
Investigadores de todo o mundo estão a trabalhar numa ideia que há poucos anos parecia ficção científica: criar modelos digitais de células humanas com recurso à Inteligência Artificial. O objetivo é ambicioso e ainda está longe de ser alcançado, mas os primeiros passos já estão a ser dados por instituições como a Chan Zuckerberg Initiative (CZI), o Arc Institute, o Google DeepMind e várias universidades de topo, incluindo Stanford.
Os cientistas chamam-lhes "células virtuais": modelos criados por Inteligência Artificial que conseguem prever como uma célula real reage a determinados estímulos, como alterações genéticas ou a ação de medicamentos.
Se forem bem-sucedidos, estes modelos poderão revolucionar a forma como se fazem experiências científicas - testando hipóteses em computadores, antes de recorrer a células vivas.
"A nossa meta é que a biologia celular passe de 90% experimental e 10% computacional para o contrário", afirma Stephen Quake, diretor científico da Chan Zuckerberg Initiative , citado pela revista Nature.
Para já, a ideia ainda está nos seus primórdios, mas o "tiro de partida" já está dado, a ideia atraiu um intenso interesse de laboratórios académicos e industriais de todo o mundo:
- A Chan Zuckerberg Initiative (CZI), uma organização sem fins lucrativos que desenvolve ferramentas de dados abertos, planeia investir centenas de milhões de dólares na criação de células virtuais na próxima década.
- A Google DeepMind, em Londres, também tem um projeto de célula virtual, anunciou o seu diretor executivo, Demis Hassabis, no início deste ano.
- o Arc Institute lançou a primeira competição pública de células virtuais, com 100 mil dólares em prémios, a desafia equipas a construir modelos capazes de prever o comportamento celular. Atlas
Apelo a um esforço global para a criação da primeira célula virtual
Um grupo de investigadores da Universidade de Stanford, do Genentech e da CZI publicou um artigo na revista Cell onde propõe uma colaboração internacional em grande escala para desenvolver a primeira célula humana virtual baseada em IA.
Comparam esta ideia ao Projeto Genoma Humano, que poderá um dia permitir aos médicos simular tratamentos personalizados em "gémeos digitais" dos seus pacientes.
"Modelar uma célula humana pode ser considerado o Santo Graal da biologia", disse Emma Lundberg, professora associada de bioengenharia e patologia nas escolas de Engenharia e Medicina de Stanford e principal autora do artigo na revista Cell.
A investigadora sublinha que as ferramentas de IA atuais permitem "aprender diretamente com os dados, sem depender de teorias ou palpites, para descobrir as propriedades emergentes de sistemas biológicos complexos”.
Os autores propõem que o modelo ideal seja universal e capaz de simular em computador o comportamento de diferentes tipos de células e tecidos humanos.
Competição internacional já arrancou
Para acelerar os progressos, o Arc Institute lançou a primeira competição pública de células virtuais, com um prémio de 100 mil dólares para o melhor modelo. Os dados para treino incluem mais de meio bilião de células e 300 perturbações genéticas distintas.
Os participantes devem prever como as células estaminais humanas reagem quando certos genes são silenciados.
"A capacidade de generalizar para novos contextos celulares é essencial para desbloquear o potencial das células virtuais", afirma Dave Burke, diretor tecnológico do Arc Institute .
A competição visa também estabelecer critérios comuns para avaliar os modelos, algo que ainda falta na área.
Um percurso que ainda é longo
Há alguns investigadores a alertar que os atuais modelos de IA ainda falham quando confrontados com novos dados e que o conceito de "célula virtual" é demasiado vago e ainda sem uma definição clara.
“Esta é uma tarefa gigantesca. O que é possível e necessário agora é ter os primeiros projetos pioneiros que mostrem que isto pode, em princípio, funcionar ”, afirma o biólogo molecular Jan Ellenberg , citado pela Nature.
O cientista é o diretor do Laboratório Ciência para a Vida, uma organização nacional de investigação em Solna, na Suécia, e colidera o projeto de modelo de célula virtual do laboratório, chamado Alpha Cell, que será lançado em 2026.
Se a aposta nas células virtuais for bem sucedida, a investigação biomédica poderá tornar-se mais rápida, barata e personalizada. Mas, para já, trata-se de um projeto a longo prazo.
"Os modelos ainda não estão prontos. Mas os biólogos também ainda não estão prontos para os modelos", admite Stephen Quake.