Outubro de 1991 e tudo parecia correr bem. Apenas tinham passado doze dias desde que a Biosfera 2 fora hermeticamente selada e a sua atmosfera separada do mundo exterior, com oito voluntários no seu interior – quatro homens e quatro mulheres que aí iriam ficar durante dois anos completos. Foi então que Jane Poynter, uma das voluntárias, inadvertidamente mete a mão dentro de uma trituradora de grãos e fica sem a ponta de um dos dedos. Seria este o fim prematuro de uma experiência que custou uma fortuna aos seus promotores?
Seguiu-se um rápido debate por videoconferência, entre as oito pessoas que estavam dentro da Biosfera 2 e a equipa no exterior que supervisionava o projeto, sobre se deveria existir uma quebra de protocolo para que Jane recebesse os devidos cuidados de um cirurgião. Decidiu-se que seria feita uma exceção, mas nas sete horas em que Jane acabou por estar fora da Biosfera 2 ela foi proibida de comer o que fosse, para não comprometer os dados científicos que estavam a ser recolhidos sobre a colónia humana.
O escândalo rebentou quando se descobriu que, ao voltar para o ecossistema estanque que fora criado ao longo de 12 mil metros quadrados (o equivalente a quase dois campos de futebol cheios de flora e fauna), no que antes fora uma parcela semiárida do deserto do Arizona, nos EUA, Poynter levou consigo dois sacos desportivos. Lá dentro estavam componentes de computador sobressalentes, importantes para manter em funcionamento os equipamentos tecnológicos que monitorizavam e faziam funcionar um projeto que devia prescindir de qualquer ajuda exterior desde o primeiro dia.
Mas o projeto Biosfera 2 (sendo que a Terra representa a primeira e principal biosfera, daí o nome) era, ou não, uma experiência científica credível, questionaram os meios de comunicação social. Afinal, tratava-se de um projeto megalómano que custara, atualizado para valores de hoje, 400 milhões de dólares.
A ideia original, conforme foi comunicada ao público, consistia em isolar oito seres humanos dentro de um gigantesco laboratório hermeticamente fechado, dotado de várias estruturas em vidro e aço – em forma de cúpulas geodésicas e de pirâmides –, durante 24 meses, sendo que toda a atmosfera e comida capaz de garantir a sobrevivência dos seres humanos, animais e plantas que lá tinham sido colocados tinha de ser produzida localmente.
Basicamente, o que foi dito aos média é que jamais poderia existir qualquer tipo de interferência vinda do exterior – os ocupantes do Biosfera 2 estavam por sua conta e risco, exceto em caso de grande urgência. Um desafio nunca antes tentado.
Dentro das estruturas de aspeto futurista estavam 3800 espécies de plantas e animais, espalhados por réplicas de diferentes biomas do nosso planeta, incluindo uma floresta tropical húmida (que emulava a da Amazónia), um mangal, um oceano com um recife de coral, uma savana e um deserto onde a humidade surge sob a forma de uma película de névoa. Estes biomas seriam os responsáveis por reciclar e manter a atmosfera respirável. A isto juntavam-se campos agrícolas típicos de regiões moderadamente tropicais e quintas para animais, assim como um habitat para os humanos, dotado de quartos, escritórios e espaços recreacionais.
As águas residuais seriam purificadas através do solo, onde os micróbios removeriam os elementos contaminantes. O aquecimento e o arrefecimento eram garantidos por um sistema de tubos por onde circularia água quente ou fria, enquanto a eletricidade vinha de uma central de gás natural que existia fora da Biosfera 2.
Este laboratório, construído entre 1987 e 1991, simbolizava uma nave espacial a carregar os últimos vestígios de vida na Terra, após os seus ecossistemas terem sido destruídos pelas atividades humanas. Todavia, a ideia base era o de demonstrar que era possível, noutro planeta ou no próprio espaço, criar um sistema ecológico fechado capaz de suportar e manter vida humana – acreditava-se, com grande otimismo, que estava para breve o início da colonização humana do Sistema Solar.
O grande problema é que, ao longo dos dois anos, a quebra inesperada do nível de oxigénio e a falta de alimentos obrigou a mais ajuda (escondida) vinda do exterior, para que a experiência não chegasse prematuramente ao fim. Isto levou muitos elementos da comunidade científica a vociferar de que científico este projeto não tinha quase nada. Não passava de uma enorme fanfarra mediática, criticavam.
Mais. Face a todas as dificuldades que surgiram e com tantas surpresas inesperadas e desagradáveis, incluindo infestações de baratas, mais trabalho de sapa para aumentar a produção agrícola e pouco tempo para fazer aquilo que mais gostavam, os oito habitantes acabaram por se dividir em dois grupos de quatro, com cada fação a odiar e a sentir ressentimento em relação à outra.
Afinal, o que se pretendia com a Biosfera 2 e o que nos pode ensinar ela sobre o comportamento humano quando estamos fechados durante tanto tempo num espaço fechado onde nada corre bem, isolados do mundo muito maior que existe lá fora?
“Uma espécie de homem do Renascimento”, cheio de energia e carismático. Assim é definido John Allen, o grande impulsionador da Biosfera 2. Ninguém imaginava, na efervescente década de 60, que o grupo de teatro experimental que fundou teria sucesso nas 'aventuras', cada vez maiores, a que se atirava de cabeça.
O Teatro de Todas as Possibilidades. Assim se chamava o grupo performativo fundado em finais da década de 1960, na cidade norte-americana de São Francisco, por John Allen. O que queriam fazer os seus membros, inseridos no movimento de contracultura daquela época, para mudar o mundo? Experimentar tudo, fazer tudo, e, através do processo de tentativa e erro, criar algo novo. Para o conseguirem, misturaram a arte com a crescente consciência ecológica que estava a influenciar a jovem geração dos anos 60, recorrendo à tecnologia e a um «aprender fazendo» para dar respostas a desafios (projetos) em que se atiravam de cabeça. Mal imaginavam o que o futuro lhes reservava.
William Dempster, um dos primeiros membros, resumiu, para o documentário Spaceship Earth (2020), uma longa-metragem sobre a história do projeto Biosfera 2, o sentimento que perpassava pelo grupo: “O teatro envolve todo o organismo. Movimento, pensamento, emoção. Dá-nos perceções interiores sobre nós próprios, criando os alicerces a partir dos quais poderíamos continuar e fazer outros projetos”.
Desiludidos com o ambiente de contracultura de São Francisco – “corrompido pelo comercialismo”, diziam –, mudaram-se para o estado de Novo México e fundaram o Synergia Ranch, uma enorme quinta onde aprenderam a ser agricultores e carpinteiros (construíram, sozinhos, todas as casas e infraestruturas que tornaram o complexo autossuficiente e dotado de conforto), ao mesmo tempo que continuavam a fazer teatro experimental.
O nome do enorme rancho em que viviam vinha da palavra «sinergia», um conceito cunhado pelo arquiteto, designer, inventor e futurista Richard Buckminster Fuller, segundo o qual o todo é maior do que a soma de todas as partes. Aliás, uma das estruturas que foi erigida no rancho era uma cúpula geodésica, igual às que Buckminster Full popularizou – cada uma das barras da cúpula ajudava a formar triângulos que, uma vez todos unidos, permitem obter uma estrutura leve, extremamente estável e resistente.
O Synergia Ranch era uma verdadeira comuna que, ao contrário de outros projetos do género que surgiram na senda do movimento de contracultura da década de 1960, acabou por sobreviver e perdurar, pois o grupo tinha a visão pragmática de que para os seus projetos ganharem forma eram necessárias fontes de rendimentos que garantissem a sua criação e subsistência. Basicamente, funcionavam como uma empresa, mas com a diferença de que não buscavam a maximização de lucros, apenas a autossustentabilidade daquilo que criavam.
O epicentro que fazia tudo girar era John Allen, o líder do grupo. Mais velho do que os restantes membros – estava na casa dos 40 quando fundou a companhia de teatro performativo –, ele era o que o jornal britânico The Guardian definiu como “uma espécie de homem do Renascimento”: tinha uma licenciatura pela Universidade de Harvard, foi engenheiro metalúrgico e líder sindicalista, assim como poeta do movimento literário Beat e um viajante que estudou várias culturas indígenas do mundo. “Uma bola de energia” e um homem cheio de carisma, como era caracterizado por aqueles que lhe eram mais próximos, sempre disposto a saltar de uma ideia mais pequena (uma vez concretizada) para outra ainda maior e ambiciosa.
Foi dentro desta lógica, e para também garantir o dinheiro que financiaria ideias mais ambiciosas e ousadas, que alguns dos membros deste grupo – o qual, é preciso relembrar, começou como uma companhia de teatro experimental – fundaram em 1973 o Instituto de Ecoténica (John Allen era o diretor), com o intuito de aplicar a ideia de «sinergia» em projetos que eram, em simultâneo, tecnológicos e ecológicos.
No ano seguinte, em jeito de teste de fogo, decidiram aprender do zero a construir um navio de médio porte que fosse capaz de cruzar os oceanos. Um típico exemplo do experimentalismo aventureiro em que se estavam a lançar. A responsável por supervisionar a construção do navio Heraclitus (batizado em homenagem ao filósofo grego Heráclito) só tinha 19 anos e nunca fizera algo do género, mas, no fim, não só a embarcação conseguiu manter-se à tona quando deslizou das rampas do estaleiro para a água (ninguém fazia a mínima ideia do que iria acontecer), como conseguiu levar toda a trupe até aos mais distantes lugares e ecossistemas do mundo, nos anos seguintes. Nas primeiras semanas, em pleno alto mar e face a ondas de dez metros, o caso ainda pareceu complicado, quando alguns equipamentos do barco foram parar ao fundo do mar devido à forte ondulação e ao impacto das muralhas de água. Mas, no fim, o recurso ao processo de tentativa e erro acabou por resultar e os problemas que iam surgindo foram solucionados.
A ideia e a confiança de que nada era impossível de concretizar ficou, portanto, bastante enraizada entre todos os que participaram na construção do navio, algo que, para quem assistia de fora, parecia uma quimera. Nos anos seguintes, abriram uma galeria de arte em Londres, compraram um outro rancho na Austrália, passaram a gerir uma floresta tropical em Porto Rico e, inclusive, chegaram a construir, em 1981, um hotel na cidade de Katmandu. Este último é um edifício que reúne as tradições arquitetónicas do Nepal com técnicas modernas de resistência sísmica, o que talvez explique por que, após o forte tremor de terra que afetou o Vale de Katmandu em 2015, o hotel se manteve de pé e em bom estado de conservação, ao contrário da maioria dos edifícios que o rodeavam. Neste momento, qualquer pessoa ainda pode alugar aí um quarto, através da Internet.
O projeto foi financiado por um milionário, cuja fortuna veio da indústria petrolífera, que acreditava que as colónias humanas fora da Terra não tardariam. Todas as técnicas e tecnologias pioneiras que fossem desenvolvidas graças à Biosfera 2 seriam patenteadas e comercializadas. O lucro viria deste negócio.
Misturar tecnologia com ecologia parecia, portanto, ser uma fórmula de sucesso, com várias ideias a verem a luz do dia porque o grupo de John Allen contava com o apoio do jovem milionário Ed Bass, um dos quatro herdeiros de uma família do Texas que fizera fortuna com a exploração de petróleo.
Ed Bass era um filantropo e ambientalista que perfilhava das mesmas ideias de fundir tecnologia e ecologia, mas não deixou de ter olho para o negócio. Financiou o grupo de Synergia Ranch, com o qual chegou a conviver durante algum tempo, e apostou neles para a construção de projetos ecologicamente sustentáveis em várias partes do globo – como foi o caso do hotel em Katmandu, o rancho na Austrália e a floresta tropical em Porto Rico –, pois acreditava que, a longo-prazo, eles seriam bastante lucrativos. Era uma aposta no turismo ecológico.
Mais tarde, o milionário texano criou a Space Biospheres Ventures, em parceria com o grupo de experimentalistas de John Allen (nomeou-o diretor da nova empresa), e, em 1984, anunciou que iria construir uma enorme estrutura totalmente hermética, em aço e vidro, com uma carapaça desenhada e arquitetada com base nos princípios de sinergia de Buckminster Fuller. Dentro do habitat, cujas vidraças deixariam a luz solar entrar de forma abundante, cresceriam ecossistemas naturais capazes de fornecer ar, água e comida a um grupo de humanos que aí vivesse, em jeito de colónia. Foi assim que a Biosfera 2 nasceu.
A primeira missão humana neste ‘laboratório’ gigante (o seu ponto mais alto chegava aos 27,7 metros) teve início a 26 de setembro de 1991, rodeado de um enorme mediatismo e com toda a pompa e circunstância, com a entrada das oito pessoas a ser transmitida em direto por vários canais de televisão. A própria organização fez questão de sublinhar que esta era uma das maiores experiências científicas de sempre, o que, desde logo, serviu de isco para tudo o que era comunicação social, à época.
Os selecionados faziam parte do grupo de «experimentalistas» de John Allen, embora boa parte deles só tivesse entrado neste círculo quando o projeto Biosfera 2 foi colocado em marcha. A sua escolha foi determinada com base nas áreas em que eram especialistas e que fariam mais sentido para a missão, pelo que o grupo era composto por um médico que também era investigador – Roy Walford, cujas pesquisas procuravam uma dieta, baixa em calorias e rica em nutrientes, capaz de aumentar a esperança média de vida das pessoas –, biólogos, engenheiros e até especialistas na análise de dados informáticos. Não obstante, a esmagadora maioria não tinha um currículo científico que fosse impressionante, o que, desde logo, levantou alguns sobrolhos junto da comunidade científica.
Nada de equívocos: a Biosfera 2 não era uma missão nascida da filantropia de um milionário. Ed Bass, sempre um homem de negócios, acreditava que a exploração do espaço e o surgimento de colónias humanas fora da Terra seriam uma realidade não muito distante no tempo, pelo que estava a adiantar-se à concorrência. Todas as técnicas e tecnologias que fossem desenvolvidas graças à Biosfera 2, aplicáveis a futuras colónias espaciais, seriam patenteadas e comercializadas: como, por exemplo, purificadores de água ou sistemas de gestão de dados. Os primeiros colonos, para sobreviver na Lua ou em Marte, teriam de pagar à empresa de Ed Bass para levar consigo as invenções pioneiras que fossem testadas com sucesso na Biosfera 2.
Além disso, esperava-se que a extravagante experiência humana que estava a ter lugar no deserto do Arizona fosse capaz de atrair um número suficientemente elevado de turistas, os quais pagariam para ver as espampanantes estruturas e, através dos seus vidros, observar os oito seres humanos que lá estavam confinados, enquanto trabalhavam ou se divertiam. Um jardim zoológico em que os protagonistas, para variar, seriam os humanos.
Com o oxigénio a diminuir e as colheitas agrícolas a falharem, formaram-se dois grupos com visões muito diferentes sobre o que devia ser feito dentro daquele ambiente hermético. Uma forte inimizade, a roçar o visceral, gerou-se entre as duas fações.
O que correu mal? O acidente com Jane Poynter, a sua breve ida ao hospital e a reentrada com duas malas de peças sobressalentes (desvirtuando o objetivo inicial), quando mal tinham passado duas semanas, não eram um bom prenúncio para o que aí vinha.
No início da missão, a atmosfera interior tinha 20,9% de oxigénio, ou seja, era igual à que existe na Biosfera 1 – a Terra. Só que, ao fim de alguns meses, esta percentagem baixou de repente e, desde então, a tendência foi sempre para decrescer, sendo que ninguém conseguia descortinar o motivo. Em sentido contrário, o nível de dióxido de carbono aumentava cada vez mais. Plantas e colheitas começaram a definhar, o que por sua vez reduziu a atividade de fotossíntese, a libertação de oxigénio e a produção de comida. Muitos animais morreram, a dieta dos habitantes da Biosfera 2 tornou-se parca e pouco diversa, sendo que a falta de oxigénio começava a afetá-los fisicamente e psicologicamente. Como conseguiriam os oito residentes sobreviver a este cenário, dentro de um sistema que parecia emular as alterações climáticas que afetavam e destruíam os ecossistemas da própria Terra?
Segundo Jane Poynter, que anos mais tarde contou a sua versão dos acontecimentos, as discussões e tensões entre os membros da equipa começaram a entrar numa espiral cada vez mais negativa, com ódio e ressentimento a vir ao de cima: uma situação confirmada em 2020 por outros elementos, no documentário Spaceship Earth.
Resumidamente, a tentativa de repor o oxigénio para um nível aceitável e seguro obrigava, segundo o ponto de vista de uma das fações que acabou por se formar, a que todas as oito pessoas tivessem de se dedicar quase exclusivamente à manutenção da flora e fauna existente, assim como à produção agrícola. A questão é que existia uma outra fação que acreditava que o projeto Biosfera 2 era uma missão destinada a fazer investigação científica, e que sem ela todo o projeto não fazia sentido e nenhum dos problemas que tinham surgido se resolveria. Os dois grupos, cada um composto por quatro pessoas, tinha, portanto, visões muito diferentes sobre como gastar o seu tempo dentro daquele ambiente hermético. Uma forte inimizade, a roçar o visceral, gerou-se entre as duas fações.
Para piorar tudo, a dieta imposta por Roy Walford não parecia ser do agrado dos quase famintos habitantes da Biosfera 2: perderam imenso peso e as únicas 'guloseimas' que podiam produzir e ingerir eram bananas.
A título de curiosidade, algo que nunca faltou dentro deste ecossistema fechado foram baratas, as quais se reproduziram quase sem parar. Lutar contra as enormes infestações protagonizadas por estes insetos tornou-se noutra batalha que drenava energia física e mental.
Foi preciso injetar, urgentemente, oxigénio a partir do exterior, o que comprometeu o rigor científico da experiência. Todavia, mal o gás entrou na Biosfera 2 uma sensação de energia e euforia tomou conta de todos os que lá estavam: os risos voltaram e a sensação de inimizade esmoreceu.
Apesar de todos os esforços para que o ecossistema produzisse mais oxigénio, a verdade é que ao fim de 17 meses a sua percentagem desceu até uns perigosos 14,2%, ao ponto de se tornar difícil subir escadas ou completar uma frase inteira sem alguém parar a meio, para que uma golfada de ar entrasse para os pulmões. Todos se sentiam inundados por uma sensação de torpor, estavam desmoralizados e os ódios e ressentimentos entre os indivíduos acentuavam-se.
Foi então que se tomou a decisão, incluindo por parte da organização, de injetar oxigénio para o interior da Biosfera 2, e mais do que uma vez. Uma interferência de monta vinda do exterior, portanto, o que levou vários cientistas que faziam parte do projeto a demitir-se, alegando que o rigor científico da experiência, assim como todo o trabalho de recolha de dados, estavam irremediavelmente comprometidos: nenhuma conclusão científica podia ser retirada a partir deles, defendiam.
Seja como for, a entrada de oxigénio na Biosfera 2 teve, para quem lá estava, um impacto extraordinário. Após alguns minutos a respirar a nova atmosfera, com o oxigénio a entrar no organismo, uma sensação de energia e euforia tomou conta dos quatro homens e das quatro mulheres. Pela primeira vez em longos meses, celebraram e riram em uníssono, os sentimentos negativos e de inimizade que durante tanto tempo os marcou parecia ter milagrosamente desaparecido, além de que voltaram a conseguir correr e a praticar atividade lúdicas com uma sensação de rejuvenescimento. Parecia uma nova vida.
O que pode ter falhado para que o nível de oxigénio tivesse baixado tanto, ao ponto de parecer que os oito humanos viviam no topo de uma enorme montanha, a mais de quatro quilómetros de altura, onde o ar que se respira é mais rarefeito? Atualmente, especula-se que nos anos de 1991 e 1992 os fenómenos climáticos associados aos El Niño tenham gerado, no sul do Arizona, mais nuvens do que o normal, o que fez diminuir a atividade de fotossíntese das plantas que estavam dentro da Biosfera 2 – o que contribuiu para a redução do oxigénio e levou a uma menor produção de alimentos agrícolas.
Outra possível causa poderá estar nos microrganismos que prosperaram no solo, acabando por absorver oxigénio e libertar dióxido de carbono.
Descobriu-se que antes dos humanos entrarem no ecossistema fechado foi lá colocado, e escondido, um depósito com comida, para fazer face a uma situação de emergência.
Os média desconheciam por completo o calvário pelo qual estavam a passar os voluntários, pois tudo foi omitido pela organização, pelo que quando descobriram que foi bombeado oxigénio para dentro de um ambiente que devia ser estanque, tudo se transfigurou: a narrativa de que esta era uma grande e rigorosa experiência científica implodiu por completo. O caso de Jane Poynter, ocorrido nos primeiros dias, já não era visto como um incidente isolado. Vários cientistas proeminentes saíram a terreiro e atacaram o projeto Biosfera 2, chegando a apelidá-lo de pseudociência.
A isto juntaram-se as denúncias feitas por outros cientistas que, gradualmente, abandonaram a missão. Por exemplo, antes dos humanos entrarem na Biosfera 2 foi lá colocado, e escondido, um depósito com comida, para fazer face a uma situação de emergência: como quando as colheitas começaram a falhar, levando à escassez de alimentos. Além do mais, foi utilizado dentro do ambiente fechado, e sem que os média e o público soubessem, um absorvedor de dióxido de carbono, sendo que o uso deste aparelho tecnológico permitia gerir artificialmente, embora de forma bastante limitada, a atmosfera interior, o que chocava contra a intenção de a gerir de modo totalmente natural.
E a lista de descobertas inesperada não se ficou por aqui. Ao que parece, e segundo quem trabalhou para a missão, duas vezes por mês alguém do exterior atravessava uma das várias portas herméticas e deixava no interior sementes, vitaminas, armadilhas para caçar ratos e outros mantimentos essenciais.
Existia uma crónica falta de transparência sobre o que era decidido e feito por quem dirigia a missão. Gerou-se um clima mediático de desconfiança que deu azo ao rumor de que John Allen liderava, afinal, uma seita com objetivos obscuros.
Para John Allen, o diretor do projeto, todo o frenesim mediático e as críticas que choveram por parte da comunidade científica não se justificavam. Do seu ponto de vista, a Biosfera 2 era uma experiência feita a nível humano e ecológico – embora bastante onerosa – destinada a explorar “todas as possibilidades”, tal como tinham sido todos os projetos anteriores em que ele e o seu grupo estiveram envolvidos.
A questão é que se vendeu uma ideia aos média e ao público que não correspondia à realidade, uma bola de neve de expectativas que cresceu desmesuradamente, sem que John Allen, Ed Bass e outros membros da organização mostrassem intenções de colocar um travão nesta euforia mediática.
Para quem conceptualizou a Biosfera 2, ela era uma experiência científica, mas assente no método de «aprender fazendo» e no processo de tentativa e erro, tão caros a John Allen e a quem o acompanhava. Daí que esta experiência fosse mal vista por uma comunidade de cientistas habituada a usar o «método científico» – um conjunto de regras e procedimentos básicos que se universalizou e se tornou na forma de atuar de qualquer cientista credível, sendo através deste método que as sociedades modernas produzem ciência. A preferência de John Allen por atalhos e algum improviso, para manter viva a missão no interior da Biosfera 2, não caiu no goto de quem defende que toda a investigação científica tem de ser rigorosa e os seus processos transparentes, pois só assim se obtém resultados fidedignos e passíveis de serem replicados por outros.
O facto de muito do que era feito e decidido em relação à Biosfera 2 estar no segredo dos deuses (a falta de transparência era crónica), para depois acabar descoberto e exposto pelos média, só alimentou o sentimento de desconfiança que passou a vir do mundo exterior, admite para o documentário Spaceship Earth quem integrou a primeira missão.
Esse sentimento de desconfiança atingiu o zénite quando os membros do Teatro Experimental de Todas as Possibilidades, do Instituto de Ecoténica e da missão Biosfera 2 foram categorizados como elementos de uma enorme seita, da qual John Allen era o grande líder. Os seus verdadeiros objetivos, chegaram a especular alguns média, eram outros e estavam a ser mantidos na obscuridade. Hoje em dia, e observando tudo o que sucedeu com a devida distância, percebe-se que o facto de operaram à margem do convencional e de trabalharem dentro do espírito de uma comuna alimentou essa visão incorreta.
Steve Bannon, à época um banqueiro de Wall Streer, e a mesma pessoa que, anos mais tarde, se tornaria num dos principais ideólogos da extrema-direita radical dos EUA, estratega de Donald Trump na Casa Branca e um acérrimo negacionista das alterações climáticas, foi escolhido em 1994 para tornar lucrativo o projeto. Despediu quase todos, incluindo John Allen.
Apesar de todo o rebuliço, os oito humanos cumpriram até ao fim os dois anos de isolamento – excetuando as sete horas de Jane Poynter no exterior, para ir ao hospital. A 26 de setembro de 1993 as portas abriram-se definitivamente e o ar puro da Biosfera 1 inundou o interior da Biosfera 2.
Em março de 1994, e obstinados a aprender com os erros da primeira missão, teve início uma segunda dentro da Biosfera 2, desta vez com sete elementos: o espaço interior foi atualizado com novas tecnologias, além de que se introduziram outras espécies animais, tanto nos biomas como nas áreas agrícolas.
Tudo em vão. Apenas um mês depois, Ed Bass, desgastado pela publicidade negativa que se formou e temendo pelo insucesso comercial do projeto, rompeu relações com o diretor John Allen e a equipa que o rodeava: foram todos prontamente despedidos. Em setembro, a missão dos sete inquilinos da Biosfera 2 chegava abruptamente ao fim, com a chegada de um novo diretor executivo para liderar o projeto.
O novo «homem-forte» era um banqueiro de Wall Street, um conhecido especialista em maximizar os ativos financeiros de indivíduos e empresas. O seu nome? Steve Bannon, a mesma pessoa que, anos mais tarde, se tornaria num dos principais ideólogos da extrema-direita radical dos EUA, estratega de Donald Trump na Casa Branca e um acérrimo negacionista das alterações climáticas.
Mal tomou as rédeas do projeto Biosfera 2, Bannon procurou a melhor forma de o rentabilizar, tendo defendido publicamente a sua importância face aos problemas ecológicos e ambientais que afetavam o planeta Terra. Aliás, as palavras em que avisa para as consequências das alterações climáticas, provocadas pelas atividades humanas, foram gravadas por câmaras de televisão, tal como mostra o documentário Spaceship Earth.
“Se o Steve Bannon [atualmente] nega as alterações climáticas não é por lhe faltar inteligência para ver que elas existem. Está a fazê-lo por outras razões. É [uma situação] particularmente excruciante, porque sei o quão inteligente ele é”, diz para o mesmo documentário Kathelin Gray, cofundadora do Teatro de Todas as Possibilidades e membro da direção da Biosfera 2 aquando de todos estes acontecimentos.
Qual acabou por ser o destino deste faustoso ecossistema fechado, com a sua floresta tropical húmida, o seu próprio oceano, desertos e campos agrícolas, erguido em pleno Arizona e que captou a atenção e o imaginário de milhões de pessoas na década de 1990? O melhor que Steve Bannon conseguiu, para que Ed Bass não perdesse muito dinheiro, foi arrendar tudo à Universidade de Columbia, instituição que geriu o complexo até 2003. A Biosfera 2 foi convertida num centro de investigação, mas nunca mais se fizeram no seu interior as mesmas experiências com humanos que instigaram a sua construção. Em 2007 foi finalmente vendida a uma empresa de investimento imobiliário, a qual a arrendou à Universidade do Arizona: no fim, acabou por ser doada a esta instituição de ensino superior.
Estranhamente, a montanha de dados que foram obtidos entre 1991 e 1994, das duas missões que envolveram os humanos em confinamento, desapareceu sem deixar rasto. Presume-se que tenham sido destruídos, mas não se sabe quando é que isso ocorreu nem o porquê.
De momento, a Biosfera 2 nada mais é do que um museu, com portas abertas para quem queira visitar as réplicas dos biomas terrestres que ainda lá existem. Um testemunho do quão grandes eram as ambições e as expectativas que sobre aquele lugar recaíram, ao longo das décadas de 1980 e 1990. Nunca mais se viu algo semelhante, nem sequer por parte da comunidade científica, a mesma que tanto criticou (por falta de rigor e transparência científica) o que ali estava a ser experimentado.