Ocupar e deixar andar. A memória do Iraque foi apagada em 2003 com a anuência dos EUA
“Cometeu-se no Iraque o primeiro memoricídio do século XXI”, resume Fernando Báez, sobre uma das consequências da ocupação do país, em 2003, pelas forças militares dos EUA. “A sua memória foi apagada, espoliada e humilhada. Poderia imaginar-se um destino pior para a região onde começou a nossa civilização?” Palavras duras de quem fez parte das comissões das Nações Unidas que investigaram os danos causados no património cultural do Iraque, durante a Segunda Guerra do Golfo.
Tudo começou no dia seguinte ao simbólico derrube da estátua do ditador Saddam Hussein, na praça de Firdos, na cidade de Bagdade. Uma multidão de pessoas juntou-se ao pé Biblioteca Nacional, que também ficava na capital iraquiana, mas as forças ocupantes, segundo os relatos de quem tudo testemunhou, não se preocuparam em defender os locais que albergavam o rico património histórico do país. Foi assim que, a 10 de abril de 2003, o desprotegido edifício, com três pisos e mais de dez mil metros quadrados, foi tomado de assalto e saqueado, de forma anárquica, por “crianças, mulheres, jovens e anciãos”, adianta o escritor venezuelano.
Um primeiro grupo de saqueadores foi espevito a apoderar-se dos manuscritos mais importantes, os que vieram depois foram mais destrutivos, sendo que, no interior do edifício, “a multidão corria por todos os lados com os livros mais valiosos”, deixando para trás, em jeito de marca identificativa, o seu ressentimento para com o regime caído, com as paredes rabiscadas de mensagens onde se lia «Morte a Saddam», «Morre Saddam» ou «Saddam Apóstata».
Os dias seguintes foram marcados por mais saques, até que, a 13 de abril, perante a total passividade dos militares norte-americanos estacionados junto à Biblioteca Nacional de Bagdade, “um grupo chegou em autocarros de cor azul, sem dísticos oficiais, e regou com algum combustível as estantes e pegou-lhes fogo”. No meio de tudo, também não se coibiram de criar piras acesas de livros, no chão, como se um auto de fé se tratasse, existindo provas de que foi usado, em todo o processo, fósforo branco (que arde durante muito mais tempo) de origem militar. “Passadas umas horas, uma coluna de fumo podia ver-se a mais de quatro quilómetros, e nesse incêndio voraz desapareceram as obras.”
Só no segundo piso da biblioteca, onde ficava o Arquivo Nacional do Iraque, dez milhões de documentos históricos transformaram-se em cinzas.
A título de comparação, seria o mesmo que, em Lisboa, tomar de assalto tanto a Biblioteca Nacional como a Torre do Tombo, roubando o seu espólio mais valioso e doando o resto às labaredas destrutivas. Uma autêntica calamidade, portanto.
O repórter de guerra Robert Frisk soube sumarizar o que realmente se perdeu em Bagdade, num dos seus vívidos artigos:
“Produziu-se ontem a queima dos livros. Primeiro chegaram os saqueadores, depois os incendiários. Foi o último capítulo no saque de Bagdade. A Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional, um tesouro de valor incalculável de documentos históricos otomanos – incluindo os antigos arquivos reais do Iraque – converteu-se em cinzas a três mil graus de temperatura […]. Vi os saqueadores. Um deles amaldiçoou-me quando tentei reclamar-lhe um livro de leis islâmicas que uma criança com não mais de dez anos levava. No meio das cinzas da história iraquiana encontrei um arquivo a voar pelos ares: páginas de cartas escritas à mão na corte de Sharif Husein de Meca – que foi o começo da revolução árabe contra os turcos – para Lawrence da Arábia e os governadores otomanos de Bagdade. Tudo voava sobre o pátio sujo. E as tropas norte-americanas não fizeram nada […] Eu tinha nas mãos os últimos vestígios da história escrita do Iraque. Mas para o Iraque este é o ano zero; com a destruição das antiguidades no Museu Arqueológico Nacional no sábado e o incêndio do Arquivo Nacional e depois da Biblioteca Alcorânica, a identidade cultural do Iraque apagou-se. Porquê? Quem pôs o fogo? Com que demente finalidade se destruiu toda esta herança?”
Atear fogo à cultura judeo-europeia. O fanatismo nazi entre 1933 e 1945
Além do Holocausto, palavra terrível que nos relembra a aniquilação deliberada e organizada do povo judeu na Europa, pelos carrascos da Alemanha Nazi, houve o “Bibliocausto nazi”, como lhe chama Báez, com o intuito de apagar da cultura alemã, e nos países conquistados pela máquina militar de Hitler, as ideias dos autores de origem judaica.
O primeiro aviso para o que depois se seguiria foi dado em 1933, precisamente o ano em que o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (o Partido Nazi) ascendeu ao poder na Alemanha, durante um dos períodos mais conturbados da história da democracia moderna. Joseph Goebbels, um fanático, foi nomeado por Adolf Hitler para liderar o Ministério do Reich para a Ilustração do Povo e para a Propaganda.
De forma deveras ilustrativa, para todos verem as intenções do nazismo, Goebbels promoveu nesse ano, em todo o território alemão, a censura e destruição das obras que o regime considerava perigosas, deixando o trabalho sujo a cargo das organizações estudantis nazis. O que os movia, acima de tudo, era o afã em obliterar as marcas culturais dos judeus, passando a pente as bibliotecas das principais universidades do país. Foi assim que as praças de muitas cidades alemãs iluminaram-se com as piras em chamas de milhares de livros, proscritos pelo novo regime.
Nesta primeira onda de obliteração cultural, o mês de maio foi o mais profícuo para os pirómanos nazis. A 10 de maio, os estudantes da prestigiada Universidade Wilhelm Humboldt de Berlim despiram a sua biblioteca dos livros que consideravam impuros. Estas obras, juntamente com as que tinham sido capturadas em outras bibliotecas universitárias, públicas e até privadas, foram transportadas para a Praça da Ópera, na capital, destinadas a um enorme espetáculo de massas em que o fogo serviria para extinguir o antigo e abrir caminho ao novo. Nesse dia, mais de 25 mil livros arderam na presença de Goebbels, um evento infame que ficou na história, não só pelo ato, mas também pelas palavras que o chefe da propaganda nazi proferiu, enquanto os seus olhos refletiam a luz da combustão:
“A época extremista do intelectualismo judaico chegou ao fim e a revolução da Alemanha abriu as portas, novamente, a um modo de vida que permita atingir a verdadeira essência do ser alemão. […] No decurso dos passados 14 anos, vocês, os estudantes, sofreram em silêncio a humilhação da República de novembro, e as bibliotecas foram inundadas com o lixo e a corrupção do asfalto literário dos judeus. […] As revoluções que são genuínas não se detêm perante nada. Nenhuma área deve permanecer intocável. […] Portanto, vocês estão a proceder corretamente quando, a esta hora da meia-noite, entregam às chamas o espírito diabólico do passado. […] O passado recente perece nas chamas; os novos tempos renascem dessas chamas que se queimam nos vossos corações.”
Os livros de Sigmund Freud, o pai da psicanálise, não escaparam a este ardor fanático, mas, mesmo assim, este não deixou de ser mordaz quanto convidado a comentar os acontecimentos de maio de 1933: “Na Idade Média eles ter-me-iam queimado. Agora contentam-se em queimar os meus livros”. Um sarcasmo inocente, pois Freud não anteviu os campos de extermínio de judeus, com as suas câmaras de gás e os fornos crematórios.
Estima-se que tenham sido queimadas obras de mais de 5500 autores, sendo que, de acordo com Fernando Báez, “os principais textos dos mais destacados representantes de princípios do século XX alemão receberam vetos contínuos e arderam sem piedade”. O pior veio depois.
Quando a Batalha de Berlim chegou ao fim, a 2 de maio de 1945, marcando a rendição incondicional dos nazis e o fim da Segunda Guerra Mundial, pelo menos na Europa, o rasto da perseguição à memória histórica e cultural dos judeus pareceu demasiado longo. Escreve Báez: “A Comissão para a Reconstrução Cultural Judeo-Europeia estimou que em 1933 havia 469 coleções de livro judaicos, com mais de 3.307.000 volumes, distribuídas de modo irregular. Na Polónia, por exemplo, havia 251 bibliotecas com 1.650.000 livros; na Alemanha, 55 bibliotecas com 422.000 livros; na União Soviética, 7 bibliotecas com 332.000 livros; na Holanda, 17 bibliotecas com 74.000 livros; na Roménia havia 25 bibliotecas com 69.000 livros; na Lituânia havia 19 bibliotecas com 67.000 livros; e na Checoslováquia havia 8 bibliotecas com 58.000 livros. Quando terminou a Segunda Guerra Mundial, não restava nem a quarta parte destes textos.”
Curiosamente, os livros da biblioteca pessoal de Hitler, que foram escondidos numa mina de sal e, posteriormente, descobertos pelos Aliados – da sua coleção de 16 mil volumes só sobraram três mil, e, destes, alguns foram roubados e outros destruídos, por conterem informação considerada sensível –, mostram que o ditador era um leitor compulsivo, bibliófilo e tinha carinho por edições antigas. Se assim era, qual o motivo para querer destruir o património escrito de todo um povo? Parte da resposta, como frisa Báez, poderá estar numa frase de um dos livros pertencentes ao fascista alemão, Magia: História, Teoria e Prática, publicado em 1923 pelo místico Ernst Schertel, cuja cópia estava pejada de anotações feitas pelo Führer. Nele se lê: “Quem não tem dentro de si as sementes do demoníaco, nunca dará à luz um novo mundo”.
Século XVI. Queimar a ciência dos Astecas e Maias por conterem “falsidades do Demónio”
Na América central, por altura da chegada do europeu Cristóvão Colombo, em 1492, os Astecas e os Maias também tinham bibliotecas. Existia uma, bem grande, no palácio de Netzahualcóyotl, poeta, arquiteto e monarca da cidade-estado asteca de Tezcoco – governou até 1472, ano da sua morte. Também existia uma enorme biblioteca em Tenochtitlán, capital do império asteca, situada no palácio do rei Montezuma II, o qual liderou o império até 1520, ano em que os Conquistadores Espanhóis, liderados pelo ambicioso Hernán Cortés, o mataram, dando início ao colapso desta civilização do Antigo México.
Os livros dos Astecas e Maias, ao contrário das versões europeias, assumiam a forma de códices onde se reproduziam desenhos – era usada uma linguagem pictórica complexa e sofisticada, como os hieróglifos do Antigo Egito –, sendo feitos de papel mate, obtido a partir da casca da figueira-brava. Estes códices reproduziam todos os aspetos da vida destes povos, com informações sobre a sua história, ciência e rituais sagrados, mas também incluíam registos sobre os direitos de propriedade e os tributos a pagar, por exemplo.
Todavia, a esmagadora maioria destes livros desapareceram com a ocupação espanhola, vistos como uma ameaça pelas forças coloniais e pelos padres da Igreja Católica.
Em 1528, desembarcava na América o monge franciscano Juan de Zumárraga, aí enviado por Carlos V, rei de Espanha, para ser o primeiro bispo do México. Homem taciturno e nada sociável, Zumárraga ficou conhecido em Espanha por investigar casos de bruxaria e praticar exorcismos. Passados apenas dois anos, em Tezcoco, o bispo mandou acender uma enorme fogueira onde pereceram todos os escritos dos Maias a que conseguiu deitar a mão. Antes dele, o próprio Marquês do Vale de Oaxaca, título nobiliárquico que foi concedido a Cortés pelos seus ‘feitos’ em terras americanas, já tinha feito estragos irreparáveis, usando o fogo (sempre o fogo) para transformar em fornalhas os arquivos, repletos dos mais variados tipos de códices, das cidades que atacava.
Diego de Landa, o sucessor de Zumárraga, outro franciscano, não quis ficar atrás e, em 1562, mandou queimar códices dos antigos Maias. Anos mais tarde, ao tentar justificar os seus atos, escreveu:
“Usava também esta gente de certos caracteres ou letras, com os quais escreviam nos seus livros as suas coisas antigas e as suas ciências, e com estas figuras e alguns sinais das mesmas entendiam as suas coisas e davam-nas a entender e ensinavam. Achámos um grande número de livros com estas suas letras, e porque não tinham coisas em que não houvesse superstição e falsidades do Demónio, queimámo-las todas, o que sentiram muito e lhes provocou muita pena.”
Não é de espantar que esta destruição, sem sentido, tenha provocado a revolta e levado a um conflito entre os nativos e os colonos, que, para não variar, acabou no assassinato em massa dos primeiros – apesar de estarem em franca minoria, as armas e a tecnologia dos espanhóis davam-lhes larga vantagem quando chegava o momento de combater.
O padre jesuíta José de Acosta, no seu História Natural e Moral das Índias, deixa um testemunho diferente do que sucedeu e viu, à época, tendo logo compreendido o mal que estava a ser feito, com a perda de todo um conhecimento ao qual outros povos, europeus incluindo, poderiam ter ido beber.
“Na província de Iucatão havia uns livros de folhas, a seu modo encadernados ou dobrados, em que tinham os índios sábios a distribuição dos seus tempos, e conhecimento de plantas e animais, e outras coisas naturais, e as suas obras antigas; coisa de grande curiosidade e diligência. Pareceu a um doutrinador que tudo aquilo deviam ser feitiços e arte mágica, e porfiou em que haviam de se queimar, e queimaram-se aqueles livros, o que lamentaram depois não só os Índios mas também espanhóis curiosos, que desejavam saber segredos daquela terra. O mesmo aconteceu com outras coisas, que, pensando os nossos que era tudo supersticioso, fizeram perder muitas memórias de coisas antigas e ocultas, que não pouco podiam aproveitar.”
Contas feitas, só sobreviveram até aos dias de hoje alguns poucos códices pré-hispânicos. Não obstante, há que fazer uma devida e importante ressalva: os códices Astecas, destruídos pelos espanhóis, eram versões alteradas dos códices Maias, nos quais se representava os Astecas como os governantes legítimos daquelas terras. O que aconteceu às obras originais? Foram queimadas pelos Astecas, depois de terem subjugado os Maias, muito antes da chegada do invasor europeu.