Há dançarinas no palco vestidas à cheerleaders americanas, entretidas com pulos e danças e pompons nas mãos enquanto esperam a descida dos participantes. Cada um tem direito a uma entrada triunfal, escolhem uma canção para lhes dar boleia além da providenciada por dois musculosos guarda-costas, bouncers de corpo insuflado, auricular no ouvido e cara de mauzão, não vá uma das milhares de pessoas encafuadas no Alexander Palace, uma das icónicas arenas de Londres carinhosamente endereçada como ‘Aly Paly’ por estes dias, soltar um pouco mais a trela ao entusiasmo que tudo naquele espaço convida a ser exacerbado.
Há duas semanas que a entrada dos protagonistas em cena nos Mundiais de dardos motiva uma apoteose a roçar o descontrolo, como se estivessem a descer para lutar num ringue, mas sem o olhar compenetrado ou as faces de ‘vou-te comer vivo’. Nem os figurinos. Neste mundo paralelo que dura desde 15 de dezembro, muitos dos competidores tem linhas curvas, desenhadas em bastantes deles pelo excesso de peso e poucos aparentam, à vista desarmada, serem atletas vindos da típica convenção que se faz de um desportista, não necessariamente aplicável a quem tem de estar a 2,37 metros do alvo e lançar setas pontiagudas para tentar fazer decrescer uma pontuação de 501 até ao zero.
Neste universo germinado dos bares britânicos, da cultura pub e do bebericar de cerveja, as 96 estrelas dos Mundiais têm alcunhas, é uma regra. Michael Smith escolheu ser o “Bully Boy”. O australiano Damon Heta condizentemente é o “The Heat” e há dias interrompeu o seu jogo para se vidrar, em conluio com o público, no adepto que dava conta, num só trago, um copo de meio litro do líquido preferido do anfiteatro. O único português que esteve em prova, José de Sousa, optou por apelar à familiar portugalidade enquanto “The Special One”. Finalmente, no desfecho desta sexta-feira, o “Mighty Mike” tentará intrometer-se no trilho do “The Nuke” rumo à aclamação.
Isto enquanto há gente, muita mesmo, mascarada nas bancadas com alvos de dardos na cabeça, ou trivialmente de Homem-Aranha e Wally, além dos grupos vestidos à mariachi, só porque sim. Disfarces à parte, a arena tenta conter pessoas eufóricas a unirem-se em cânticos preparados para os jogadores e banhadas a jarros de cerveja que se acumulam nas mesas.
O derradeiro duelo da prova vai opor Michael Van Gerwen, neerlandês calvo de cabeça, com 37 anos e três vezes campeão mundial que corteja a histeria na suas entradas em cena com o Seven Nation Army, tema dos White Stripes, contra o fenómeno dos dardos, responsável por catapultar o mediatismo da modalidade bem para fora da cultura pub: o adolescente Luke Littler e o seu precoce dom para acertas com setas onde deseja que em 2023 já o tinham levado à final da competição, com 16 anos. Ganhe ou perca desta vez, a sua influência nos dardos está incontrolável.
Muito por causa dele, o rapaz que se empanturrava em fast food, batidos de leite e pacotes de batatas fritas após ganhar duelos no torneio anterior - mas que entretanto garantiu estar a cuidar com outras pinças da sua alimentação -, a Sky Sports registou no transato Mundial de dardos as suas maiores audiências televisivas de sempre, a seguir aos jogos de futebol, no Reino Unido. Em 2024, apenas Catherine, a Princesa de Gales, e Donald Trump, reeleito presidente dos EUA, superaram Luke Littler nas pesquisas feitas no Google britânico. “Nem acredito que apareci antes do primeiro-ministro [Keith Stamer] e do Rei Carlos”, disse o prodígio.
No embalo de “absoluta confiança” em que afirmou estar logo após a vitória na meia-final deste Mundial, o rapaz sem idade para se agarrar a um volante tem a segunda oportunidade seguida de elevar os decibéis do ‘Aly Paly’ à loucura já costumeira deste palco. Ganhando, será o campeão mais jovem de sempre, bem abaixo da média de idades dos anteriores (38 anos) e duplamente desfeiteador de Michael Van Gerwen, detentor dessa proeza - tinha 24 anos, em 2014, quando era visto como um talento precoce. Agora é um dos cavaleiros da velha guarda a agarrar-se ao púlpito, como tantos outros, recorrendo à trash talk e leviandade de linguagem igualmente habituais nos dardos.
O vernáculo nas conferências de imprensa não é incomum, ao contrário do decoro em evitar expressões mais corriqueiras. “Tenho bolas de aço. Talvez nas casas de apostas eu seja o underdog, junto dos fãs também, mas vou continuar a lutar”, opinou Van Gerwen acerca das suas hipóteses contra o fenómeno, banalizando outra referência para a qual ainda menos pudores haverá. Falou em apostas, afinal, o Mundial chama-se Paddy Power World Darts Championship, com uma empresa dessa área de negócio estampada bem no nome da competição.
Na fotografia que tem fixada na sua página do outrora Twitter, hoje X, o neerlandês aparece a rasgar um sorriso malandro com uma mão a agarrar no pescoço de Luke Littler, como que a asfixiar o risonho adolescente, ambos na brincadeira. Foi publicada em outubro, finda uma pesada derrota (1-6) sofrida contra o prodígio. No ciclónico clima dos dardos, Van Gerwen é o último obstáculo por diante do fenómeno que tem vídeos, nem com idade para ir à escola, já a atirar setas ao alvo com uma camisola da seleção inglesa de futebol. Quem vencer leva um prémio de pouco mais de 600 mil euros. Seja agora ou mais tarde, “The Nuke” já move loucuras.