
Luisa despertou, há 10 anos, em Chitima, entre choros e gritos de vizinhos. Mais de 200 pessoas, 75 das quais perderam a vida, sofreram uma intoxicação após consumirem "pombe", bebida tradicional que continua "cultural" no interior de Tete.
"Despertei com o choro das pessoas e fui lá ver o que se estava a passar. Disseram-me que pessoas estavam a morrer por causa de pombe. Foi muito triste. Foi como um massacre", conta à Lusa Luisa Domingos, uma professora da Escola Primária de Chitima que viveu a tragédia que se abateu sobre a vila, a quase 147 quilómetros da cidade de Tete, a capital provincial.
Os primeiros relatos daquilo que viria a ser descrita como a "tragédia de Chitima" começaram na madrugada de 10 de janeiro de 2015, quando a unidade de saúde local começou a receber dezenas de doentes com sintomas semelhantes.
Mais de 200 pessoas tinham consumido, ao regressarem de um funeral, pombe produzida com uma farinha de milho contaminada com uma bactéria designada "Burkholderia gladioli", um micro-organismo responsável pela produção de duas potentes toxinas na farinha, revelaria, meses depois, o Ministério da Saúde.
Luisa carrega ainda hoje na memória as lembranças de quem teve de prestar os primeiros socorros às vítimas da tragédia na sua vizinhança durante aquela madrugada.
"Houve entre as vítimas crianças (...) Aqui há um hábito: por vezes as mães que estão a amamentar vão para esses locais para beber pombe. Uma delas, que nem bebia, foi lá experimentar [a bebida] com o bebé dela e ela também acabou perdendo a vida", lembra.
No total, segundo dados oficiais divulgados na altura, 232 pessoas adoeceram após consumirem a bebida, 75 das quais acabaram por perder a vida, numa tragédia que levou o Governo a decretar três dias de luto nacional e a criar uma equipa multissetorial para investigar as causas.
Hoje, mais de 10 anos depois, o pombe "sobreviveu" à tragédia de Chitima e continua a ser consumido em quase todos os pontos daquela vila no interior do distrito de Cahora Bassa, apesar de a tragédia continuar viva na memória coletiva da província.
"É uma questão cultural. É uma coisa nossa. Nós consumimos porque gostamos", explica à Lusa Jecksen Faz-tudo, 22 anos, consumidor assíduo de pombe em Chitima.
É tarde de domingo em Chitima e, embora até pense nas aulas do dia seguinte, Jecksen escolheu juntar um grupo de amigos para "prestar culto" a uma “tradição”: tomar pombe.
No quintal de uma entre as várias casas de venda e consumo de pombe, no centro de Chitima, Jecksen e os seus amigos confraternizam, ao som de música local alta, bebendo, do mesmo copo, como determina a tradição, a mesma bebida que um dia esteve na origem da pior tragédia que a vila conheceu.
"É uma coisa saborosa, embora cause danos colaterais -- não visíveis num período imediato (...) a bebida sobreviveu", frisa o jovem consumidor, de copo na mão.
O fabrico simples, envolvendo apenas farinha de milho e água, tornou o negócio atrativo para quem vende e também para quem consome, já que só com cinco meticais (0,06 cêntimos de euro) já se "toma um copo".
"A bebida dos estabelecimentos comerciais eu não consigo comprar. Mas com pombe, com 20 meticais (0,26 cêntimos de euro) ou 30 meticais (0,40 cêntimos de euro) eu estou satisfeito (...) Não há bebida mais importante que pombe. É a nossa cultura", frisa Raul Antonio, outro consumidor, sentado num grupo de homens mais velhos que consomem a bebida no mesmo quintal.
É uma "cultura" que não conhece idades nem classes, juntando, em quintais de venda e consumo, as diferentes facetas que compõem as comunidades do interior daquela província localizada no centro de Moçambique.
"A nossa bebida é mesmo esta, matando ou não, esta é a nossa bebida", diz Raul Antonio, minutos antes de mais um gole da bebida que, há 10 anos, deixou Chitima de luto.