Há uma cena emblemática no filme “A Queda” (“Der Untergang”, 2004), onde Adolf Hitler, já cercado no bunker de Berlim, continua a dar ordens e a mover divisões que, na realidade, já não existem. A sua perceção do mundo e do que ainda é possível fazer não corresponde à realidade. O Führer derrotado prefere acreditar em ilusões, rejeitando os factos até ao último momento.

O paralelo com a Alemanha contemporânea é evidente. Durante os anos de Angela Merkel (2005-21), o país estagnou sob uma estabilidade aparentemente inquebrantável, mas os desafios que se acumulavam foram ignorados. Agora, muitos alemães sentem-se cercados não por tropas inimigas, mas por uma narrativa de declínio e ameaça existencial, impulsionada pelo medo da imigração e pela crise económica. Como no bunker, há uma parte do eleitorado que se agarra a soluções simplistas e dirigentes que prometem restaurar uma grandeza perdida. O populismo, como a ilusão de Hitler nos seus últimos dias, é uma resposta emocional à frustração, mas não uma solução real.

A Alemanha enfrenta, assim, um dilema crucial. Perante a desilusão, há dois caminhos possíveis: pragmatismo reformista, que reconheça os erros do passado e proponha soluções concretas; ou recurso ao populismo, que se alimenta do ressentimento e fabrica inimigos internos para justificar o próprio fracasso. Como a História já ensinou, seguir a ilusão nunca termina bem.

Na última semana, ao interagir com diversos cidadãos alemães, tornou-se-me evidente uma profunda desilusão em relação aos governos recentes e, em particular, aos políticos que os lideram. Embora os mandatos de Merkel tenham sido marcados por uma estabilidade inegável, é verdade que reformas essenciais foram negligenciadas e investimentos cruciais adiados. A Alemanha, país que sempre valorizou a estabilidade como alicerce, parece ter ignorado que o resto do mundo continuou a avançar, promovendo mudanças necessárias que, hoje, colocam a economia alemã numa posição de retaguarda.

Além desta desilusão generalizada, há uma perceção ainda mais alarmante a emergir: a ideia de que os alemães estão sitiados por um grupo de vândalos e criminosos islâmicos que, em silêncio, procuram destruir o seu modo de vida. Histórias e notícias falsas proliferam, levando eleitores anteriormente moderados a alinharem-se com discursos populistas e radicais, profundamente perturbadores. Há uma tendência crescente para generalizar e estigmatizar todos os que buscaram refúgio na Alemanha, fugindo de guerras ou perseguições políticas.

É inegável que ocorreram problemas e erros reconhecíeis na admissão de muitos dos que pediram asilo durante o período em que Merkel decidiu abrir as portas sem controlo rigoroso. No entanto, também é certo que muitos indivíduos se radicalizaram na própria Alemanha, não tendo chegado com ideologias extremistas. Até setembro de 2024, foram registados cerca de 160 mil pedidos de asilo, uma redução de 22% em relação ao ano anterior. Desde o início da guerra na Ucrânia, o país acolheu cerca de 1,4 milhões de refugiados ucranianos. Existe, acima de tudo, um défice significativo na integração a todos os níveis. Muitos alemães, influenciados por notícias falsas e afirmações infundadas, justificam comportamentos e opiniões que carecem de qualquer base empírica.

Outra perceção preocupante é a do “voto silencioso”. Indivíduos que, embora não declarem em público o seu apoio à Alternativa para a Alemanha (AfD) para evitar serem rotulados de nazis, adotam argumentos semelhantes aos do partido. Afirmam não apoiar populismos, mas defendem que a União Democrata-Cristã (CDU) não terá a coragem necessária para as mudanças que consideram essenciais. Este discurso é frequentemente proferido por pessoas com pouco conhecimento político ou da realidade, pertencentes à classe média-alta.

Entre os jovens, há uma sensação de indecisão quanto ao voto. Desejam um Governo forte que se oponha firmemente à AfD, mas não sabem como as coligações poderão ser formadas. Neste contexto, sente-se uma inclinação para o “voto útil” no que parece ser o partido mais votado nas eleições. É certo que o Bundestag (câmara baixa do Parlamento) enfrentará uma configuração política inédita. Um partido de extrema-direita com mais de 20% dos votos, uma CDU incapaz de governar sozinha e possivelmente “entalada” entre dois blocos: um da própria extrema-direita, outro de esquerda, que pode incluir forças de extrema-esquerda como A Esquerda. O parceiro preferencial e histórico da CDU, o Partido Liberal Democrata (FDP), corre sério risco de ficar de fora, mas, se estiver no parlamento, integrará o próximo Executivo.

Acontecimentos recentes, como o atropelamento deliberado em Munique, que resultou em mais de 30 feridos, intensificam o clima de tensão. O suspeito, afegão de 24 anos com antecedentes criminais, foi detido. Este incidente lançou uma sombra sobre o debate televisivo entre os principais candidatos, onde a migração e a segurança dominaram as discussões. Tais ocorrências podem aumentar o “voto silencioso”, com eleitores inclinados a apoiar partidos que prometem medidas mais rígidas de segurança e controlo migratório.

Merkel, numa rara manifestação pública, criticou Friedrich Merz, líder da CDU, por ter contado com votos da AfD para aprovar uma moção parlamentar exigindo regras de imigração mais rígida. A ex-chanceler considerou “equivocado” que Merz se desvinculasse do compromisso de não formar maiorias parlamentares com a AfD, enfatizando a importância de os partidos democráticos trabalharem juntos sem recorrer a manobras táticas.

Os alemães, com o seu pragmatismo característico, parecem prontos para seguir em frente. O partido já trilha outro caminho. A era Merkel terminou e a CDU que ela moldou pode estar perto do fim. As eleições dirão o futuro da direita moderada, mas será uma CDU muito à direita e muito longe da social-democracia ou da democracia-cristã de Mutti.

A guerra na Ucrânia acrescenta nova incerteza ao já instável panorama político alemão. Donald Trump manteve conversações com Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky, propondo o início imediato de negociações de paz, o que gerou apreensão na Europa. A Alemanha, um dos principais pilares do apoio ocidental a Kiev, vê a sua posição fragilizada perante um possível novo alinhamento dos Estados Unidos.

A possibilidade de reaproximação entre Washington e Moscovo levanta dúvidas sobre o futuro da segurança europeia. O vice-presidente americano, J.D. Vance, após reunir-se com Zelensky em Munique, reforçou que os europeus devem assumir maiores responsabilidades na defesa do continente. Para Berlim, isto representa um desafio num momento de crescente instabilidade interna e ascensão da extrema-direita.

A Alemanha enfrenta uma encruzilhada. Manter posição firme contra a Rússia ou adaptar-se a uma nova política americana põe em causa o seu papel na segurança europeia. Num momento em que a ordem global parece cada vez mais incerta, a resposta alemã será decisiva para o futuro do continente. O que está em causa nestas eleições não é apenas a formação do Governo, mas a identidade política da Alemanha nos próximos anos. Entre a ilusão e a realidade, a escolha será decisiva.