No romance que inspirou o filme O Paciente Inglês deve recordar-se que um dos seus cenários é o planalto de Gilf Kebir – «a grande barreira», em português –, uma região montanhosa e árida que faz parte do inóspito Saara. É no Gilf Kebir, um local que inspira mistério, que se esconde a Caverna dos Nadadores, descoberta em 1933 pelo húngaro László Almásy, um explorador transformado por Michael Ondaatje numa das personagens principais do drama que escreveu. Nas paredes interiores da caverna encontram-se impressionantes imagens do Neolítico, datadas de há quase dez mil anos, durante o chamado Período Húmido Africano, podendo ver-se humanos a nadar, girafas e hipopótamos. Quem as pintou vivia numa era em que a atual região do Saara tinha vegetação, onde chovia regularmente e existiam lagos, onde existia tempo e imaginação para registar na pedra o mundo que existia em redor.
No Chade, na Caverna de Manda Guéli, no centro do grande deserto de África, novas representações pictográficas do neolítico, desta vez de gado. Na prática, este tipo de achados arqueológicos está espalhado ao longo do Saara, desde a zona atlântica, a oeste, ao Mar Vermelho, a este. Não é para admirar, pois o clima do maior deserto quente do mundo (os outros dois, frios, ficam no Ártico e na Antártida), variou nas últimas centenas de milhares de ano entre o húmido e o seco, e onde antes existia verde hoje só se vê aridez e dunas de areia, especulando-se que o ciclo possa voltar a inverter-se daqui a milhares de anos.
Ao todo, o deserto do Saara ocupa, de momento, 31% de África e cobre grande parte do território de onze países do continente. A sul do mesmo, numa espécie de região de fronteira em forma de cinturão, situa-se o Sahel (significa, precisamente «fronteira» ou «costa», em árabe), uma área de clima semiárido que faz a transição entre o deserto, a norte, e a savana, a sul, e onde habitam 500 milhões de pessoas. O grande problema atual é que os solos dos países do Sahel estão a ser fustigados pelo avanço da desertificação, fazendo com que o Saara se estique ainda mais. Isto não só se deve às alterações climáticas globais, como também a práticas humanas não-sustentáveis: desde o uso intensivo da madeira das árvores, o que levou à desflorestação, até à erosão dos solos devido à agricultura e o pastoreio intensivos. A esta equação há que juntar um enorme crescimento populacional, nas últimas décadas.
As grandes tempestades de areia tornaram-se recorrentes, o que piora tudo, sendo que, de acordo com o Banco Mundial, 75% do Sahel é, neste momento, demasiado seco para permitir que os pastores de gado se fixem num local, obrigando-os ao nomadismo, em busca de água e de pastos. Ao todo, 20 milhões de pessoas desta região dependem da pastorícia para sobreviver, só que as épocas de chuva estão a ficar mais curtas e as de seca chegam a durar nove penosos meses. A seca de 2010 foi particularmente dura. Só no Níger, por exemplo, estima-se que 4,8 milhões de cabeças de gado terão morrido, cerca de 25% do animais que existiam, o equivalente, informa o Banco Mundial, a uma perda superior a 700 milhões de dólares na economia do país – o Produto Interno Bruto, à época, era de 7,8 mil milhões de dólares (valores atualizados para os dias de hoje).
Em abril deste ano, a Rede de Prevenção de Crises Alimentares para o Sahel e a África Ocidental já deixou o aviso, urgente, de que 19,6 milhões de pessoas estão, neste momento, numa grave situação de insegurança alimentar. Uma crise agravada pela pandemia de COVID-19 e pelas várias tensões políticas, religiosas e sociais, assim como os conflitos armados, que têm medrado nesta parte do globo.
Soluções? Face ao avanço do deserto do Saara, a reflorestação de zonas áridas e a utilização de práticas sustentáveis no setor da agropastorícia têm sido enfatizadas e colocadas em prática, como forma de mitigar o problema, incluindo uma melhor gestão da água.
Pelo meio, surgiu o faraónico projeto da Grande Muralha Verde, uma ideia antiga que, em 2007, foi recuperada pela União Africana. Uma enorme barreira de árvores que travariam as areias do Saara, com sete mil quilómetros de comprimento, esticando-se do Senegal à Eritreia, passando pela Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Nigéria, Níger, Chade, Sudão, Etiópia e o Djibuti. Um fracasso retumbante, pois apenas 4% dos seus objetivos foram cumpridos, sendo que a data prevista para a Grande Muralha Verde estar completa é o ano de 2030. O problema não foi político, afirmam alguns especialistas, simplesmente não é a solução ideal para o problema em causa: aliás, estima-se que cerca de 80% das árvores entretanto plantadas acabaram por morrer.
Se todo a região do Saara fosse uma colossal central de energia solar, produziria a mesma eletricidade que 36 mil milhões de barris de petróleo, por dia
Não obstante, também existem ideias para transformar partes do deserto do Saara em áreas férteis e produtivas. Um desses projetos é o Sahara Forest Project, uma parceria entre os governos da Noruega e da Jordânia, tendo sido criado um oásis artificial na cidade de Aqaba, perto do Mar Vermelho, ao longo de uma área de 200 metros quadrados. A eletricidade é fornecida por painéis solares aí instalados (não são fotovoltaicos), os quais conseguem aquecer a água salgada, criar vapor e fazer operar a turbina de um gerador – transforma-se energia cinética em eletricidade. Os mesmos painéis, ao aquecer a água do mar e através de técnicas próprias para o efeito, conseguem dessalinizar a mesma e torná-la potável, nomeadamente para uso agrícola. O futuro passa pela expansão do projeto, de modo a abranger dois quilómetros quadrados de terreno.
Uma vez amadurecida a tecnologia, e existindo o potencial de aplicar este tipo de projetos em larga escala, no Saara, a ideia parece brilhante, pelo menos em teoria.
Mas centremo-nos no recurso vital que transformou a civilização humana desde a Revolução Industrial, no século XVIII: a produção em abundância de energia. Ou, para sermos mais concretos, energia cujo acesso, por qualquer indústria ou pessoa, é relativamente fácil e barato. Para que assim se mantenha – abundante e universalmente acessível – a grande aposta, em alternativa aos velhos combustíveis fósseis (que são recursos finitos), passa por fazer uma transição para as energias renováveis, e, dentro deste capítulo, a energia gerada por painéis fotovoltaicos é vital.
A criação de centrais de produção de energia solar, ou seja, enormes espaços impregnados de painéis fotovoltaicos até perder de vista, cada um deles capaz de transformar os fotões da luz do Sol em corrente elétrica – numa eficiência que ronda os 15% –, é uma das grandes apostas. Em 2020, as dez maiores, em termos de capacidade de produção, existiam na Índia, China, Emirados Árabes Unidos e Egito, mas a lista está em constante mutação, dado o forte dinamismo (investimento) que existe no setor.
O Parque Solar de Bhadla, na Índia, tem, de momento, a maior capacidade de produção de energia elétrica do mundo, cifrada nos 2,24 gigawatts. Está situado no estado do Rajastão e compreende 45 quilómetros quadrados de solo árido e arenoso, o equivalente a 6300 campos de futebol. Em África, o Parque Solar de Benban, no Egito, é o que se destaca, com uma capacidade de 1,65 gigawatts: a 40 quilómetros da mítica e milenar cidade de Assuão, já dentro dos domínios do Saara, estica-se por 37 quilómetros quadrados, ou seja, uma área igual a 5200 campos de futebol todos juntos.
Devido às altas temperaturas do Saara e por estar tão perto da linha de Equador da Terra, o que lhe permite receber bastantes horas de luz solar por dia, ininterruptamente, esta região do globo é vista como o sítio ideal para a instalação de megaestruturas que produzam energia solar, além de que espaço vazio e desabitado é o que mais existe.
Se fosse um país, o Saara seria o quinto maior do mundo, com cerca de nove milhões de quilómetros quadrados. Uma hipotética central solar que ocupasse todo este território seria capaz de produzir, em teoria, “o equivalente a 36 mil milhões de barris de petróleo por dia, à volta de cinco barris por cada pessoa”, sendo que, dentro deste cenário, o Saara poderia, “potencialmente”, produzir sete mil vezes mais eletricidade do que aquilo que a Europa necessita, explica ao The Conversation o engenheiro em sistemas inteligentes Amin Al-Habaibeh, da Universidade de Nottingham Trent, no Reino Unido. Além do mais, “tem a vantagem de estar muito perto da Europa”, adianta, pelo que seria relativamente fácil ter cabos submarinos a passar por debaixo do Mediterrâneo, transportando a energia produzida.
Números grandes, portanto. Se quisermos ser mais humildes e realistas, e a crer em Al-Habaibeh, bastaria uma pequena parte do Saara para criar tanta energia como a que atualmente produz o continente africano. "À medida que a tecnologia solar evolui, ela fica mais barata e eficiente. O Saara pode ser inóspito para a maior parte das plantas e animais, mas pode trazer energia sustentável até ao norte de África e mais além”.
Se 20% do Saara ficar coberto por painéis fotovoltaicos, a temperatura média do planeta sobe e o Ártico perde mais gelo, levando a água exposta a absorver mais energia solar
Em 2018, um grupo internacional de investigadores publicou na revista Science um artigo científico que causou sensação e deu que falar. O estudo refere que a instalação em massa de painéis fotovoltaicos e de turbinas eólicas por todo o Saara, além de conseguir gerar o quádruplo da energia que o mundo consome por ano, transformaria o clima da região, criando condições para que chovesse muito mais e levando a um aumento bastante considerável da vegetação.
“O nosso modelo mostra que centrais solares e eólicas em larga-escala no Saara mais do que duplicariam a precipitação, especialmente no Sahel, onde a magnitude do aumento da chuva seria, por ano, entre os 20 milímetros e os 500 milímetros”, referiu Yan Li, o principal autor da investigação, à BBC, aquando da apresentação destas conclusões. “Como resultado, a fração de cobertura vegetal aumentaria cerca de 20%”, adiantou. O aumento da vegetação, e num efeito catalisador, acabaria por gerar, de futuro, ainda mais chuva.
Como é que isto pode acontecer? Os painéis fotovoltaicos, como só conseguem absorver uma fração (cerca de 15%) da luz solar, acabam por refletir o calor que chegaria ao solo que está debaixo deles. O que faz a diferença, e a crer no modelo climático desenvolvido pelos cientistas, é que quando os painéis ocupam 20% do Saara surge uma enorme diferença entre a temperatura do chão e a que se regista a uma maior altura, gerando um efeito em que que o ar húmido junto ao solo se eleva na atmosfera e acaba por se condensar, sob a forma de gotas de água (chuva, portanto). Depois de as plantas crescerem, devido ao aumento da precipitação, dá-se outro fenómeno: a vegetação crescente absorve a luz e dá-se a evaporação de parte da água que retém, criando, por sua vez, um ambiente mais húmido que leva a um maior aumento da vegetação.
Quanto às turbinas eólicas, elas seriam responsáveis por empurrar o ar quente para baixo, só que este, obrigatoriamente – por estar numa área de baixa pressão, com uma temperatura mais baixa –, tem de subir, o que leva a que arrefeça durante a sua ascensão e se condense, levando a mais chuva.
Em suma, e conclui o estudo, os agricultores e os pastores da região, especialmente os do Sahel, veriam a sua produção crescer devido à precipitação e à vegetação, em vez de minguar, como sucede nos dias de hoje por causa do avanço do deserto. Uma segunda hipótese para centenas de milhões de pessoas.
O problema, segundo um outro grupo de investigadores, é que não foi tido em conta o facto de que os ecossistemas do globo estão interligados de forma bastante complexa, e o que sucede num sítio tem implicações noutro local, indicam num estudo publicado em dezembro de 2020, na revista científica Geophysical Research Letters, em jeito de resposta às conclusões apresentadas em 2018. Os benefícios naquela parte do continente africano podem não superar os prejuízos noutras partes do globo, avisam.
Este novo estudo não mete em causa a possibilidade de ocorrerem as mencionadas alterações climáticas no Saara e no Sahel, devido a megaprojetos de energias renováveis, até porque, como referem Zhengyao Lu e Benjamin Smith, dois dos autores da investigação, ao The Conversation, fenómenos semelhantes, mas devido a motivos naturais, ocorreram durante o Período Húmido Africano, tendo mantido o Saara verde até há cinco mil anos.
Mas, afinal, o que pode suceder de tão mau?
Para começar, se 20% do Saara ficar coberto com os painéis de centrais de energia solar, ocorrerá uma subida de 1,5 graus Celsius nas temperaturas locais, mas caso haja uma cobertura de 50% do deserto, então o aumento será de 2,5 graus Celsius, aponta o modelo usado no estudo de 2020.
“Eventualmente, este aquecimento vai espalhar-se à volta do globo, através de movimentos na atmosfera e nos oceanos, aumentando a temperatura média da Terra em 0,16 graus Celsius se a cobertura [do Saara] for de 20%, e em 0,39% graus Celsius para uma cobertura de 50%”, sumarizam os dois investigadores ao The Conversation. “A mudança global na temperatura não será, todavia, uniforme – as regiões polares aqueceriam mais que as tropicais, aumentando a perda de gelo no Ártico. Isto pode acelerar, ainda mais, o aquecimento [global], pois o gelo ao derreter-se expõe a água escura, a qual absorve muita mais energia solar.”
Mais chuva e vegetação no Sahel diminuem a poeira rica em nutrientes do Saara que chega às águas do Atlântico e à Amazónia, colocando em risco as plantas que criam oxigénio
Uma das principais vítimas desta “reorganização global do ar e da circulação de água dos oceanos”, como referem, será a Amazónia, cuja floresta tropical húmida ocupa 5,5 milhões de quilómetros quadrados de território na América do Sul, tornando-a num dos mais importantes ecossistemas do planeta. De acordo com as simulações feitas, a nova fonte de calor no Saara afetaria os padrões de precipitação em todo o mundo, nomeadamente a faixa ao longo dos trópicos na qual ocorrem chuvas fortes, “responsáveis por 30% da precipitação global e que suportam as florestas húmidas da Amazónia e da Bacia do Congo”: o que sucederia, a crer nos cálculos, é que essa faixa de chuvas fortes subiria para norte, afetando drasticamente as duas florestas.
“A mesma quantidade de chuva adicional que caísse sobre o Saara [...] perder-se-ia na Amazónia. O modelo também prediz uma maior frequência de ciclones tropicais a atingir o norte da América e as costas do leste asiático.”
Contudo, o novo estudo sobre os efeitos climáticos dos painéis fotovoltaicos deixou de fora um fenómeno natural importante. Estamos a falar da poeira do Saara, transportada pelo vento e que é uma importante fonte de nutrientes para a Amazónia e o oceano Atlântico. As plantas marinhas, devido à sua capacidade de fazer a fotossíntese, são responsáveis pela libertação de cerca de 70% do oxigénio que existe na atmosfera, enquanto as florestas tropicais contribuem com 28%, daí que necessitem de nutrientes para viver e crescer. Tal como preconizam Zhengyao Lu e Benjamin Smith, “um Saara mais verde pode ter um efeito global maior do que aquilo que as nossas simulações sugerem”.
Todos os anos, uma média de 182 milhões de toneladas de pó, vindos do Saara e transportados pelos ventos, fazem uma viagem de 2500 quilómetros pelo oceano Atlântico, salienta a NASA, com base em análises feitas pelos seus satélites. Um volume tão colossal que encheria os atrelados de 700 mil camiões de grande porte. Uma pequena parte da poeira cai no oceano, mas 132 milhões de toneladas de pó chegam até à costa leste da América do Sul, sendo que, deste número, 27,7 milhões de toneladas acabam por cair sobre a bacia da Amazónia. O resto da poeira do Saara, 43 milhões de toneladas, acaba por ir mais para norte e vai assentar no Mar das Caraíbas.
O que torna importante este pó é aquilo que ele traz consigo: muitos nutrientes, sob a forma de fósforo, importante para o crescimento das plantas. É na Depressão de Bodélè, no Chade, que se situa uma das maiores fontes de fósforo que o pó do Saara transporta. Com 500 quilómetros de comprimento e outros 150 de largura, a agora seca Depressão de Bodélè conteve, em tempos, o maior lago de África. Contudo, este local perdido no meio do Saara esconde um tesouro: no antigo leito do lago estão depositados minerais rochosos compostos de microorganismos mortos, mas repletos de fósforo. Ainda hoje se se podem encontrar alguns vestígios dos animais aquáticos que abundaram no lago, o qual secou por completo há mil anos.
Em resumo, a floresta da Amazónia depende bastante das 22 mil toneladas de fósforo que todos os anos aí chegam, ‘patrocinadas’ pelo antigo lago de Bodélè e pelo Saara.
Num estudo datado de 2015, investigadores da NASA descobriram que a quantidade de poeira transportada ao longo do Atlântico no ano de 2011 foi 86% inferior à que viajou pela atmosfera em 2007. O motivo? Os cientistas encontraram uma correlação envolvendo a chuva que cai no Sahel. Basicamente, quando o nível de precipitação aumenta, no ano seguinte o transporte de poeira é menor. E o que está por trás dessa correlação? À época, os investigadores da NASA colocaram em cima da mesa duas hipóteses. Uma das possibilidades é a de que o aumento da chuva leva ao surgimento de mais vegetação, pelo que há menos solo a ficar exposto à erosão pelo vento; a segunda, que parece mais plausível para os investigadores, diz que existe uma relação entre a quantidade de chuva e a circulação dos ventos, responsáveis por levar até à alta atmosfera terrestre o pó do Saara.