“Vejo as pessoas a rejeitar a realidade e a optar por um reality show. E isso, para mim, é assustador”. É o que pensa, em declarações à revista Nature, o físico Michael Lubell, do City College de Nova Iorque, instituição académica através da qual segue as políticas para a ciência implementadas pelos EUA.
Para este cientista, a dimensão do voto popular que o presidente em exercício Donald Trump recebeu, e que o deixaram não tão longe do democrata Joe Biden, o candidato mais votado de sempre de umas presidenciais, revela muito sobre a importância que os estadunidenses dão à verdade e aos factos científicos. Ou seja, muito menos do que deviam, pelo que a ciência manter-se-á sob ataque nos próximos anos, nos EUA. Isto tem consequências terríveis quando se trata de lidar com a pandemia do século – o coronavírus SARS-CoV-2 – ou as alterações climáticas, provocadas pelas atividades humanas.
No estado da Florida, um dos que mais peso tem no Colégio Eleitoral, órgão responsável por determinar quem ganha as presidenciais, 51,2% dos eleitores votou em Donald Trump. Para Naomi Oreskes, investigadora em história da ciência pela Universidade de Harvard em Cambridge, no estado do Massachusetts, este número mostra que, “evidentemente, bastantes pessoas que vivem na Florida estão em [estado de] negação em relação às alterações climáticas”, diz à Nature.
Nos últimos 20 anos, fenómenos climáticos extremos como as tempestades tropicais e os furacões, devido ao aquecimento dos oceanos, tornaram-se mais intensos na Florida, além de que se registou uma subida do nível do mar que ameaça submergir boa parte do território às águas do Atlântico e do Golfo do México. A quantidade de chuva, durante as fortes tempestades, aumentou em quase 30% desde 1958, na região sudeste, causando inundações. Parece não haver dúvidas que o aumento da temperatura média do planeta deverá intensificar estes problemas: o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, sob a égide das Nações Unidas, estima que as atividades humanas terão levado o globo a aquecer 0,8 graus Celsius em relação ao período entre 1850 e 1900, sendo provável que chegue aos 1,5 graus Celsius entre 2030 e 2052, caso nada seja feito para desacelerar o ritmo atual.
Mesmo assim, a maioria preferiu votar, em 2016 e em 2020, num político que fez os EUA sair do Acordo Climático de Paris, reverteu leis de proteção ambiental e que sempre mostrou total desinteresse em fazer parte do esforço para diminuir a emissão de gases de efeito de estufa, preferindo abraçar e promover a poluente indústria de combustíveis fósseis.
Porque há tantas pessoas, afinal, a fazer 'orelhas moucas' ao consenso científico em torno do aumento da temperatura e dos sérios riscos que coloca à sobrevivência humana, ou a negar a necessidade de agir de forma diferente e urgente? O dedo talvez não possa ser só apontado ao cidadão-comum. Para alguns investigadores, o resultado das presidenciais de 2020 mostram que os cientistas norte-americanos não estão a conseguir criar uma ligação com a população, de modo a que sejam escutados e tidos seriamente em conta. “Como consertamos isto? Não sei, mas é óbvio que aquilo que nós [os cientistas] estivemos a fazer não resultou”, sintetiza Naomi Oreskes.
Maioria dos republicanos não crê que há dedo humano nas alterações climáticas
Contudo, a afiliação partidária parece ter uma grande influência sobre a ideia geral que cada pessoa forma sobre determinados temas, como o uso do método científico e as alterações climáticas. É verdade que uma sondagem do Pew Research Center, de fevereiro deste ano, mostra que o nível de confiança dos norte-americanos de que os cientistas agem em prol do interesse público tem vindo aumentar (em relação a outras profissões, estão no topo), mas, ao mesmo tempo, também indica que boa parte não acredita assim tanto no método científico – o conjunto de regras e procedimentos básicos que produzem e ajudam a acumular o conhecimento científico. No total, 63% acredita que o método científico produz conclusões sólidas, enquanto 35% refere que pode ser usado para produzir qualquer resultado que um investigador queira. Quando se esmiúça estes dados, vê-se que são os democratas quem têm maior confiança no método científico, em relação aos republicanos: a diferença é bem notória, inclusive no grupo (de apoiantes dos dois partidos) que tem conhecimentos científicos elevados, sendo que o nível confiança é quase igual (baixo) junto de todos os que têm baixos conhecimentos.
A crer em outra sondagem, de 2019, a maioria da população dos EUA diz que o Governo está a fazer pouco, a nível de políticas, para proteger o ambiente e reduzir os efeitos das alterações climáticas, com boa parte a defender que o país devia focar-se no desenvolvimento de fontes alternativas de energia, em detrimento dos combustíveis fósseis. O problema é que existe uma diferença abismal entre apoiantes dos dois partidos, com 90% dos democratas a dizer que se está a fazer pouco em matéria ambiental, contra 39% dos republicanos. Igualmente polarizador é quando se pergunta se as atividades humanas contribuem, ou não, para as alterações climáticas: somente um em cada dez republicanos conservadores diz que contribui bastante, contra oito em cada dez democratas liberais.
Cientistas ao lado de Biden e contra os ataques de Trump
A presidência e o discurso político de Donald Trump ficarão sempre marcados pelo uso incontrolável da mentira. Desde que tomou posse, em janeiro de 2016, e até ao início de julho de 2020, o homem que nos últimos quatro anos se sentou na Sala Oval já fez 20 mil declarações falsas ou enganadoras, segundo a contabilização feita pelo jornal The Washington Post.
A ciência não ficou imune aos ‘factos alternativos’ apresentados pelo presidente, mas a comunidade científica não o perdoou. Um inquérito realizado pela Nature junto de 900 cientistas, de várias áreas e que estão nos EUA – a amostra não é representativa do total de cientistas no país –, mostrou que 86% deles estavam ao lado de Biden. Trump só recolheu o apoio de 8% dos inqueridos. As políticas amigas do ambiente do antigo vice de Barack Obama parecem convencer a larga maioria, nomeadamente os seus planos para controlar o coronavírus e mitigar as alterações climáticas.
Biden já veio frisar que uma das suas primeiras medidas, enquanto presidente, seria o de voltar a colocar a nação entre os assinantes do Acordo Climático de Paris – os EUA só se retiraram por decisão de Trump –, a que se junta um audacioso plano climático para todo o país, orçado em 2 mil milhões de dólares que serão aplicados no espaço de quatro anos, com o objetivo de conseguir um setor elétrico totalmente livre da emissão de carbono e uma maior justiça ambiental.
Aliás, a principal preocupação dos 768 cientistas apoiantes de Biden, a crer no inquérito da Nature, prende-se com as alterações climáticas, seguido da resposta à pandemia e da justiça social. Os 70 cientistas que estão ao lado de Trump mostraram-se, na sua maioria, mais preocupados com a economia.
Estes dados, apesar de não poderem ser extrapolados para o geral da comunidade científica nos EUA, sugerem fortemente que o desdém e os constantes ataques de Donald Trump, enquanto presidente, às evidências e conclusões obtidas pela ciência causaram desgaste e apreensão junto desta classe. Tanto assim foi que as revistas de publicação científica Science e Nature, duas das mais reputadas a nível mundial, endorsaram publicamente a candidatura de Biden, uma manifestação de apoio nada costumeira de se ver no meio científico. Por norma, os cientistas tentam manter-se distantes da política quando estão a exercer o seu trabalho, de modo a que a sua neutralidade, um requisito ético, não seja colocada em causa.
O editorial da Nature, em que é explicitado as razões do apoio a Biden, refere como um dos motivos os constantes ataques do Presidente Trump a “tantas instituições de valor”, nomeadamente as agências de investigação do país, a imprensa e os tribunais. “Desafios como os de acabar com a pandemia de Covid-19, enfrentar o aquecimento global e travar a proliferação e ameaça de armas nucleares são globais e urgentes. Não serão superados sem os esforços coletivos dos estados-nação e as instituições internacionais que a administração Trump procurou minar.”