O magneto mais poderoso do mundo está a ser construído nos Estados Unidos e, uma vez completo, será o componente central do Reator Termonuclear Experimental Internacional (conhecido pelo acrónimo ITER) que está a ser instalado em França, uma máquina capaz de replicar o poder de fusão nuclear do Sol. O ITER servirá de protótipo a outros reatores do género, os quais produzirão energia elétrica, a uma escala industrial, a partir do elemento mais abundante no Universo, o hidrogénio. Tudo isto sem produzir gases com efeito de estufa ou lixo radioativo, um dos grandes problemas das centrais de fissão nuclear.
O Solenoide Central, ou seja, o magneto que funcionará como uma espécie de coração do ITER, está dividido em sete módulos e, quando estiver montado, terá 18 metros de altura e 4,25 metros de largura, com um peso de mil toneladas. Só para esclarecer: um solenoide é um tipo de magneto cujos fios metálicos (condutores de eletricidade) estão enrolados em forma de hélice em volta de um cilindro (uma bobina).
Contudo, o que torna este solenoide numa peça fulcral de todo o reator é que, quando estiver cem por cento funcional, vai produzir um campo magnético com uma força de 13 Tesla. Dito de outra forma, esta força será 280 mil vezes superior à do campo magnético da Terra, o suficiente para elevar no ar, até dois metros de altura, um porta-aviões da marinha de guerra dos EUA, explica através de comunicado de imprensa o consórcio do ITER e a General Atomics, a empresa norte-americana que está a construir o engenho.
Outro pormenor importante. As estruturas que vão suportar o Solenoide Central terão de estar preparadas para sustentar uma força que é duas vezes superior à gerada pelo impulso dos foguetes propulsores que descolavam da Terra com o vaivém espacial da NASA, sendo que todo este aparato pesava cerca de duas mil toneladas – a utilização destes veículos foi descontinuada em 2011.
O primeiro módulo do magneto, que demorou cerca de dez anos a ser desenhado e construído, já está a caminho da cidade texana de Houston, numa operação de transporte muito delicada, refere a General Atomics, pois pesa mais de cem toneladas e não pode sofrer qualquer impacto que a danifique. Estima-se que no final do mês de julho seja enviada, de barco e através do Oceano Atlântico, até à região francesa de Bouches-du-Rhône, situada junto ao Mar Mediterrâneo e onde está localizada o Centro de Estudos Nucleares de Cadarache: é aí que está a ser instalado o ITER e edificadas todas as suas infraestruturas de apoio.
Os restantes módulos deverão seguir caminho ao longo dos próximos anos, até porque está delineado que o ITER comece as primeiras experiências com plasma em 2025, prevendo-se que em 2035 esteja a operar em pleno. Financiado e gerido pela União Europeia, EUA, China, Coreia do Sul, Índia, Japão e Rússia, os custos de construção do complexo, que começou em 2013, resvalaram bastante desde então. Segundo Bernard Bigot, atual diretor-geral do ITER, serão gastos 18 mil milhões de euros até 2025, mas o número é disputado pelos EUA, que aponta para uma cifra final de quase 55 mil milhões de euros.
O poderoso magneto é a pedra basilar que vai permitir ao reator do ITER atingir temperaturas acima de 150 milhões de graus Celsius, replicando a fusão de átomos que ocorre no núcleo do Sol e a consequente libertação de energia
De momento, e ao contrário dos reatores de fissão nuclear, é muito difícil fazer da fusão nuclear uma fonte de energia eficiente. A fissão nuclear, através do qual o núcleo de um átomo pesado é dividido em núcleos de átomos mais leves, é bem mais fácil de concretizar, num processo (assim o ditam as leis da física) que é acompanhado pela emissão de uma enorme quantidade de energia. Bem mais complicado é a fusão de átomos, pelo menos na Terra e de forma artificial, pois, por norma, a energia que é libertada neste processo é menor, ou, então, não muito superior à que foi necessária para induzir a fusão.
Assim sendo, por que teimar na fusão nuclear para produzir energia? Porque podemos ver no céu, e sentir na pele, um exemplo perfeito do seu vasto potencial: o Sol e o calor (a radiação) que este consegue emitir. Os reatores de fusão nuclear tentam replicar as reações que ocorrem no interior de estrelas como a que está no centro do nosso sistema solar, onde uma descomunal pressão gravitacional leva a que pares de átomos de hidrogénio se unam para formar átomos de hélio, libertando vastas quantidades de energia no processo. O Sol, e para que fique esclarecido, é uma bola de gás incandescente formada por 73,4% de hidrogénio e 24,8% de hélio – ou seja, ainda tem combustível suficiente para manter ‘viva’ a sua ‘fornalha’ ao longo dos próximos cinco mil milhões de anos.
Todavia, dentro de um reator de fusão não é possível emular a pressão gravitacional das estrelas, daí que, para desencadear as mesmas reações, sejam necessárias temperaturas que excedam os... 150 milhões de graus Celsius. O problema é que estamos a falar de temperaturas que são capazes de derreter qualquer material que exista na Terra, daí que sejam necessários poderosos magnetos, como os que vão ser usados pelo ITER, para criar um campo magnético que vai conter o processo de fusão dentro de uma câmara em forma de anel. Isto afastará o quente plasma, que, entretanto, acaba por surgir, das suas paredes metálicas. Simultaneamente, os magnetos terão a importante função de ajustar a forma (o especto) que o plasma assume.
O objetivo do Solenoide Central, que fica mesmo no centro da máquina, é o de gerar e manter o fluxo de plasma que vai circular dentro da câmara. Dito assim, até parece simples, só que não é – e vamos explicar melhor, mais à frente.
No caso do ITER, será depois bombeada água para as paredes da câmara, formando-se vapor que vai depois fazer girar turbinas. De momento, e porque se trata de um protótipo experimental, não será gerada eletricidade alguma a partir do movimento das turbinas. Tal ficará a cargo dos futuros reatores comerciais, baseados no aperfeiçoamento da tecnologia do ITER.
O ITER vai gerar 500 megawatts de energia a partir de 50 megawatts. Algo nunca antes visto num reator de fusão nuclear
Este tipo de reatores experimentais, cuja estrutura se assemelha ao sólido geométrico a que damos o nome de toróide (igual a um donut, portanto) e que recorrem a campos magnéticos, foram batizados com o nome de tokamak, uma tecnologia que foi inicialmente conceptualizada por cientistas da União Soviética, na década de 1950.
Desde então, fizeram-se grandes avanços teóricos e experimentais nestes dispositivos, construindo-se centenas deles, mas nenhum com resultados finais satisfatórios, pois a energia gerada continua a não compensar a que é inserida para produzir a fusão: o que as torna comercialmente inviáveis. O reator experimental do ITER tem dado muito que falar porque promete solucionar o problema e criar uma revolução energética. Assim se explica que tantos países estejam dispostos a gastar entre 18 mil milhões a 54 mil milhões de euros neste projeto.
“O ITER será o primeiro dispositivo [tokamak] de fusão a produzir um ganho energético através do plasma, o que significa que a reação da fusão irá gerar mais energia térmica do que a energia necessária para aquecer o plasma”, refere a General Atomics. “Também será o primeiro dispositivo de fusão a manter o processo de fusão [nuclear] por longos períodos de tempo”. Se tudo correr tal como está planeado, o ITER irá gerar 500 megawatts de energia a partir de 50 megawatts inseridos no sistema, uma produção que é “trinta vezes superior ao recorde atual, alcançado pelo tokamak JET [Joint European Torus] no Reino Unido”, construído na década de 1980.
“Embora o ITER não vá gerar eletricidade, será um teste crítico para as tecnologias integradas, os materiais e regimes físicos necessários para a produção comercial de eletricidade baseada na fusão. As lições aprendidas no ITER serão usadas para projetar a primeira geração de reatores de fusão comerciais.”
Cada metro cúbico de água do mar tem 33 gramas de deutério, um isótopo do hidrogénio, abundante e quase inesgotável, que é um dos principais combustíveis da fusão nuclear
Para continuar com mais pormenores, temos de ir por partes. Primeiro, há que salientar que o combustível que vai ser usado para a fusão nuclear tem como base dois isótopos do hidrogénio, o deutério e o trítio. Basicamente, estes dois elementos são duas variantes do átomo de hidrogénio, dotados de uma mesma carga elétrica, mas com diferentes massas. O hidrogénio tem no seu núcleo um protão (com carga positiva) e, em seu redor, um eletrão (carga negativa); o deutério só é diferente por ter um neutrão (que tem uma carga neutra) a acompanhar o protão no núcleo; enquanto o trítio tem dois neutrões.
O deutério pode ser destilado a partir de todo o tipo de água que existe na Terra e no resto do Universo, sendo abundante e quase inesgotável. Por exemplo, cada metro cúbico de água do mar tem 33 gramas de deutério. O caso do trítio é mais complexo, pois trata-se de um átomo mais raro e, quando surge na Natureza, tem um tempo de vida relativamente curto, decaindo até se transformar noutro elemento. Por norma, este último é gerado artificialmente.
Na câmara de vácuo (em forma de donut) do ITER será injetada uma pequena quantidade de gás de deutério e trítio, a qual é depois aquecida até se tornar num plasma ionizado que se parece com uma nuvem. O plasma é um dos estados físicos da matéria, semelhante ao gás, mas com a cambiante de que os seus átomos, quando submetidos a altas temperaturas, são despidos dos seus eletrões. Estes mesmo eletrões ganham uma carga positiva e passam a flutuar de forma livre. A todo este processo dá-se o nome de ionização.
Tal como foi antes explicado, os enormes magnetos do tokamak confinam e modelam o plasma que é criado. Quando este atinge os 150 milhões de graus Celsius – uma temperatura dez vezes mais quente que a do núcleo do Sol – ocorrem as reações de fusão, um processo em que é criado hélio, um átomo (com dois protões, dois neutrões e dois eletrões) mais pesado que o hidrogénio e os seus isótopos. Todavia, neste processo de fusão uma pequena parte da massa fica de fora e é, naturalmente, convertida numa enorme quantidade de energia.
Entretanto, neutrões extremamente energéticos, produzidos pela fusão, conseguem escapar à ‘prisão’ gerada pelo campo magnético e atingem as paredes da câmara do ITER, aquecendo-as. Contudo, alguns destes neutrões interagem com o lítio que foi colocado nestas paredes de metal, o que, por sua vez, leva à criação de mais trítio (combustível) que vai alimentar e manter o processo de fusão.
Uma jaula invisível de campos magnéticos, gerados por materiais supercondutores de eletricidade, prende e molda o quentíssimo plasma que está dentro da câmara de vácuo
Para criar os campos magnéticos de um tokamak são necessários três diferentes tipos de magnetos, explica a General Atomics no seu texto destinado aos média. As várias “bobinas externas” que existem em torno da câmara circular, e que se assemelham a vários anéis em redor de um dedo, “produzem o campo magnético toroidal, confinando o plasma”. Para controlar a posição e a forma do plasma recorre-se a “bobinas poloidais”, um outro conjunto de anéis, dispostos horizontalmente e que envolvem o tokamak ao longo da sua circunferência.
“No centro do tokamak, o Solenoide Central usa um pulso de energia para gerar uma poderosa corrente toroidal no plasma que flui em redor do toro. O movimento dos iões, devido a esta corrente, cria, por sua vez, um segundo campo magnético poloidal que aperfeiçoa o confinamento do plasma, além de gerar calor para a fusão.”
Para que este poderoso magneto cumpra o seu trabalho serão necessários, já com os seus sete módulos instalados, um total de 43 quilómetros de fio supercondutor de eletricidade, feito de nióbio e estanho. O primeiro módulo que vai a caminho de Cadarache, por exemplo, é composto por cinco quilómetros deste cabo, especificamente manufaturado para o efeito e insulado com várias camadas de outros materiais. Após a insulação, todo o módulo foi colocado dentro de um molde dentro do qual se injetaram, em ambiente de vácuo, 3800 litros de resina de poliepóxido, a qual foi depois endurecida a uma temperatura de 650 graus Celsius. No final, a resina fundiu todos os componentes do módulo numa única unidade estrutural. Os restantes módulos terão o mesmo tratamento.
Sejamos realistas. Construir um reator de fusão nuclear que ambiciona mudar o paradigma energético não é pera doce. O projeto do ITER parece prometer muito, mas é muito oneroso e exige conhecimentos científicos vindos de toda a parte do mundo, daí que as principais potências globais se tenham juntado para o financiar e dar gás.
A construção do ITER envolve mais de um milhão de componentes, os quais têm de ser desenvolvidos e construídos em diferentes partes do globo. Só os materiais supercondutores que os magnetos do ITER requerem, por exemplo, estão ou foram produzidos em nove fábricas de seis países.
Em 2035 já deveremos ter os primeiros resultados sobre se uma revolução energética está, ou não, mesmo a caminho.