que alguns chamam “glocal”.
Eu aprendi, como muitos, a história de Portugal que vinha de uma tradição nacionalista. Essa tendência ainda persiste.
Em Portugal, nos tempos mais recentes, ressurgiu, com um novo vigor e impulsionado por algumas forças políticas, uma visão muito estreita de nacionalismo, assente, em parte, num passado histórico mítico e numa identidade histórica que parece querer separar o “nós” dos “outros”. Estamos em 2021, logo, não seria de esperar que este tipo de discurso já estivesse arrumado na gaveta? Como é que este tipo de interpretações históricas ainda consegue ter oxigénio e proliferar?
O fenómeno que refere não é apenas português, vemo-lo noutros países do mundo. É uma espécie de resposta – de recusa – de uma visão global, que saiba integrar o local. É uma reação do local contra o global. Eu diria mesmo do passado contra o futuro. De facto, como diz, não parece fazer sentido voltar atrás na história para reconstruir os nacionalismos do século XIX e do século XX, que deram os conflitos que todos conhecemos, e olhe que alguns parecem esquecidos. O alastramento dessa visão (e o slogan “Let’s make America great again” é um bom exemplo dessa tentativa de regresso a um passado mítico) explica-se, em boa medida, pela necessidade que os seres humanos sentem de identidade, social ou política. Num mundo onde a informação causa bastante pulverização, verifica-se o fenómeno inverso de agregação, infelizmente por princípios e causas que deviam estar ultrapassadas. A sobrevalorização da identidade de um grupo em detrimento de outros é um inequívoco fator de conflito, designadamente quando é invocada de forma completamente irracional. A identidade, em si, é algo natural, o seu exacerbamento irracional é que é muito perigoso.
[O novo fenómeno de nacionalismo] é um exemplo da tentativa de regresso a um passado mítico. Explica-se pela necessidade de identidade, social ou política.
Olhando de forma um pouco mais relaxada para o nosso passado, e usando conceitos atuais (neste caso, de uma forma mais livre), podemos dizer que D. Afonso Henriques, fundador e primeiro rei de Portugal, era filho de um imigrante - Henrique de Borgonha, nascido na que é hoje a cidade francesa de Dijon. Não seria importante relembrar este tipo de pormenores aos nossos jovens, aos cidadãos portugueses?
Sim, é importante. Na História Global de Portugal é dado, precisamente, esse exemplo. D. Afonso Henriques, personagem histórica que a história nacionalista ergueu em mito, era filho de um borgonhês e de uma leonesa. Tem, portanto, origem familiar nos territórios que são hoje França e Espanha. O chamado Condado Portucalense surgiu durante a reconquista cristã de uma Península Ibérica ocupada pelos árabes, que por sua vez tinham vindo do Médio Oriente. Os cruzamentos com o exterior nunca cessaram. Como lembra o livro, D. João I casou em 1387 com uma filha do duque de Lencastre [que era membro da família real inglesa], quando no ano anterior tinha sido celebrado o Tratado de Windsor, entre Portugal e a Inglaterra, que ainda hoje perdura [com o casamento entre D. João I e Filipa de Lencastre a selar a aliança entre os dois países, um trunfo importante para afastar a ameaça que era reino de Castela]. Deve ser o mais antigo tratado político continuamente em vigor. Estes factos, que são do conhecimento dos historiadores, deviam ser mais conhecidos pelos portugueses.
Vivemos numa época marcada por um forte sentimento de indefinição, em relação ao futuro, a que se junta uma maior dificuldade em conseguir interligar os vários e crescentes fenómenos (políticos, sociais, culturais, científicos e tecnológicos, ambientais) que marcam a atualidade em todo o globo. Há quem defenda que o mundo se tornou muito mais complexo nas últimas décadas, de tal forma que parece que já não o conseguimos compreender. Este ponto de vista faz sentido?
O planeta não só tem, hoje, muito mais gente que no passado, como as interações entre os seres humanos são muito mais numerosas e frequentes, devido à globalização. Pessoas e bens circulam cada vez mais e cada vez mais depressa e, acima de tudo, a informação propaga-se hoje à velocidade da luz. Qualquer coisa que aconteça onde vivemos sabe-se, quase imediatamente, em todo o lado. Além do mais, todos nós somos recetores de informação e emissores de informação. A grande diferença da globalização contemporânea é que a Internet permitiu materializar o conceito de “aldeia global”. Somos todos vizinhos uns dos outros. Tendo crescido as interações entre os humanos é óbvio que passou a existir uma rede muito densa, e complexa, nas relações humanas. Tal não significa, porém, que não continuem a ser possíveis compreensões do mundo. Mas não existem compreensões únicas, há várias que coexistem e competem, disputando um espaço público muito concorrido. A compreensão, ou melhor, a integração ou inteligibilidade – que consiste na procura de interligações, similitudes, causalidades, interpretações – continua a ser possível e necessária. Assistimos e participamos nessas tentativas, em concorrência umas com as outras. Todos nós temos ideias, mais ou menos arreigadas, que conformam a nossa compreensão. Com visões naturalmente diferentes, conforme as disciplinas a que pertencem, até os sociólogos, historiadores, economistas e cientistas políticos olham para a sociedade de modo diferente.
Ou seja, através de diferentes ângulos de compreensão temos as ferramentas intelectuais que nos permitem perceber o que nos rodeia?
Sim, é possível compreender, apesar do aumento da complexidade. É necessário compreender, como aliás sempre foi. Compreender é humano.
Não existem compreensões únicas do mundo, há várias que coexistem e competem, disputando um espaço público muito concorrido.
Perfilha a ideia de que a sociedade moderna perdeu o controlo sobre o sistema global em rede que criou, ou, pelo menos, de que está em vias de perder ou já perdeu uma boa parte desse controlo? Existe a sensação, que pode estar certa ou errada, de que os políticos e os eleitores cada vez menos conseguem mudar a forma como esse sistema global (assente na tecnologia e em automatismos) evolui e flui, de que apenas é possível ter controlo sobre pequenas partes dessa rede e qualquer mudança drástica está fora de alcance.
Não sei se alguma vez tivemos controlo sobre o sistema global. Nunca houve um governo do mundo, mesmo quando houve grandes impérios. No final da Segunda Guerra Mundial foi criada a Organização das Nações Unidas, mas nós sabemos quão desunidas estão as nações. Há umas com mais poder do que outras e há lutas pela hegemonia. Não tenho ilusões, como outros já tiveram, sobre a possibilidade de existir um governo à escala planetária. É verdade que a inteligência artificial, que resultou e resulta da inteligência natural, permite, atualmente, que se façam decisões automáticas. Mas isso não é necessariamente mau, se a soubermos desenvolver e aplicar devidamente. Como qualquer ciência e tecnologia, deve ter as suas regras, e a ética, que é um assunto intrinsecamente humano, está para além da ciência e tecnologia. Temos de, em cada momento, consensualizar uma ética que guie as nossas ações.
Fazer futurologia, neste momento, parece arriscado, ainda para mais quando há sinais de que se cavam fundas trincheiras que nos dividem ainda mais. Todavia, se tivermos em conta que a nossa civilização partilha o mesmo espaço, que é a Terra, assim como o mesmo futuro, então tem de existir um consenso sobre para onde devemos caminhar. Certo?
Diferenças e antagonismos entre os humanos sempre os haverá, como sempre houve ao longo da história. Espero que tenhamos aprendido com a história o perigo de visões totalitárias que se tentam impor. Mas há muitas coisas que partilhamos. Por exemplo, o método científico, que nos permitiu chegar à rede mundial que hoje temos, é de toda a humanidade. Outro exemplo é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que devia ser um património comum a todos os que vivem neste planeta. A ciência, com a genética moderna, ensina-nos que todos somos diferentes, mas todos somos iguais. Para além da ciência, há valores humanos, como os da “liberdade, igualdade e fraternidade” que foram a bandeira da Revolução Francesa ou os da Declaração Universal dos Diretos Humanos, que devem ser as metas da nossa vida comum. Não vejo outra maneira para a evolução da humanidade do que o caminho do avanço do conhecimento – podemos chamar-lhe progresso –, assim como o avanço das relações entre os humanos, que é algo muito mais difícil. A partilha de valores humanos, após toda a discussão que for precisa, é a maneira de avançarmos num caminho comum.
O nosso país, ao longo de quase dois milénios, recebeu influxos de outras geografias e outras culturas, assim como irradiou conhecimentos e novidades ao mundo. Em suma, recebemos dos outros e também lhes demos algo. Neste receber e dar, quais os fenómenos, influências ou acontecimentos históricos que mais repercussões tiveram?
Vou puxar a brasa à minha sardinha. Escrevi para a História Global de Portugal um capítulo a que dei o título de “A Revolução Científica chega à Ásia”. Galileu publicou os resultados das suas primeiras observações com o telescópio em 1610. Escassos quatro anos depois eles foram publicados em mandarim pelo padre Manuel Dias, um jesuíta português em Pequim, onde falava das descobertas de Galileu, que são um dos marcos da Revolução Científica e o processo de criação da ciência moderna. Atualmente, o eixo económico do mundo derivou para Oriente, passando pela China, mas a verdade é que a criação atual de riqueza se baseia na aplicação da ciência e esta foi semeada no Império do Meio por missionários, os quais ou eram portugueses ou passaram por Portugal. O nosso país foi uma espécie de “rampa de lançamento” para jesuítas e outras ordens religiosas que, ao mesmo tempo que divulgavam a fé católica, também espalhavam e recolhiam cultura – e, aqui, incluo a ciência na cultura, obviamente. Se recuarmos no tempo, são inúmeros os exemplos de conexões internacionais relevantes para a história de Portugal. Na Época Medieval, lembro esse “santo global” que foi Santo António [nasceu em 1195 e morreu em 1231], que foi daqui para África e, depois, para Itália e França, ganhando projeção mundial. Na Época Moderna, relembro a revolta dos escravos de S. Tomé, de 1517, que foi pioneiro de outros levantamentos de populações escravizadas, ou o terramoto de Lisboa de 1755 que abalou intelectualmente a Europa. Na Época Contemporânea, vale a pena ler no nosso livro os textos sobre a independência do Brasil, em 1822, ou sobre a abolição da pena de morte em Portugal, em 1867.
O eixo económico do mundo passa pela China, mas a criação atual de riqueza baseia-se na aplicação da ciência e esta foi semeada no Império do Meio por missionários portugueses ou que passaram por Portugal.
Todos sabemos que é um homem de ciência, com inúmeros artigos científicos e quase 60 livros publicados, inclusive um, bastante importante, sobre a História da Ciência em Portugal. Se olharmos para a ciência feita em Portugal, e para os portugueses que andaram por terras estrangeiras (o que ainda hoje acontece, com uma comunidade científica portuguesa espalhada pelo globo e a fazer investigação em tantas e distintas áreas), encontramos épocas em que contribuímos imenso para o conhecimento científico global, outras em que estávamos mais abertos e recetivos à ciência que vinha de fora, e alturas em que a ciência pareceu definhar no nosso país ou em que estávamos fechados para as novas ideias e teorias que vingavam no resto do mundo, revolucionando-o. Os períodos em que a ciência mais floresceu em Portugal foram, precisamente, aqueles em que mais interações tivemos com o resto do mundo?
Desde que há ciência, sempre houve ciência em Portugal, trazida e levada por muitas pessoas. A ciência em Portugal conheceu períodos de luz e de sombra. O maior período de luz ocorreu no tempo da expansão marítima, quando a ciência moderna estava a despontar na Europa. Os portugueses souberam desenvolver ciência e tecnologia para as navegações. Relembro a navegação astronómica, erguida com rigor por Pedro Nunes, e a cartografia náutica, na qual os portugueses foram pioneiros: por exemplo, o nosso livro tem um capítulo sobre o “planisfério de Cantino”, de 1502, um dos primeiros mapas-múndi. Manuel Dias e um seu colega italiano fizeram, em 1623, o primeiro globo que é conhecido, na China. Por volta de 1563, um médico português escrevia, em Goa, o primeiro tratado sobre plantas do Oriente com aplicações medicinais. Um médico belga haveria de encontrar esse tratado em Lisboa e de o traduzir para latim, divulgando-o ao mundo. Houve um outro período de luz da ciência em Portugal, no tempo do Iluminismo, no século XVIII, com os chamados “estrangeirados”. A construção da ciência precisa da circulação de pessoas e de ideias, como foi bem visível no Iluminismo. Mais recentemente, foi a entrada na Comunidade Económica Europeia, em 1986, que nos permitiu dar um enorme salto na ciência, facilitando o intercâmbio científico que hoje existe.
A construção da ciência precisa da circulação de pessoas e de ideias.
O Carlos Fiolhais nasceu em 1956. Sabe o que é viver em ditadura e democracia, e, enquanto cientista e professor, conheceu as diferentes realidades de outros países, relacionou-se com pessoas de outras partes do mundo. Há motivo para sermos otimistas quanto ao futuro?
O que se poderia fazer melhor, em Portugal, para que nos consigamos inserir num futuro que seja global, em vez de ficar para trás, a estagnar no passado?
As ciências sociais, assim como as humanidades, em geral, têm acompanhado, nalguns casos antecipado, o percurso da nossa condição humana. É preciso uma melhor ligação entre ciência e humanidades, porque as duas dimensões fazem parte da cultura humana. Num mundo global, Portugal tem de saber acompanhar as mudanças dos tempos. Há características nossas que podiam e deviam ser mais valorizadas. Por exemplo, a nossa extensa área marítima, pois 97% de Portugal é mar, e a nossa língua, que é global, sendo a quinta mais falada no mundo. Com todo este potencial, um problema que me preocupa é o futuro dos jovens. Temos excelentes cérebros, espalhados pelo mundo, que se foram embora porque não encontraram aqui oportunidades. Não podemos esquecer que o maior bem de Portugal é a inteligência dos portugueses.
A ciência dá-nos esperança, mas a ciência sozinha não chega. É preciso ética, é preciso humanidade.