Aos poucos, algumas mulheres vão chegando à entrada do Tribunal de Juízos Cíveis de Coimbra e percebem que algo não está como esperavam. “É aqui?”, questiona uma delas. “É, mas…”, continua outra. São surpreendidas pela decisão de suspensão da sessão da tarde desta sexta-feira, aberta ao público, que opunha Boaventura de Sousa Santos e quatro das 13 mulheres que assinaram uma carta aberta que revelava uma série de comportamentos e assédio por parte do fundador do CES (Centro de Estudos Sociais). Passam alguns minutos das 14h e, no placard eletrónico com as sessões marcadas para o dia, continua a informação: ‘agendada’. No entanto, a audiência nunca chegou a acontecer.

O Expresso conseguiu confirmar que a sessão foi suspensa ao final da manhã por “questões técnicas”, após um encontro das partes logo ao começo do dia para uma tentativa de conciliação, que não se concretizou. A juíza Isabel Alves deu dez dias a ambas partes para resolverem “as questões técnicas”. Ficou ainda decidido que quando a sessão acontecer já não será, como até agora estava previsto, de acesso público. A magistrada responsável pelo caso entendeu que não se aplica o princípio da publicidade, ou seja, na próxima sessão, ainda sem data marcada, não será permitida assistência.

O princípio da publicidade consagra o direito de “assistência, pelo público em geral, à realização do debate instrutório e dos atos processuais na fase de julgamento”, mas “não é absoluto”.

Em reação à decisão, ao Expresso, a defesa das quatro mulheres disse acreditar “na Justiça e que o tribunal está a seguir os trâmites normais”. “Entendemos que este processo, pela sua natureza urgente e célere, não será o adequado à discussão destas matérias”, disse a advogada Lara Roque Figueiredo. “A discussão deve ser feita de forma séria e respeitosa para com as vítimas e o silenciamento destes casos não nos serve enquanto sociedade”, acrescenta.

Contactada pelo Expresso, a defesa de Boaventura de Sousa Santos recusou prestar declarações.

“Se não pudermos entrar, ficaremos à porta”

“Avisaram as colegas que traziam os cartazes?”, pergunta a mulher de casaco de lã laranja, que chegou apressada à entrada do tribunal, convencida de que já estava atrasada para a sessão. Estavam preparadas e organizadas para assistir ao julgamento. “O objetivo era prestar apoio, mostrar solidariedade e mostrar-lhes que estamos aqui.”

Depois de algum tempo, troca de histórias e de experiências - algumas das quais relacionadas com violência de género -, segue cada uma o seu caminho, despedem-se na expetativa de se voltarem a encontrar em ocasião semelhante dentro de pouco tempo. “Se não pudermos entrar, ficaremos à porta.”

Este era o primeiro encontro em tribunal entre Boaventura de Sousa Santos e parte das mulheres que denunciaram comportamentos inapropriados e situações de assédio por parte do catedrático ao longo de vários anos e sistematicamente. Não estando, neste julgamento, em causa as alegadas condutas do professor, mas uma ação cível para tutela da personalidade, proteção da honra e bom nome de Sousa Santos.

O que está em causa?

A ação movida por Boaventura de Sousa Santos é contra quatro das 13 mulheres que assinaram uma carta aberta, onde denunciam alegadas situações de “assédio moral, sexual, abuso de poder e extractivismo intelectual no CES” durante 20 anos. A carta em causa é a primeira em que as mulheres saíram do anonimato e revelaram as identidades.

Em causa estão ataques ao direito ao bom nome, imagem e à honra.

No ano passado, surgiram as primeiras suspeitas públicas de má conduta sexual e assédio laboral, após a publicação de um texto assinado por três investigadoras de pós-doutoramento e estudantes de doutoramento cujo único ponto em comum no currículo era o CES. Foi evidente que o principal acusado era Boaventura Sousa Santos, e o próprio admitiu que o texto era sobre si.

Foi então constituída uma comissão independente para investigar que, em março desde ano, concluiu que houve “padrões de conduta de abuso de poder e assédio”, embora nas 114 páginas do relatório, os nomes de Boaventura ou do assistente não sejam referidos.

“Da análise de toda a informação reunida, bem como das versões entre as pessoas denunciantes e pessoas denunciadas que foram compatíveis entre si, indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”, pode ler-se nas conclusões do relatório que vinca ainda: mesmo com “a documentação apresentada e as audições realizadas” não foi possível “esclarecer indubitavelmente a existência ou não da ocorrência de todas as situações comunicadas”.

O relatório dá conta de 32 denun­ciantes, a maioria do género feminino (78%) e estudantes de doutoramento ou investigadoras (57%). Há 14 pessoas denunciadas, com diferentes graus de envolvimento. Em 27% dos casos trata-se de situações de cariz sexual (8% abusos e 19% assédio), tendo sido consideradas “assédio moral” 28% das queixas e 27% “abuso de poder”.

Alguns dos relatos são de “toques indesejados em partes do corpo como coxas, nádegas e zonas genitais” ou “relações sexuais com pessoas em posições hierárquicas inferiores enquanto estas se encontravam sob efeito de substâncias (ex.: álcool) e sem condições plenas para prestar consentimento livre e esclarecido”. Há denúncias de “contacto corporal não autorizado e desadequado”, “beijos húmidos e demorados” e “propostas de relações íntimas, sugerindo ou não ganhos secundários”.

Em reação, na altura, Boaventura de Sousa Santos disse estar tranquilo, explicando que a ausência de nomes no relatório final da comissão independente servia para constatar que não há “acusações diretas”. “Pessoalmente, estou mais tranquilo hoje do que estava há um ano. Nunca esperei uma absolvição das suspeitas que sobre mim pairaram porque, efetivamente, nunca fui confrontado com acusações concretas de abuso de poder ou de assédio - como, aliás, o próprio documento agora atesta”, disse.