Durante a adolescência, o nosso cérebro é muito diferente daquele que temos quando já somos adultos, isto porque, ao longo dos anos, ele sofre uma transformação anatómica, química e fisiológica. Ele evolui, portanto, ou, como tanto gostamos de dizer, ‘amadurece’. Dá-se, portanto, todo um conjunto de mudanças no cérebro que vão moldar (tornar diferente) os nossos processos de decisão e, inclusive, os traços da nossa personalidade.
Foi este o raciocínio, mas sem os pormenores científicos, que Brett Kavanaugh usou em 2018, durante a sua audiência de confirmação para o cargo de juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América – o seu nome foi apontado pelo então presidente do país, Donald Trump. Os senadores do Partido Democrata, numa tentativa de que não fosse nomeado, apontaram um dedo acusador ao seu passado boémio, regado com muita cerveja (como o próprio admitiu), quando ainda era um adolescente e frequentava o ensino secundário. Pelo meio, houve acusações de violação e assédio sexual, igualmente datadas desse período da sua vida, as quais acabaram por ser consideradas infundadas pelo comité de senadores.
Questionado sobre o seu comportamento na adolescência, Kavanaugh defendeu-se de forma lapidar: “Se quisermos ficar aqui sentados e conversar sobre se uma nomeação para o Supremo Tribunal deve ser baseada numa página de anuário do ensino secundário, então creio que chegámos a um novo nível de absurdidade”. Basicamente, Kavanaugh afirmou que os comportamentos que temos na adolescência não podem ser usados como bitola para definir aquilo vamos ser, ou o que vamos fazer, até ao fim da nossa vida.
Paradoxalmente, foi o mesmo juiz Brett Kavanaugh, já como membro do Supremo Tribunal, que escreveu e assinou a deliberação que, desde abril deste ano, permite aos menores de idade serem condenados, por um juiz ou grupo de jurados de um qualquer tribunal do país, a uma pena de prisão perpétua sem jamais terem direito a liberdade condicional.
A Constituição dos EUA proíbe “penas cruéis ou incomuns”, pelo que é inconstitucional prender um menor até ao fim da sua vida, exceto em casos “raros” que “refletem incorrigibilidade permanente”. Mas a quem cabe decidir que um menor de 15 anos é mesmo irrecuperável?
Antes de irmos ao que a ciência diz sobre isto, há que ir à origem de toda esta problemática. Recuemos até 2004, quando Brett Jones, menos de um mês após ter cumprido 15 anos de idade, matou o seu avô, tendo sido condenado por um tribunal do estado do Mississípi a uma pena de prisão perpétua. Os factos apurados e imputados ao jovem não são nada simpáticos para com ele: concluiu-se que Brett Jones esfaqueou oito vezes o avô paterno, após uma altercação relacionada com a namorada do jovem, tendo fugido do local após uma tentativa de encobrir o sucedido. Tudo terá começado quando o avô descobriu que a rapariga estava no seu quarto, tendo confrontado o neto quando este preparava uma sanduíche. Brett sempre alegou que apenas agiu em legítima defesa, mesmo quando se provou que usou uma segunda faca, após a primeira se ter partido.
Apesar da idade, as leis deste estado norte-americano determinam que, face ao crime cometido e à sentença imposta, Brett Jones nunca preencherá os requisitos para que lhe seja dada, algures no futuro, a possibilidade de liberdade condicional. Em suma, considerou-se que, apesar de nem sequer ter a idade legal para obter uma carta de condução (nos EUA é possível aos 16 anos) ou sequer votar (18 anos), o menor de idade será, para sempre, considerado pela sociedade um ser humano impossível de reabilitar.
Vamos continuar a navegar, um pouco mais, nas águas do sistema legal e judicial dos EUA, porque muita coisa passou debaixo da ponte desde que Brett Jones foi preso. Em 2012, o Supremo Tribunal dos EUA deliberou, após escrutinar o apelo de um homem que foi condenado à cadeia aos 14 anos, que a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional, quando os condenados são menores de idade, viola a 8ª Emenda da Constituição do país, a qual proíbe, tal como nela está escrito, “penas cruéis ou incomuns”. Em suma: é inconstitucional.
Quatro anos depois, o mesmo Supremo Tribunal foi mais longe e decidiu que a deliberação tomada em 2012 deveria ser aplicada de forma retroativa, algo que, na prática, afetaria várias centenas de condenações anteriores, incluindo a de Brett Jones. Não obstante, ficou frisado que ficavam excluídos os “raros delinquentes juvenis” que, pela natureza do tipo de crime cometido, “refletem incorrigibilidade permanente”.
Como consequência, vários estados ajustaram as suas leis, mas o do Mississípi foi um dos que não o fez. Mesmo assim, Brett Jones teve direito a uma reavaliação da pena pelo Supremo Tribunal do Mississípi, mas a decisão final não foi ao encontro do que esperava: voltou a receber o mesmo castigo, sem hipótese de liberdade condicional.
Foi então que o advogado de Brett decidiu apelar à mais alta instância judicial do país, o Supremo Tribunal dos EUA, com base na seguinte argumentação: “O tribunal [do Mississípi] não concluiu que Brett era permanentemente incorrigível, nem reconheceu que apenas os infratores homicidas juvenis [considerados] permanentemente incorrigíveis podem ser condenados à prisão perpétua, sem liberdade condicional. Aliás, nem sequer abordou a capacidade de Brett para se reabilitar”. Dito de outra forma, e segundo o advogado, houve uma violação do que, até àquele momento, tinha sido deliberado pelo Supremo.
Donald Trump, num só mandato, teve a oportunidade de nomear três juízes para o Supremo (um terço do total), escolhendo figuras marcadamente conservadoras. Terá isso influenciado a recente deliberação?
Teve assim início o caso judicial Jones v. Mississipi, cabendo ao Supremo Tribunal responder a esta simples pergunta, feita pela equipa de defesa de Brett Jones: a 8ª Emenda da Constituição exige que a autoridade responsável por emitir a sentença [um simples juiz, por exemplo] tenha igualmente de concluir que um jovem é permanentemente incorrigível, antes de impor uma sentença de prisão perpétua sem liberdade condicional?
A resposta foi dada a 22 de abril deste ano. Seis juízes, de um total de nove, votaram a favor da manutenção da sentença emitida pelo tribunal do Mississípi, quando este reavaliou o caso de Brett. Três juízes do Supremo Tribunal votaram contra. Segundo o texto que explica a decisão tomada pela maioria, escrito e assinado pelo juiz Brett Kavanaugh, os juízes e jurados de um tribunal de nível estadual, ao decidir qual a pena a aplicar, já estão a ter em conta as circunstâncias envolvidas, sejam elas morais ou sociais, assim como o contexto do acusado – incluindo a sua idade e se ele é, ou não, reabilitável.
Basicamente, a decisão agora tomada sobrepôs-se ao que foi deliberado pelo mesmo tribunal em 2012 e 2016, voltando a permitir, para os menores de idade, sentenças de prisão perpétua sem liberdade condicional.
Para Sonia Sotomayor, juíza do Supremo que votou contra a pena aplicada a Brett Jones, o resultado da votação é uma “quebra abrupta” em relação às deliberações mais recentes, escreveu no texto de opinião dissidente que acompanha a decisão. Uma opinião que, certamente, tem em conta o facto de o anterior presidente dos EUA, Donald Trump, num só mandato ter tido a oportunidade de nomear três juízes para o Supremo Tribunal (um terço do total), escolhendo figuras marcadamente conservadoras.
Em giza de conclusão final, Sotomayor acrescentou que “a questão é se [...], em determinado momento, se deve considerar que um jovem infrator demonstrou maturidade e reabilitação suficientes para merecer uma [nova] hipótese para a sua vida, sem ser a prisão em que cresceu”. No seu entender, na maior parte dos casos essa segunda hipótese tem de ser dada, em vez de negada.
O córtex pré-frontal do nosso cérebro só estabiliza por volta dos 20 anos. Esta região é responsável por medir as consequências das nossas más decisões e interromper, se necessário, uma ação que pode causar dano a nós e a outros.
Para o psiquiatra e neurologista Daniel Weinberger, investigador da Universidade Johns Hopkins e diretor do Instituto Lieber para o Desenvolvimento do Cérebro, ambos nos EUA, a recente decisão é um “ataque à ciência”, na medida em que ignora por completo tudo aquilo que já se sabe sobre o córtex pré-frontal e como este se desenvolve à medida que crescemos, sendo responsável pelos nossos processos de decisão, comportamentos sociais e traços de personalidade.
“Após 15 anos de decisões que colocaram limites às sentenças dadas a menores condenados por crimes violentos, o [Supremo] Tribunal fez marcha-atrás com uma decisão profundamente anticientífica. O homicida, neste caso, tinha acabado de fazer 15 anos. Esta nova deliberação afirma que os primeiros anos da adolescência vão definir como é que alguém vai provavelmente comportar-se para o resto da sua vida. Este argumento ignora, lamentavelmente, a neurociência que explica por que os jovens não devem ser tratados como adultos – a mesma evidência científica que influenciou e orientou as decisões judiciais anteriores”, frisou recentemente à revista Scientific American, num artigo de opinião.
Os seres humanos levam muito tempo a amadurecer porque a estrutura do nosso cérebro só estabiliza após a adolescência – trata-se de um facto científico. O principal responsável por isso é o lóbulo frontal do cérebro, ou, para sermos mais específicos, uma das suas partes: o córtex pré-frontal, situado, se nos olharmos ao espelho, na zona que ocupa a nossa testa e o início do topo da nossa cabeça.
É graças ao córtex pré-frontal que, tal como explica o neurocientista David Eagleman no livro O Cérebro - À Descoberta de Quem Somos, que temos a opção de refletir antes de agir, de analisar e medir as consequências, a curto e longo prazo, de algo que podemos vir a fazer. Aliás, quando dizemos, de forma corriqueira, que determinada pessoa se tornou mais madura (que evoluiu nesse sentido), estamos a referir-nos, muitas vezes, à sua capacidade para conseguir avaliar o real alcance das ações que pode vir a cometer.
O homo sapiens é o animal que mais anos precisa para amadurecer, pois o seu cérebro sofre profundas transformações enquanto cresce.
O cérebro, ao longo de toda a nossa vida, não deixa de ser maleável, dado que criam-se novos circuitos neuronais e outros desvanecem, embora, com o avanço das décadas, esta ‘plasticina’ se torne cada vez mais dura de moldar. É por isso que, tal como frisa Eagleman, o córtex pré-frontal só se desenvolve totalmente – só chega à sua fase ‘adulta’ – por volta dos 20 anos, o que explica o comportamento impulsivo dos adolescentes.
“Através do nosso córtex pré-frontal, podemos não só imaginar o futuro, como também planeá-lo e ter em consideração as consequências de más decisões e interromper, se necessário, uma ação que se encaminha nesse sentido”, começa por explicar Daniel Weinberger no texto que escreveu para a Scientific American.
“No entanto, o córtex pré-frontal de um adolescente não tem essas capacidades porque está longe de ser maduro e distante daquilo que se vai tornar [no futuro]”, acrescenta. “O cérebro de um adolescente difere profundamente de um cérebro adulto na sua anatomia, química e fisiologia. Esta não é uma hipótese ou teoria; uma montanha de evidências científicas estabeleceu isto como um facto", acrescenta.
Além do mais, os neurocientistas, atualmente, percebem muito melhor como é que os neurónios desta região cerebral evoluem e comunicam com os neurónios de outras partes do cérebro, mesmo as que estão mais longínquas e parecem ser centrais para outros tipos de funções. Estamos a falar de todo um intrincado que vai permitir, embora só ao fim de duas décadas após nascermos, que surja um raciocínio considerado 'adulto' e um maior controlo sobre os nossos comportamentos. Ou seja, demora longos anos, fazendo do homo sapiens o animal que mais anos precisa para amadurecer, pois, enquanto cresce, o seu cérebro sofre profundas evoluções.
“Durante a adolescência, as conexões entre os neurónios [de diferentes partes do cérebro] crescem e contraem-se, sendo que algumas conexões são fortalecidas e outras eliminadas, num processo que vai esculpir o cérebro para a vida adulta”, descreve Weinberger. “Enquanto isto acontece, o córtex pré-frontal está a cimentar conexões com partes do cérebro que são responsáveis por expressar emoções, particularmente emoções fortes, para permitir que o CEO do cérebro [ou seja, o córtex pré-frontal] tenha a palavra final sobre que tipo de acção deve ocorrer na sequência de determinada emoção, e quando.”
Ainda durante a adolescência, ocorre um outro processo de desenvolvimento cerebral a que se dá o nome de mielinização, em que as ligações neuronais, quase como se fossem um fio metálico por onde passa eletricidade, começam a ser revestidas por uma camada isolante. Trata-se da mielina, uma camada lipoproteica (com bastante gordura) que protege e torna mais rápida a transmissão de sinais (informação) dentro do cérebro.
Um pormenor importante. “A mielinização continua um pouco além dos 20 anos. Em essência, o diagrama de ligações [neuronais] do cérebro só assume um padrão adulto na terceira década de vida”, remata o neurocientista.
O debate jurídico, o qual tem consequências diretas na vida de muitos menores que foram sentenciados a uma eterna estadia na prisão, promete continuar, pelo menos nos EUA. A questão está em saber se os factos científicos serão tidos em conta pelo Supremo Tribunal, de futuro, ou se, por agora, juízes e jurados estão preparados para os ter em consideração antes de condenar um menor em tribunal.