
A história conta-se rápido e eu sinto muita vergonha pelo modo como, no meu país, instituições estão a tratar estas pessoas. Singh (vou usar este nome) trabalha há dois anos e meio numa empresa portuguesa de engenharia e construção, do norte do país. Tem um contrato sem termo, permanente. Paga todos os meses as suas contribuições para a segurança social, o seu empregador também. Constrói e requalifica estradas. Muitos de nós já percorremos certamente caminhos e autoestradas asfaltadas por ele.
Sexta-feira recebi o alerta por um amigo comum: o Singh estava “detido”. Como assim?, pensei. Por que razão? Quem me fez chegar a informação explicou que, quando a polícia o foi “buscar”, esclareceu que “não havia crime”, mas ele teria de seguir com as autoridades. Ficou preso no “Centro de Instalação” na rua Barão Forrester, no Porto. Ainda lá está.
O Singh não tem ainda autorização de residência, apesar de ter feito o requerimento na AIMA há mais de dois anos, de ter contrato sem termo e de pagar contribuições à Segurança Social desde fevereiro de 2023. Como tantos outros trabalhadores migrantes está “irregular”, mas não por sua responsabilidade. Como milhares de outros companheiros, o Singh trabalha, cumpre os seus deveres para com o Estado, solicitou os documentos corretamente, mas o Estado, o mesmo Estado que o reconhece para receber as suas contribuições, não respeita os prazos que a lei portuguesa define para lhe responder e dar documentos. Esperou uma eternidade até ter uma primeira decisão, que chegou em março deste ano - e o pedido vinha indeferido. Razão: ter uma menção no Sistema de Informação de Schengen (que não tem natureza criminal!). Do que as autoridades portuguesas se esqueceram foi de fazer o que a lei e o regulamento europeu obrigam: contactar o Estado que havia feito essa menção. O Singh apresentou os seus argumentos e o processo está em análise. Vai-se ao site da AIMA, põe-se o número do processo e somos informados disso mesmo: não há decisão final. É preciso continuar a aguardar. E no entanto, o Singh foi privado da sua liberdade.
Na segunda-feira, ao fim do dia, estive à porta do “Centro de Instalação Temporária”, em quase tudo semelhante a uma prisão para imigrantes, gerido pela PSP. Além daquele nome pomposo, o CIT tem outra designação orwelliana: “Unidade Habitacional de Santo António”.
Procurámos falar com o Singh, para perceber o que se passava. Sem sucesso. Não nos deixaram entrar nas instalações. O único interlocutor era um vigilante de uma empresa privada, que não tinha autonomia para tomar decisões e que nos disse o que sabia e podia. Lá dentro, o Singh comunicou aos funcionários que queria receber a minha visita e a de outros elementos da associação Solidariedade Imigrante. É um direito dele, mas ficámos sem resposta. “Envie mail”, disse-me o vigilante. Agradecemos e seguiu o correio eletrónico. Nenhuma resposta.
Eram nove da manhã de terça-feira e estávamos de novo nas instalações da AIMA, já com a presença de uma advogada. Queríamos perceber como é que alguém que não cometeu nenhum crime está privado de liberdade. Falámos com o técnico da AIMA, que, sem acesso ao fundamento da detenção, explicou que quando há indeferimento, mesmo que isso não corresponda a nenhum crime, os processos vão para a secção de delitos criminais. Remeteu-nos para a PSP. Chamámos a PSP. O comandante ouviu os nossos argumentos e, reconhecendo o direito do Singh de falar com quem o pudesse defender, desde logo a sua advogada, deixou-nos entrar. Estou certo que se ali à porta estivessem apenas os outros dois companheiros do Singh, também eles indianos, dirigentes associativos e conhecedores da lei, ainda agora estariam do lado de cá do portão.
Lá dentro, é o que se sabe. A “Unidade Habitacional” pouco difere de uma prisão. Mesmo que os “presos” não estejam ali por crime algum. “O indivíduo é calmo e colaborante”, “apresentou o seu passaporte”, diz o relatório. Retiraram-lhe a pulseira e um fio que tinha ao pescoço, os poucos bens pessoais que tinha consigo, os 27 cêntimos que trazia no bolso. Em contrapartida, o chefe da polícia entregou-lhe uma toalha, um sabonete, um champô, um par de lençóis, um cobertor. E Singh ficou detido, mesmo que, tal como foi informado, não haja cometido qualquer crime.
Teve direito a um intérprete, que não falava punjabi. Assinou vários documentos. “Mas leste-os? Sabes o que diziam?”, procurámos saber. “Não, não sei”, explicou. O interrogatório e a decisão do juiz são extraordinários. Como o Singh está irregular e houve um indeferimento, foi convidado a abandonar voluntariamente o país. Como apresentou recurso e disse que não pretendia abandonar Portugal, foi preso no Centro de Instalação. Acontece que apresentar recurso e não abandonar o país não é motivo para ser detido: não constitui nenhuma ilegalidade mas apenas uma fase normal do processo. Então, qual o argumento utilizado pelo juiz? É o facto de haver “risco de fuga do país”. Preso por ter cão e por não ter! Singh trabalha cá, tem contrato permanente, não quer sair do país, pediu os seus documentos, explicou por que devem ser deferidos. E está detido porque as mesmas autoridades que o acusam de não cumprir o alegado “dever de abandono” do país invocam o “risco de fuga” para o prender.
Mas há mais: o juiz refere ainda, no seu despacho, a “utilização ilegal da sua força de trabalho pela empresa onde trabalha”. A empresa, sugere-se, poderia estar a utilizar “atividade de cidadão estrangeiro em situação ilegal”. Sucede que Singh não está numa situação ilegal, mas sim irregular por não haver uma decisão final da AIMA. E a empresa não utilizou de forma ilegal a sua força de trabalho, na medida em que lhe fez um contrato, declarou o empregado ao Estado e à Segurança Social, paga mensalmente o salário e o subsídio de refeição, desde o início de 2023, e as contribuições relativas a este trabalhador. A empresa fez tudo legal: cumpre as obrigações, declara o trabalho prestado. O único incumpridor é o Estado: não regulariza os documentos, não respeita os procedimentos e privou um cidadão de liberdade sem fundamento plausível.
Acredito que o Singh não ficará muito mais tempo no “Centro de Instalação” de imigrantes, porque a inconsistência de tudo isto é tão profunda que, com a intervenção da advogada, presumo que se resolverá brevemente. Mas entretanto está isolado, preso, sem poder comparecer ao seu trabalho, sem poder cumprir os seus deveres perante a empresa (que também sai prejudicada) por ser disso impedido pelo Estado. Agora é crime ser trabalhador estrangeiro?
Sinto uma profunda vergonha pelo modo como o Estado português está a tratar estas pessoas. Pela forma como estamos a humilhar quem não cometeu nenhuma falta e faz tudo para se regularizar. Pelo modo como as autoridades administrativas atropelam os mais básicos procedimentos. Como se pressiona as forças de segurança para terem comportamentos de milícia contra imigrantes. Como a própria justiça pisa direitos elementares. Como se passou a um ambiente de criminalização política dos trabalhadores imigrantes, vulnerabilizados pelo seu isolamento, perseguidos pelas ilegalidades do Estado, feitos sacos de pancada de um governo que não tem soluções para combater a desigualdade. Sei que este é o país sonhado de Ventura, que triunfa ao impor ao governo-sombra de Luís Montenegro a sua agenda xenófoba. Mas não hão-de transformar Portugal nisto. Não pode ser. Nós não temos de ser isto e somos melhores que isto. Quero crer que a maioria dos portugueses não quer ser parte desta vergonha. O caso do Singh é só um, provavelmente entre tantos outros. Mas indigna-me e sinto o dever de gritar, também por ter a convicção de que não estarei sozinho.