Na série de ficção científica The Expanse, baseada na saga literária com o mesmo nome, por volta de 2350 a civilização humana já colonizou a Lua, Marte e algumas luas dos planetas exteriores, mas também fixou-se nos corpos rochosos que existem na Cintura de Asteroides, situada entre as órbitas de Marte e Júpiter, uma região em forma de donut composta por quase dois milhões de asteroides com mais de um quilómetro e milhões de outros, mais pequenos. Ceres, o maior corpo celeste desta cintura e o único planeta-anão no interior do Sistema Solar, com 940 quilómetros de diâmetro, surge na obra como a principal colónia humana aí situada, albergando à volta de seis milhões de pessoas e com mais um milhão que por ali passam, em constante trânsito, a que se juntam centenas de naves espaciais que atracam por dia.
O motivo de tanta azáfama? Explorar de forma intensiva os recursos minerais que existem na Cintura de Asteroides, vitais para as duas superpotências do Sistema Solar: Terra e Marte. Eis a premissa para toda uma trama, escrita a quatro mãos por Daniel Abraham e Ty Franck (assinam com o pseudónimo de James S.A. Corey), que coloca diferentes facões do sistema solar numa complexa e sempre em evolução teia de conflitos, uma espécie de Guerra dos Tronos transportada para o espaço e que pisca o olho a um possível futuro da humanidade.
Não sabemos se Pekka Janhunen, físico, astrobiólogo e investigador pelo Instituto Finlandês de Meteorologia, alguma vez leu ou viu The Expanse, mas a sua proposta de construir um megasatélite artificial na órbita alta de Ceres, dotado de uma gravidade artificial igual à da Terra e possível de ser habitado por milhões de pessoas, os quais recolheriam deste planeta-anão os recursos necessários, entre eles o azoto – fulcral para sintetizar uma atmosfera respirável, semelhante à terrestre –, parece querer quebrar a barreira da ficção e provar, pelo menos teoricamente, que tal empreendimento é mesmo possível. O texto, em que detalha o plano de colonização da órbita de Ceres, ficou disponível este mês no arquivo de artigos científicos pré-publicados arXiv, mas ainda não foi publicado numa revista científica e submetido a uma revisão pelos pares (por outros investigadores).
Mais especificamente, esta estação espacial, conforme detalha o cientista finlandês, seria composta por vários tubos cilíndricos, cada um funcionando como um habitat espacial com dez quilómetros de comprimento e um diâmetro de dois quilómetros, os quais dariam uma volta completa em torno do seu eixo a cada 66 segundos, o suficiente para gerar uma força centrífuga capaz de emular a gravidade da Terra – uma espécie de tambor da máquina de lavar roupa, mas em ponto grande. O interior de cada um dos cilindros teria todas as comodidades para albergar 57 mil pessoas, incluindo uma atmosfera artificial.
O objetivo maior é juntar o maior número possível destes cilindros e criar uma vasta estrutura em forma de disco (o satélite artificial de Ceres), sendo que cada cilindro ficará suficientemente perto e afastado dos restantes, com a ajuda de poderosos magnetos. Uma das vantagens, portanto, é o de conseguir expandir a colónia sem olhar a fronteiras, bastando adicionar mais cilindros.
A ideia, terrivelmente ambiciosa, não é totalmente nova. Na década de 1970, Gerard O’Neill, físico da Universidade de Princeton, nos EUA, foi o primeiro a conceptualizar habitats cilíndricos gigantescos (ver a imagem inicial deste artigo), capazes de recriar a gravidade terrestre e albergar humanos e as suas atividades, como a agricultura. Este tipo de habitação espacial ficou conhecido como Cilindro de O’Neill.
Jardins, árvores e muito mais espaço para viver do que numa cidade de Portugal
Mais semelhanças com a ficção científica. Primeiro, um clássico da literatura do género. Em 1972, Arthur C. Clarke publicava Rendez-vous com Rama, a história de uma enigmática nave espacial em formato cilíndrico (com 50 quilómetros de comprimento e outros 20 de diâmetro, perfazendo uma rotação a cada quatro minutos), contendo todo um mundo de vida vegetal e animal no seu interior, que fazia a sua entrada no sistema solar: o autor criava, assim, o nosso primeiro contacto com um objeto feito por inteligência extraterrestre.
Em 2017, o realizador Luc Besson lançou o filme Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, uma adaptação da banda desenhada belga Valérien et Valentine (esta aventura em ‘quadradinhos’ surgiu pela primeira vez em 1967). A longa-metragem, situada no século XXVIII, diz-nos que a Estação Espacial Internacional, após a humanidade ter entrado em contacto com outras espécies extraterrestres, cresceu de tal forma que foi obrigada a mover-se para fora da órbita terrestre, em direção ao espaço profundo, ao ponto de, na época em que a história tem lugar, já ser uma enorme megalópole dinamizada por tecnologia de todos os cantos do Universo e habitada por milhões de espécies de outros planetas.
Voltando à saga The Expanse, temos a mais modesta Estação de Tycho, a maior plataforma de construção do Sistema Solar, uma estrutura em forma de anel que é capaz de se mover pelo espaço e onde vivem 15 mil trabalhadores: também ela gira em torno de si, para recriar uma gravidade igual à da Terra.
Voltemos à ideia de Pekka Janhunen. Segundo ele, a colónia com vista para Ceres permite que se viaje entre cada cilindro e pelos espaços dentro de cada um, pelo que a densidade populacional da colónia seria “razoavelmente baixa”, na ordem das 500 pessoas por quilómetro quadrado, explica. De acordo com os Censos de 2011, e a título de exemplo, a cidade da Amadora tem uma densidade populacional de 7.363 pessoas por quilómetro quadrado, seguido, em Portugal, por Lisboa (6.446 pessoas) e Porto (5.736 pessoas). Ou seja, estaríamos mais à vontade vivendo neste projeto espacial do que numa das nossas grandes urbes, pelo menos em teoria.
Os habitats, dotados com espaços recreacionais e áreas agrícolas, seriam iluminados por enormes espelhos planos e parabólicos (côncavos), capazes de concentrar a luz solar que recebem. Por sua vez, os jardins, campos agrícolas e árvores aí existentes, na fase inicial, estariam sobre um solo de metro e meio de espessura – constituído a partir de materiais transportados de Ceres – o qual aumentaria para os quatro metros assim que fosse possível gastar mais energia e aumentar a capacidade de manufatura na colónia, explica o finlandês. Em média, seriam precisas dez toneladas de massa do satélite para cada habitante, um número que engloba, principalmente, os escudos antirradiação que protegem os ocupantes e o solo, a partir do qual também se produzirão os alimentos.
Devido à proximidade de Ceres, seria possível aí descer e recolher a matéria-prima necessária para construir e fazer expandir a colónia, incluindo água, dióxido de carbono e o já referido azoto. No entanto, e para Pekka Janhunen, isso requer uma outra estrutura faraónica: um elevador espacial, com cerca de mil quilómetros de comprimento, que ligará o satélite ao planeta-anão, pois, a longo-prazo, isso levaria a que se gastasse menos energia no envio dos materiais necessários. “Como Ceres tem uma baixa gravidade [por ser 13 vezes menor que a Terra] e uma rotação relativamente rápida, o elevador espacial é praticável”, esclarece no artigo disponível no arXiv.
Apesar destes detalhes, o investigador não esclarece um pormenor importante. De onde virá o oxigénio que vai recriar a atmosfera terrestre, constituída por 78% de azoto e 21% de oxigénio (a que se juntam proporções muito mais diminutas de outros gases)?
Viver em Marte, um planeta com baixa gravidade, poderá causar sérios problemas de saúde
Uma das outras vantagens de Ceres, diz Pekka Janhunen, é que não está muito longe do nosso planeta, em comparação com Marte, por exemplo, sendo perfeitamente possível viajar até lá. A distância mínima entre a Terra e o planeta vermelho é de 54,6 milhões de quilómetros, a máxima é de 401 milhões de quilómetros, sendo a distância média entre os dois planetas de 225 milhões de quilómetros. Ceres, na realidade, está a uma distância mínima, máxima e média que supera as de Marte, embora a distância mínima a que está da Terra seja quase equiparável à distância média de Marte ao nosso planeta.
Marte surge, quase sempre, como um candidato óbvio para ser o ponto de início da expansão humana pelo sistema solar, ou, pelo menos, para testar uma primeira colónia humana fora da Terra. Aliás, o multimilionário Elon Musk, que também é fundador e dono da empresa aeroespacial Space X, tem uma visão megalómana para ocupar Marte e torná-la habitável, a qual passa pela terraformação, ou seja, por modificar a sua atmosfera, temperatura, topografia e ecologia, de modo a recriar um ecossistema parecido com o da Terra, capaz de suportar vida humana. Um dos problemas é que, mesmo que tal empreendimento seja passível de concretizar (a sê-lo, demoraria várias gerações até se conseguir alguma espécie de resultado), Marte deixou de ter um campo magnético ativo há milhares de milhões de anos, além de que os gases da sua atmosfera protetiva estão, gradualmente, a desaparecer. E, sem campo magnético, a atmosfera marciana vai-se perdendo para o espaço. A longo-prazo, ir viver para Marte pode não ser o melhor para a humanidade.
Para mais, e tal como destaca Pekka Janhunen, em declarações ao website Live Science, viver num satélite artificial, nomeadamente numa estrutura capaz de reproduzir, com relativa facilidade, a gravidade na Terra, é bem melhor para a nossa saúde do que viver na superfície marciana, onde a força da gravidade é 62% menor do que na Terra: uma pessoa que pese 100 quilogramas na Terra apenas pesará 38 quilogramas em Marte, apesar de ter a mesma massa.
“A minha preocupação é que crianças numa colónia de Marte não se tornarão em adultos saudáveis (a nível de músculos e ossos), devido à gravidade demasiada baixa” do planeta, afiança. “Por isso, procurei uma alternativa que providenciasse uma gravidade semelhante à da Terra e, igualmente, um mundo interconectado”, esclarece o astrobiólogo.
Acima de tudo, frisa Pekka Janhunen, “a superfície de Marte é menor do que a da Terra e, consequentemente, não pode providenciar espaço para uma população de tamanho significativo e para uma expansão económica”. Uma colónia na órbita de Ceres, todavia, “pode crescer de um habitat para milhões de habitats”, garante.
O que está a falhar neste plano de colonização?
Interrogado pela Live Science, Manasvi Lingam, astrobiólogo do Instituto de Tecnologia da Florida, nos EUA, o qual não esteve envolvido no artigo publicado no arXiv, considera a ideia do seu colega finlandês uma “alternativa plausível” à colonização da Lua ou Marte. Não obstante, ao analisar o plano de colonização orbital que Pekka Janhunen apresenta, aponta as falhas que mais lhe saltam à vista
Primeiro, há a questão de onde ir buscar as outras matérias-primas e recursos que são essenciais, além do azoto. Um elemento crítico, que não é mencionado no artigo, é o fósforo, avisa Lingam. O corpo humano precisa dele para criar o ADN, o ARN e o trifosfato de adenosina, sendo este último importante para o armazenamento de energia nas células. Aliás, todos os organismos vivos da Terra, incluindo as plantas, precisam de fósforo, pelo que não haverá agricultura alguma capaz de produzir alimentos sem este elemento.
Depois, há a questão tecnológica. O plano de Pekka Janhunen é possível de concretizar, mas, tecnologicamente, ainda não chegámos ao ponto de, por exemplo, conseguir ter um exército de robôs ou veículos autónomos a extrair matéria-prima da superfície ou das profundezas de Ceres, assim como uma rede de satélites que ajude todo o processo, encontrando os depósitos mais ricos. Os humanos, por si só, não são capazes de fazer um trabalho desta escala e com tamanho nível de perigo.
Por fim, surge a questão em torno do tempo que seria preciso para começar a ter os primeiros cilindros gigantes habitáveis. Pekka Janhunen acredita que bastam 22 anos, após começar a exploração de recursos em Ceres, para completar a construção dos primeiros habitats. Uma estimativa que parece excessivamente otimista, avisa o investigador da Florida. Para que tal alguma vez fosse possível, em tão pouco tempo, os colonos humanos precisariam de um fornecimento de energia que, todos os anos, teria de crescer colossalmente, em vez de gradualmente, isto desde o início e sem qualquer contratempo tecnológico ou logístico. Não é impossível, mas soa a irrealista, portanto. Para Manasvi Lingam, será preciso muito mais tempo, explorando os recursos de Ceres, até que se possa construir algo de sonante na sua órbita.
Ficção ou possível realidade? Talvez seja necessário esperar até 2350 para ver se os belters, o nome que é dado aos habitantes da Cintura de Asteroides, na saga The Expanse, são capazes de construir o seu próprio mundo em redor de Ceres.