Em janeiro deste ano foram publicados os resultados do estudo “Saúde Mental em Tempo de Pandemia”, coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em colaboração com a Universidade de Lisboa e a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, o qual aponta que “25% dos participantes apresenta sintomas moderados a graves de ansiedade, depressão e stress pós-traumático”, e que “são sobretudo os jovens adultos e as mulheres que apresentam sintomas de ansiedade e de depressão moderada a grave”. Há nestes números alguma novidade que já não suspeitasse?
Estes dados não me surpreendem. Até esperava que os números do estudo fossem maiores. Antes da pandemia, um quarto da população do mundo ocidental já sofria de uma determinada perturbação de saúde mental. Portugal é o segundo país do mundo, só atrás dos Estados Unidos, com maior percentagem de pessoas com depressão, de acordo com o relatório sobre saúde mental de 2017, da Faculdade de Medicina de Lisboa. Em termos de perturbações de humor (instabilidade, ansiedade e depressão), somos o segundo país da Europa, só ultrapassados pela Irlanda.
Tornou-se um velho cliché dizer que a depressão é uma doença invisível. Mas é possível encontrar os seus sinais, não é assim tão invisível...
Pois não. É mais fácil olhar para um braço partido, para as análises ao colesterol ou às diabetes. A depressão é invisível no sentido de que não há um sinal físico deste género, no entanto, pode ser vista através de determinados tipos de comportamentos: o consumo elevado de drogas ou álcool, o fazer muitas compras. As perturbações de ansiedade, que muitas vezes antecedem a depressão, são sinais bem visíveis de que muitas pessoas lidam com a depressão utilizando estas saídas de emergência. E, depois, há ainda o suicídio. Em setembro do ano passado fui convidada para falar numa conferência, e até eu, que lido constantemente com isto, quando tive de recolher informação fiquei surpreendida com a dimensão da depressão e do suicídio. É muito significativo o que vou dizer: o suicídio é a terceira causa de morte no mundo, ela equivale à soma de mortes por homicídio e em ambiente de guerra. Estamos perante outro tipo de pandemia, portanto.
Como se chega ao ponto em que essa parece ser a única escapatória possível?
O que está na base do suicídio, normalmente, são depressões continuadas, em que a pessoa já está num modo severo, não reage à medicação, e em que tem atos de desespero. Aí, a única saída que encontra é o suicídio. Para mim, este é um grande sinal dos efeitos da depressão. Em Portugal, de oito em oito horas, morre uma pessoa por suicídio. E a toda a hora existe alguém que o tenta cometer.
Estamos muito presos às estatísticas que nos indicam o número de mortes, mas, depois, parece que ignoramos que há todo um outro espectro, que é a quantidade de pessoas que pensam ou tentam cometer o ato…
Sim. Há uma professora, com quem costumo conversar, que diz que o suicídio tem de fazer um coming out [sair do armário] na sociedade, para que se passe a falar do tema de uma maneira mais honesta e clara, para alertar para os sinais de alguém que esteja a pensar nisso.
Que consequências, para a saúde mental dos portugueses, podemos esperar (estimar) a médio e longo-prazo? Há quase um ano, e não sabemos até quando isto pode durar, que somos bombardeados, inclusive mediaticamente, com a ameaça da COVID-19. Vivemos vários meses somados em estado de emergência, fomos obrigados a ficar confinados nas nossas casas, tivemos de respeitar o distanciamento social, sendo que, pela altura do verão, houve a sensação de que o cenário estava a melhorar, mas depois tudo ficou ainda pior. No final de 2020, celebrámos o surgimento de novas vacinas e parecia que 2021 seria totalmente diferente, só que estas, constatou-se depois, ainda vão demorar algum tempo até chegar a toda a população e, mesmo assim, não garantem que poderemos vir dizer adeus à COVID-19 tão cedo. Gerou-se, com tudo isto, uma montanha-russa de emoções e sentimentos em tão pouco tempo. Isto não é nada saudável, pois não?
Temos de ter em atenção que somos um país com muitas perturbações de humor, principalmente oscilações de ansiedade e depressão. Com base nesta realidade atual, podemos antecipar o que aí vem. Neste primeiro momento, o que vivemos agora, a ansiedade está muito ativada, e a ansiedade é o nosso ‘alerta de perigo’. A ansiedade produz três grandes respostas: lutar contra o perigo, fugir dele ou ficar congelado, para que o perigo não nos apanhe. Quando estamos em confinamento, sem liberdade de deslocação e com um vírus que é invisível e pode estar em qualquer lado, as respostas de lutar ou de fugir não existem. O que fica, portanto, é o ‘congelamento’, aquilo a que chamamos de ‘colapso’ - no caso dos humanos, isso fica arquivado no corpo à espera de ser processado. Mais tarde, depois de passar a pandemia, ao retomarmos uma espécie de normalidade, há uma série de coisas que podem começar a aparecer: sintomas biológicos como a sensação de peso no peito, a dificuldade em respirar, os problemas de foro intestinal ou na pele, ou, então, sob a forma de ataques de pânico, o medo de tomar algumas decisões relacionadas com a vida. É nesta altura que surge a importância de processar as emoções que ficaram por processar.
Que mais nos pode acontecer mais tarde, sem darmos conta disso neste momento?
Outra coisa que pode suceder é o de termos de lidar com o luto e o desgosto. E o luto não é só em relação às pessoas que morreram. Há pessoas próximas de nós que faleceram, mas também há o elevado número de mortos que foram noticiados todos os dias em Portugal, sendo que, desde janeiro, ouvimos a frase de que é como se caísse um avião a cada dia e 200 ou 300 pessoas morressem. Isto traz uma sensação de insegurança. Neste caso, o que vamos nós processar em termos de perda? Vamos processar a perda de liberdade, de deslocamento, a perda de confiança de que o mundo é previsível - isto porque, de repente, a pandemia veio colocar tudo em causa. A nossa capacidade de controlar algum tipo de rumo para a nossa vida fica afetada. É como se precisássemos de recuperar a confiança no mundo e nos outros, assim como recuperar alguma capacidade de controlo àquilo que nos acontece. Isto é algo que pode ser despoletado no próximo ano, daqui a dois anos… Em Portugal, as pessoas com sintomas graves de depressão demoram, em média, até quatro anos a pedir ajuda. Logo, espero que estes alertas constantes, em volta da saúde mental, façam com que as pessoas procurem ajuda mais cedo. Esta pandemia está a expor o que guardávamos ou escondíamos da nossa expressão pública, e, perante condições extremas, os desequilíbrios mentais já existentes foram exacerbados.
"O acesso à saúde mental em Portugal é mau"
E os profissionais de saúde que estiveram na chamada ‘primeira linha de combate’ à COVID-19, nas urgências dos hospitais e não só? É notório, pelos inúmeros testemunhos que têm dado, que foram e continuarão sujeitos a um enorme desgaste psicológico.
Outra situação que vai acontecer é que alguns desses profissionais de saúde vão ter de lidar com o sentimento de culpa. Culpa por não terem conseguido fazer mais pelos pacientes que tinham à sua frente, culpa porque ficaram cansados. Em seguida, ainda temos as situações perturbadoras a que assistiram: nós não temos noção do que se passa em alguns hospitais. Li, recentemente, uma entrevista de uma médica de Coimbra que lamentava ter desatado a chorar num momento de crise. Eu confesso que fiquei contente por, pelo menos, ter chorado, porque o choro é uma forma de deitar cá para fora o que ela sente, de regular a tensão. O sentimento de culpa com que ficou, por achar que não deveria ter chorado, está associado à imagem com que ficou dela própria: é a imagem de que “falhei, estava a gerir um serviço, isto não se faz, o que é que isto transmite aos outros?”. Muitos destes profissionais ficaram, também, com estas emoções por processar, e, aí, temos o stress pós-traumático.
Do contacto que tem com os seus pacientes, das conversas que tem com colegas e por aquilo que viu em Portugal, no último ano, a visão que as pessoas têm do futuro, seja a nível pessoal ou profissional, tornou-se menos otimista? Tornou-se mais difícil delinear ou vislumbrar um futuro em que nos possamos sentir inscritos, sentir que fazemos parte dele, um projeto de futuro que traga sentido às nossas vidas?
Essa vai ser uma das grandes questões no futuro. Há um grande medo do vírus, neste momento, mas a grande dúvida é sobre o futuro económico. Podemos ouvir a resposta de que é todo o globo que está a lidar com a crise económica, mas os portugueses têm consciência da fragilidade económica do nosso país, uma economia que assentava no turismo e em algumas exportações. Por exemplo, o que vai suceder ao setor da restauração e a quem dele dependia, a quem trabalha para a Uber ou outro serviço semelhante, a empresas que só se dedicavam ao turismo? As pessoas estão com muito medo das questões económicas: o medo de perder emprego, de perder as estruturas [de apoio], de não conseguir sustentar a família. Outro medo que surge é o até que ponto eu, perante uma situação de fragilidade de saúde, posso contar com as estruturas do meu país. Há pacientes, meus e de outros colegas, que dizem olhar para os nossos governantes e sentir que “eles estão completamente à nora”, citando uma dessas pessoas. “Se eles não sabem o que fazer, sinto-me à deriva num barco. Não há timoneiro”. É o que dizem. A comunicação que existe [a nível político] acaba por ser paradoxal, pois faz-se uma coisa mas, depois, não se faz outra, e antes fazia-se aquilo e agora já é desta maneira. Isto influencia muito o estado anímico das pessoas. Elas sentem-se entregues a elas próprias. Mas atenção, isto não sucede só em Portugal, noutros países as pessoas desabafam o mesmo.
Antigamente, quando o país enfrentava uma crise, a emigração era um escape, como sucedeu no início da década de 2010, mas, como a pandemia se tornou global e está a afetar todas as nações, isso deixou de ser uma opção viável...
Nem sequer isso já temos. Voltamos ao que mencionei antes: há um colapso, a pessoa fica congelada e fica a pensar “o que faço eu?”.
Se criássemos uma espécie de compêndio das palavras e expressões que mais tem escutado dos seus pacientes, quais estariam no topo da lista?
“Eu não sei como é que vai ser para continuar a ter acesso a certas coisas”; “que futuro vão ter os meus filhos?”; “estamos entregues a nós próprios”; “não sou eu, mas há muita gente que vai passar mal”. Tudo isto mostra insegurança económica. Eu faço clínica privada (neste momento através de consultas online), pelo que quem recorre a mim tem recursos económicos para recorrer a um psicólogo privado, e os meus pacientes, apesar de dizerem que vão sofrer uma perda económica, perguntam como é que vai ser o futuro dos seus filhos, das outras pessoas. As pessoas estão a demonstrar muito esta preocupação.
Os rendimentos que auferimos, no final do mês, ainda determinam quem pode, ou não, ter acesso e pagar por cuidados de saúde mental? Dito de outra forma, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) consegue chegar a quem está mais fragilizado economicamente e prestar um apoio, regular e mais acompanhado, junto de quem precisa destes cuidados?
O acesso à saúde mental em Portugal é mau! Não vale a pena dourar a situação. Pelo SNS, é difícil o acesso, há poucos psicólogos nos centros de saúde e cada um deles tem muitas consultas para atender. Só que, nesta área, é importante que existam sessões regulares com os pacientes. Depois, há outro aspeto importante: por exemplo, nós podemos ir a um oftalmologista [através do SNS] e não gostar muito dele, mas não nos ralamos muito com isso e lá continuamos com ele, mas se se vai a um psicólogo e não há empatia com esse profissional, a coisa não corre bem. Uma pessoa tem de se sentir à vontade com um psicólogo. Outro caso: imaginemos que um profissional tem inúmeras pessoas em consulta no centro de saúde. Provavelmente está cansado e não consegue estar no seu melhor para atender as pessoas. Assim se cria um efeito de bola de neve, pois quando, ao fim de tantos meses de espera, uma pessoa consegue finalmente uma consulta com o psicólogo, ela pode gostar ou não dele. Se gostou dele, só daqui a dois meses tem nova sessão, e quando não gosta, não tem mesmo outra possibilidade. E, muitas vezes, o que se passa é que o profissional está cansado e não consegue dar o seu melhor. Paga-se uma fatura muito cara por não termos bons cuidados de saúde mental, no SNS.
Em alguns países, como nos EUA, existe uma falta de profissionais da saúde mental, mesmo no setor privado, face a tanta procura. Aqui sucede o mesmo?
Em Portugal, o problema não é a falta de profissionais. Somos um dos países do mundo com maior rácio de profissionais de psicologia por habitante. Mas não há estruturas suficientes para que as pessoas tenham acesso aos psicólogos, sendo que temos profissionais muito bons, mesmo comparando com lá fora.
Vários psicólogos que fazem clínica privada atendem gratuitamente alguns pacientes, quando estes não conseguem pagar, ou, então, reduzem o preço que normalmente cobram por consulta durante algum tempo, exatamente por saberem que esses pacientes necessitam de um acompanhamento regular.
Há muitos colegas que dão consultas pro bono [gratuitas], mas se um psicólogo fizer mais do que dois acompanhamentos pro bono, fica complicado, pois também temos de pagar contas. Isto não é uma resposta suficiente para todos os pedidos que recebemos. É preciso relembrar que somos o segundo país do mundo no que se refere à depressão. Tendo em conta a atual pandemia, o número de pessoas a sofrer de depressão tenderá sempre a aumentar, mas, se elas não forem acompanhadas, muitas destas pessoas irão desenvolver perturbações de saúde.
"Muita frustração": Adolescentes fechados em casa com os pais e sem acesso a novas experiências de vida
Quais os maiores problemas que notou entre os pacientes mais jovens? A expectativa de poderem gozar, nesta fase da vida, de novas experiências e de um maior convívio com os atuais e novos amigos, ficou reduzida às paredes do lar e a um ecrã da plataforma Zoom.
Peço desculpa por estar linguagem mais terra-a-terra, mas os mais jovens ‘bateram’ mal, e ainda estão a ‘bater’ mal. Eu só acompanho pacientes com 16 anos ou acima. No entanto, os meus colegas que acompanham faixas etárias mais baixas frisam que o principal problema, nesse grupo mais novo, é a ansiedade. Eles percebem que existe um perigo, mas não sabem muito bem o que é. Mas também há muitos ataques de pânico, aliás, há muitas crianças com ataques de pânico em pleno consultório. Quanto aos mais velhos, há que ter em conta que a adolescência é, por excelência, o tempo em que não queremos saber dos pais ou dos professores. É com os pares [os da mesma idade] que se dá o convívio. Apesar desta era de novas tecnologias [da informação], não é só através da Internet que se tem esse convívio: ele inclui ir dar uma volta, ir a um jardim, estar fisicamente junto. Mas, neste momento, não há nada disso. Mesmo quando puderam estar presencialmente nas aulas, durante esta pandemia - e eu acompanhei alguns jovens que foram para a escola -, havia todo um conjunto de limitações no convívio social. Isto cria uma tensão acrescida. Nas faculdades, todo aquele networking, que envolve as festas e as saídas à noite, ficou em pausa, e os jovens têm de ficar fechados em casa com os pais, que é uma outra questão.
Ou seja, dá-se o tradicional choque de gerações, mas, desta vez, os adolescentes não têm um espaço para onde possam ir e dar largas à irreverência sem sentirem que são controladas, onde possam aprender as experiências de vida típicas desta fase…
Ficar em casa com os pais, nesta altura da sua vida, é aquilo que menos desejam. Temos, portanto, muitos conflitos em casa. Como é óbvio, eu compreendo o lado dos miúdos, mas tenho de admirar os pais que ouvem com cada coisa, pois os jovens sentem-se muito frustrados. Torna-se muito complicado o convívio destas diferentes realidades. Pelo meio, há ainda a sensação de que se está na faculdade para ter aulas através do Zoom. Um jovem acaba por pensar: “eu julgava que a faculdade iria ser aquela altura de diversão, de descoberta…”. Só que, depois, isso não acontece. Há muita frustração e tristeza.
Saltemos algumas gerações à frente. No que está a pensar quem já tem mais décadas em cima do corpo?
Dos mais velhos já ouvi frases como esta: “é como se estivesse sentada à espera de que venha o fim”. A história que vou contar é da minha mãe, que tem mais de 70 anos e a quem pedi que tivesse cuidado e não saísse, ao qual me respondeu: “tu ainda podes ir dar voltas nos próximos 30 anos, eu não estarei cá em 30 anos”. Muitas pessoas mais velhas, e eu sinto isso, decaíram muito [no último ano], sentiram desaparecer o que as animava, a ideia de que ainda iriam viver coisas. É, mais uma vez, a depressão, a desesperança e a desvitalização.
Homens e mulheres. Também aqui há diferenças? A pandemia veio realçar problemas já há muito identificados?
As mulheres ainda têm uma grande sobrecarga nas tarefas domésticas, algumas vezes porque elas próprias não querem abdicar de as fazer: acham que é o seu papel. Se associarmos o menor estatuto económico que têm às tarefas domésticas e ao cuidar dos filhos, vemos que estas pessoas estão muito sobrecarregadas. Há que ter em conta que, a nível económico, elas têm, por norma, empregos menos seguros. Cabeleireiras, esteticistas, limpezas… há uma série de profissões que depende do trabalho feminino. Com o confinamento, e estando o comércio a ser afetado, estas mulheres estão muito mais fragilizadas economicamente e têm medo de não conseguir providenciar o suficiente para viverem e para contribuir para a família.
“Nestes últimos dez anos, de altos e baixos, os portugueses ficaram mais cansados"
Durante a crise económica global que eclodiu em 2008, e que atingiu Portugal por volta de 2010, registou-se um aumento do desemprego e acentuou-se a precariedade laboral, o que reforçou a sensação de que não era possível criar grandes expectativas em relação ao futuro. Depois ressurgiu um maior otimismo em relação ao país, especialmente por causa do boom do turismo. E, neste momento, parece que voltamos a uma espiral de pessimismo em relação ao que aí vem. A última década em Portugal foi uma longa montanha-russa de pessimismo e otimismo?
Para encontrar, em Portugal, um efeito tão grande como aquele que está a ter a pandemia, temos de recuar aos anos da guerra colonial. A nível de impacto global, temos de recuar à Segunda Guerra Mundial. Nós estamos a viver um momento histórico. Nestes últimos dez anos de altos e baixos, ficámos [os portugueses] mais cansados. Quando parecia que estávamos a conseguir meter a cabeça de fora, somos atirados novamente, de repente, para um buraco. O meu receio é que tudo isto aumente, em muito, os números da depressão e da ansiedade, devido a uma maior sensação de perigo, à perda de esperança, de vitalidade, e, depois, que as pessoas não consigam (devido ao maior cansaço que têm) recuperar força anímica para aguentar e seguir em frente com tudo isto.
Traçar paralelismos com a história do século XX, com as décadas que antecederam a ascensão das ditaduras na Europa, é um exercício intelectualmente perigoso, porque cada época tem um contexto muito próprio, embora existam sinais a que podemos dar atenção. Quando os seres humanos sentem-se ameaçados, cansados, sem perspectiva de um futuro que lhes traga segurança ou um sentido para a sua vida, abrem-se portas perigosas?
Estamos a assistir à ascensão do populismo e, pelo meio, surge a questão de “para onde é que isto vai”, surge a ideia de que “é preciso criar ordem porque isto está um caos”. Caos e ordem são duas forças que existem no mundo, mas nós abdicamos do que for preciso para que se crie ordem. Mas se, depois, a ordem (as regras que se criam) forem demasiado rígidas, acabamos por estagnar. Há aqui um equilíbrio que a humanidade tem de conseguir manter. É preciso um determinado tipo de caos para que surjam novas oportunidades e novidades, mas, se o caos for em demasia, deixamos de ter o grau de previsibilidade que nos permita viver com segurança, uma segurança que precisamos para perseguir os nossos objetivos. E, perante tanto caos, as pessoas podem desejar que venha, de um momento para o outro, uma regra que imponha ordem, que traga, pelo menos, alguma coisa com a qual saibam que podem contar. É neste ambiente que surgem diversos tipos de populismo, figuras que oferecem soluções a preto e branco, o que pode ser um perigo.
O distanciamento social, que agora nos foi imposto, pode tornar-se num novo ‘normal’, mesmo após o fim da pandemia? E que efeitos tem ele em nós, neste momento?
Nós somos mamíferos, e eles, seja qual for a espécie, procuram outros mamíferos para se acalmar ou animar. Esta pandemia, aquilo que nos diz, é que “os outros são perigosos”. Nada de convívio social, tudo a dois metros de distância e ficar em casa. Só que isto é contranatura para nós, promove a ansiedade, pelo que não é por acaso que o consumo de álcool e drogas tenha subido, ultimamente. Ao mesmo tempo, quando os indivíduos estão isolados, também ficam mais fragilizados e suscetíveis de aceitar determinadas ideias, o que também é perigoso. Contudo, as redes sociais - e vamos ignorar a questão em torno dos algoritmos que os alimentam, dos seus efeitos e perigos - permitem falar mais com os amigos, por exemplo, e conseguimos fazer uma reunião ou uma festa de aniversário por Zoom, pelo que estas tecnologias podem ser uma atenuante. Após a pandemia passar, creio que as pessoas, na generalidade, não se manterão afastadas umas das outras: a proximidade física entre elas e os afetos a que estávamos habituados voltarão.
Para evitar o burnout, psicólogos portugueses estão a dar menos consultas para se proteger da vaga de pacientes que aí vem
Deve estar acostumada a colocar esta questão aos seus pacientes, mas gostava de inverter os papéis e ouvir a sua resposta: a Ana Caetano está otimista ou pessimista quanto ao futuro?
Sinto-me curiosa! Eu ponho as coisas a um nível muito básico: aquilo que não podemos é passar fome, porque se nos faltar energia não podemos batalhar. Há sempre um espaço de ação que podemos explorar, e, dentro do que é a nossa esfera de alcance, não podemos desistir. Mas não posso ignorar o futuro económico: sei que há muitas pessoas que vão passar mal. Também não posso ignorar que vai haver um fascínio grande por popularismos e autoritarismos, e que as pessoas vão achar que é perigoso pensar de forma diferente [em relação ao grupo a que pertencem]. Neste último especto, tenho receio que se perca o pensamento crítico e que fiquemos mais acomodados e ‘cinzentos’. Todavia, não deixo de ser uma pessoa com esperança.
Quando lemos ou ouvimos falar do enorme esforço dos profissionais de saúde que estão a combater a COVID-19, não sente que quem trabalha na área da saúde mental acaba por ficar esquecido, ou, de alguma forma, acaba por não ser suficientemente valorizado, pois também ele tem um papel fulcral a desempenhar nesta crise, especialmente no futuro pós-pandemia?
Está a falar com uma pessoa que acredita que está na profissão mais bonita do mundo, na profissão que traz mais significado, a mais interessante e apaixonante de todas, aquela que é mais capaz de realizar uma pessoa. Nós, os psicólogos, sentimos que somos muito necessários. As grandes razões pelas quais as pessoas nos procuram são: depressão, ansiedade e perda de relações amorosas. Na depressão há uma base biológica, obviamente, mas também existe aquilo a que se chama de pensamentos autorreferentes negativos: “eu não consigo”; “eu não sou capaz”; “eu não tenho valor”.
São pensamentos que ‘ruminamos’ na nossa cabeça, constantemente…
Exatamente. É um diálogo interno em que estamos sempre a deitar-nos abaixo. Quando se consegue fazer uma reestruturação cognitiva, quando alcançamos sentimentos recalcados e a pessoa consegue processar esses sentimentos, ela ganha vitalidade. Isto é das coisas mais necessárias, por se uma pessoa não tem vitalidade, então não consegue fazer autorregulação, manter rotinas, trabalhar, estabelecer relações significativas, não consegue ser um melhor pai ou mãe, ser melhor amigo.
Regressemos à questão que fiz antes, sobre se os psicólogos se sentem valorizados.
Li uma investigação que refere que a nossa profissão foi uma das dez mais procuradas durante a pandemia, em Portugal. Ou seja, sentimos que estamos a ser valorizados. Mas também sentimos que somos subaproveitados.
Dê-me exemplos do que se poderia melhorar, ou fazer diferente, para aproveitar melhor as vossas capacidades.
Eu li o estudo que referiu no início da entrevista, sobre a “Saúde Mental em Tempo de Pandemia”, e lá surgem algumas indicações sobre como lidar com a situação atual. Vou dar um exemplo simples: a terapia de grupo. É uma forma económica de chegar a um grande número de pessoas. A questão é que não pode ser só um psicólogo, uma espécie de ‘carola’, a meter em funcionamento um grupo de pacientes. Isto tem de ser promovido pelas instituições, pois é uma maneira muito acessível de criar serviços de saúde funcionais, capaz de diminuir a sensação de isolamento, além de que ao incluir mais pessoas torna o acesso mais barato. É preciso criar condições e estruturas para que esta e outras ideias se tornem realidade, para que se produzam verdadeiras mudanças: não basta apenas dizer que os psicólogos são necessários.
Os psicólogos e as psicólogas não são entidades sobre-humanas. Também sofrem de depressão e burnout. Há indícios de que um número crescente deles também está a sofrer deste tipo de problemas, em Portugal?
Quando a pandemia chegou a Portugal, eu e os meus colegas desdobrámos-nos. Demos imensas consultas, trabalhámos durante sábados, domingos e feriados. Tivemos de nos adaptar ao online, a estar sempre a olhar para um ecrã para as consultas. Eu nunca usei óculos, por exemplo, e tive de começar a usá-los. Foi então que muitos colegas meus começaram a perceber que estavam exaustos. Neste último verão, devido ao que sucedeu, tiraram períodos de férias muito maiores [quem faz clínica privada], pois os relatos que existiam era o de um constante cansaço. Depois, pelo meio, há processos de intolerância e de falta de paciência, algo que às vezes os clientes não notam, só que os familiares destes profissionais queixaram-se muito disso.
Como já referiu, um psicólogo cansado pode não conseguir fazer bem o seu trabalho. Que soluções encontraram?
A consequência foi que a maioria dos psicólogos [em clínica privada] está a dar menos consultas porque teve de se proteger, porque percebeu que o atual problema não vai acabar tão cedo: no pós-pandemia iremos apanhar com uma vaga de pacientes, por causa do stress pós-traumático e devido ao sentimento de perda, o que obriga a fazer processos de luto do que se teve de abdicar, do que se perdeu e que já não volta.
Além de terem menos consultas, de que outras formas se resguardam dos fatores de desgaste? Devem ter os vossos próprios ‘truques’.
Os psicólogos têm mecanismos próprios de defesa, seja qual for a área em que trabalham: não estão só em clínicas, podem estar a trabalhar em prisões, em empresas, por exemplo. Um dos aspetos mais importantes é o autocuidado. A Ordem dos Psicólogos chegou a abrir um fórum online sobre os autocuidados para os profissionais, pois, devido ao dever de sigilo, só podemos falar entre nós. Na nossa profissão, existe algo a que se chama supervisão, em que somos acompanhados por um profissional que sabe mais do que nós e que organiza reuniões de trabalho para falarmos sobre as nossas dificuldades. É onde se abordam assuntos como: “estou cansada” ou “já não sei como lidar com este paciente”. São-nos apresentadas soluções para estas questões. E também existem grupos de intervisão, em que somos todos pares [iguais] e que serve para desabafarmos num sítio seguro, para que os problemas que sentimos deixem de estar no nosso sistema, dentro de nós, e saiam cá para fora. E, ainda, temos os nossos próprios processos de terapia: somos um classe que parece organizada em pirâmide, pois promovemos serviços de terapia para a população, mas depois, mais acima, temos outros colegas junto de quem procuramos ajuda, e estes últimos, por sua vez, recorrem a outros que estão ainda mais acima. Mas também temos de encontrar tempo para estar com a família, porque muitas vezes ficamos tão cansados que já não queremos estar com mais ninguém.
E qual é o mecanismo de defesa que prefere usar?
Gosto muito de dançar, pelo que danço em casa [risos].
Alguma vez entrou em depressão devido à sua atividade enquanto psicóloga? Um momento em que tenha sentido que estava no fundo do poço e não existia energia para sair dele?
Foi uma situação que se passou há cerca de 14 anos, mas que me marcou muito e ajudou a perceber melhor as pessoas que tenho à minha frente [os pacientes]. Estava a trabalhar numa escola, num projeto de prevenção primária e, em virtude disso, fui nomeada para fazer parte de uma comissão de proteção de crianças e jovens em risco. Passado um ano, houve um dia em que nem sequer me consegui levantar da cama. Estava com muito trabalho, tanto na escola como na comissão, acumulei muitos casos, mas casos relacionados com maus-tratos ou abuso sexual, por exemplo. A par disso existiam outros casos, menos complicados, mas que depois ‘entupiam’, em termos de burocracia e cumprir procedimentos: pois há que verificar bem se são, ou não, casos graves.
Isso levou a que…
Levou a que cometesse um erro muito grande: cortei nas horas de sono, deixei de fazer atividade física e trabalhava 18 horas por dia. Isto não podia acabar bem. Nesse dia em que quis levantar-me da cama, simplesmente desfaleci. Foi aí que senti na pele o que é o burnout. Uma pessoa até fica sem energia para ler o rótulo dos cereais. Quando me deslocava de comboio nem sequer era capaz de ler o jornal Destak, porque achava que aquilo era demasiada informação para mim. Acabei por ganhar medo de fazer atendimentos, de um momento para o outro saí da comissão - porque não tinha mesmo energia -, e mantive apenas o trabalho na escola. Mas, mesmo este, era sofrível para mim, pois estava muito vulnerável. Além do mais, uma das características do burnout é o cinismo, a ideia de “vai correr mal, nem vale a pena começar”. Tive de lutar muito contra isto. Valeu-me, à época, o enorme apoio das minhas colegas, além de que as minhas entidades empregadoras foram muito compreensivas. É preciso frisar que eu estava a recibos-verdes, pelo que não conseguia, simplesmente, ficar de baixa. Tive de tomar medicação, para recuperar do desgaste. A lição que aprendi foram os sinais, os alertas a que tenho de estar atenta para me proteger: o deixar de apetecer ler, o sentir náuseas antes de pegar num trabalho, o dormir pouco. Não sou a única a quem isto sucedeu. muitos outros colegas aprenderam da mesma maneira.
Um psicólogo também sofre, e isso não tem ser um tabu. Certo?
Sim… [pausa].
Mas…
Mas também contactamos com a criatividade do ser humano. Temos acesso a características tão bonitas, como a capacidade do ser humano em ser resiliente, ter força e esperança. Quando vemos um paciente a sair de uma situação muito difícil e surge um brilho nos seus olhos, a vontade para fazer coisas, isto enche a nossa alma e também nos dá força para continuar o nosso trabalho.