
O oeste da Síria tem sido palco de violência e execuções em massa de civis, sobretudo da minoria alauita, na sequência de ataques cometidos por apoiantes do Presidente deposto Bashar al-Assad contra as novas forças de segurança.
"Estes ataques resultaram na morte de 231 membros das forças de segurança até 9 de março", segundo o Comando de Operações Militares do novo governo através do seu canal oficial Telegram, citado pela Human Rights Watch (HRW) que, por sua vez, fala em “centenas de mortes”, incluindo famílias inteiras
O Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH) relatou a 11 de março que "foram mortas pelo menos 803 pessoas entre 6 e 10 de março de 2025, incluindo 39 crianças e 49 mulheres".
AVISO: IMAGENS VIOLENTAS
Clã Assad e minoria alauita
A minoria alauita está intimamente associada ao clã Assad que dela emergiu e governou a Síria durante mais de meio século, reprimindo de forma sangrenta uma revolta popular em 2011 que degenerou emguerra civil.
Estima-se que existam na Síria 1,7 milhões de alauitas, cerca de 9% da população. Pertencem a um ramo do Islão xiita e os grupos jihadistas sunitas consideram-nos hereges.
Durante a guerra civil de 13 anos, estiveram dominaram o exército e as forças paramilitares que reprimiram de forma sangrenta os opositores, a grande maioria provenientes da comunidade muçulmana sunita.
Da Al-Qaeda a líder do HTS
O Presidente interino, Ahmad al-Chareh, ou Ahmed al-Sharaa, que liderou o grupo radical islâmico sunita Hayat Tahrir al-Sham (HTS - Organização de Libertação do Levante) sob o nome Abu Mohammed al-Jolani, antes de assumir o poder em dezembro, prometeu processar os responsáveis pelo “derramamento de sangue civil” e formou uma comissão independente de inquérito.
O que se passou a 6 de março?
De acordo com relatos dos sobreviventes, testemunhos recolhidos pela AFP e os elementos recolhidos pelas organizações de direitos humanos, homens armados têm-se envolvido num verdadeiro frenesim de violência desde 6 de Março contra civis alauitas nas localidades costeiras onde se concentra esta minoria muçulmana.
“Os dias de violência contra as comunidades étnicas maioritariamente alauitas da Síria incluíram a execução sumária de famílias inteiras – incluindo mulheres e crianças”, afirmou a 11 de março o porta-voz dos direitos humanos da ONU, o ACNUDH.
A ONU disse ter recolhido testemunhos de que os autores dos massacres “realizaram rusgas às casas, perguntando aos residentes se eram alauitas ou sunitas antes de os matar ou poupar, dependendo da sua resposta”.
Uma testemunha citada pela Human Rights Watch (HRW) disse que viu um homem, a sua mulher e os seus dois filhos serem forçados a sair de casa e alinhados em frente a um muro antes de serem baleados numa aldeia alauita na região de Latakia.
Um residente de um bairro alauita da cidade de Banias disse à AFP que os combatentes reuniram todos os homens do prédio do seu irmão no telhado antes de os executarem.
Quem são os responsáveis?
Não tem sido possível atribuir a responsabilidade a um grupo específico.
Os combatentes vieram de Idlib (noroeste), um antigo bastião do HTS, mas também de zonas mais a leste controladas pelos representantes de Ancara.
O HTS e as forças aliadas foram dissolvidas pelas novas autoridades e integradas nas novas forças de segurança.
Segundo explica a AFP, há pelo menos três grupos que migraram para as zonas alauitas: “grupos sírios (..) que recusam a autoridade de Damasco, “senhores da guerra, com parte das suas tropas, que se juntaram ao projeto de um novo exército sírio, nomeadamente as fações pró-turcas, e grupos de jihadistas estrangeiros”.
Os jihadistas estrangeiros incluem “quirguizes, uzbeques e tchetchenos que foram expulsos da região no início de janeiro de 2025 pelas novas autoridades, a fim de acalmar a situação na costa”.
Para a HRW, “todos os grupos, incluindo o HTS e o Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia, que constituem agora as novas forças de segurança da Síria, devem ser responsabilizados pelas atrocidades”.
“A responsabilização pelas atrocidades deve incluir todas as partes, incluindo grupos como o Hay’et Tahrir al-Sham e o Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia, que constituem agora as novas forças de segurança da Síria. Estes grupos têm um historial bem documentado de abusos dos direitos humanos e violações do direito internacional”.
A razão de ter acontecido agora
Desde a queda do regime de Bashar al-Assad, a 8 de dezembro, a coligação liderada pelo grupo radical islâmico sunita Hayat Tahrir al-Sham (HTS) e pelo presidente interino, Ahmad al-Chareh, procura estabelecer a sua autoridade sobre todo o território.
A 6 de Março numa aldeia de maioria alauita na província de Latakia, a violência escalou após a detenção de uma pessoa procurada pelas forças de segurança. A situação degenerou rapidamente em confrontos quando homens armados da minoria muçulmana alauita, que as autoridades descreveram como homens leais a Bashar al-Assad, abriram fogo sobre várias posições das forças de segurança.
O Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH) relatou “execuções sumárias” que visavam principalmente civis da comunidade alauita, avançando que "pelo menos 1.225 civis, a grande maioria alauitas, foram mortos às mãos de forças de segurança e grupos afiliados”, sobretudo nas províncias de Latakia e Tartus.
Sunismo e xiismo, um cisma religioso com 14 séculos
No mundo muçulmano, do norte de África à Indonésia, o sunismo e o xiismo, com derivações, constituem as duas grandes correntes do Islão, a primeira seguida por mais de 80% dos cerca de 1,5 mil milhões de crentes.
O cisma entre estas duas correntes religiosas tem origens remotas, na sequência da morte do profeta Maomé em 632 (século VII), na atual Arábia Saudita, um país que permanece a grande referência do sunismo na sua estrita variante wahabita.
Disputa pelo título de califa, o sucessor e representante de Maomé
Os xiitas consideram Ali, marido de Fátima, genro e primo do profeta, como o sucessor legítimo de Maomé e definem como ilegítimos os três califas sunitas que lhe sucederam na liderança da "comunidade dos fiéis".
A disputa pelo título de califa, literalmente o sucessor e representante do profeta Maomé, está assim na origem da fratura, que se prolonga há quase 14 séculos, para além de uma interpretação diversa dos textos do Alcorão, o Livro Sagrado.
O sunismo (de 'sunna', os preceitos baseados nos ensinamentos de Maomé), que prevaleceu maioritário nas suas diversas expressões, sugeria genericamente que qualquer fiel poderia ser o sucessor do profeta após o necessário consenso entre a comunidade islâmica.
O xiismo (o "partido de Ali"), defendia pelo contrário a sucessão "dinástica", uma linha sucessória, apesar de no islamismo clássico não existir o conceito de hierarquia.
O período de expansão do Islão, em particular em direção a oriente, coincide com as lutas intestinas pelo poder político-religioso, que desembocam numa guerra civil quando o terceiro califa sunita (Otman Ibn Affan, do clã dos omíadas) é assassinado em 656 por um rival, também sunita.
A corrente xiita considerou este atentado como a oportunidade para impor Hussein, filho mais novo de Ali e Fátima e neto de Maomé, na liderança do califado.
Hussein dirigiu uma rebelião para impedir que o califa sunita Yazid assumisse o trono. A rebelião foi esmagada na batalha de Kerbala (no atual Iraque) e o líder xiita degolado. Ainda hoje, a Ashura, que celebra o assassinato de Hussein, constitui uma das mais pujantes e penitentes manifestações religiosas do xiismo.
Quatro países com maioria xiita
Atualmente existem apenas quatro países com maioria de população xiita: o Irão, principal referência sobretudo após a revolução islâmica de 1979 (93,6%), o Iraque (66,92%), o Bahrein (74,29%) e o Azerbaijão (85%).
O xiismo está ainda presente de forma significativa no Iémen (45%) - um país onde a Arábia Saudita se envolveu na guerra civil e tem combatido os houthis xiitas -, no Líbano (43,59%), com destaque para o poderoso movimento xiita radical Hezbollah, que esteve ao lado das forças do Presidente Bashar Al-Assad (da minoria alauita, uma derivação do xiismo), no Kuwait (30%), ou na Turquia (21%), através da minoria alevita, outro ramo desta corrente religiosa.
No Afeganistão e no Paquistão, o xiismo é seguido respetivamente por 19,3% e 24% dos crentes. Na Arábia Saudita, constituem cerca de 15% da população.
Jihadistas radicais reclamam-se do sunismo
Os grupos jihadistas mais radicais reivindicam-se do sunismo, incluindo a Al-Qaeda e o grupo extremista Daesh(autodenominado Estado Islâmico), além do Hamas, a formação palestiniana fundamentalista que domina a Faixa de Gaza e está em guerra com Israel.
Muitas destas correntes têm merecido o apoio político e financeiro da Arábia Saudita, a grande referência do sunismo no mundo árabe.
Hoje, o grande confronto entre sunismo e xiismo decorre em três países: Iraque, Síria e Iémen, com o envolvimento das duas grandes potências regionais, Arábia Saudita e Irão, que apoiam os dois campos em confronto, e num contexto de intervenções militares externas.
No Iraque, a maioria xiita, no poder e com a complacência iraniana, tenta opor-se à rebelião dos sunitas, em particular aos avanços do Daesh (sunita), com registos de represálias e graves abusos dos direitos humanos sobre as populações civis cometidos de parte a parte.
A Síria também se tornou palco de uma guerra civil que durou 13 anos (março de 2011 a dezembro de 2024) entre o Governo de Bashar al-Assad, dominado pela minoria alauita (proveniente do xiismo), e a miríade de grupos rebeldes sunitas, mais ou menos fundamentalistas, num país com maioria de população sunita.
No Iémen, os Houthis impuseram regras sociais e religiosas muito rigorosas. São um grupo armado de uma corrente da minoria muçulmana xiita do Iémen, o zaidismo. O nome vem do fundador do movimento, Hussein Badreddin al-Houthi.
Os Houthis (ou formalmente Ansar Allah, Ajudantes de Deus, em árabe) formaram-se como um movimento na década de 1990 para lutar contra a marginalização de que a sua comunidade zaidita afirmava ser vítima, num país predominantemente sunita e para combater o que consideravam a corrupção do então Presidente, Ali Abdullah Saleh.
Os zaiditas atingiram o seu apogeu no norte do Iémen com o estabelecimento de um “imamat”, regime político liderado por um imã, no século IX, que foi mantido até o século XX.
A crescente e determinante intervenção de diversas potências numa região que também sempre foi alvo da cobiça dos impérios europeus, que a retalharam entre si após a I Guerra Mundial, mas também dos Estados Unidos é ainda outro fator determinante, em particular pelas divisões que continua a acentuar entre estas duas fações religiosas do Islão.
Com agências e Enciclopédia Britânica