No centro da defesa, Tiago Djaló olhava para o lado e via Otávio, era dupla de centrais inédita. A meio-campo estava Vasco Sousa, titular quatro meses depois, sem contar com os 15 minutos em que foi um falso titular de um jogo retomado a meio, na Choupana, por causa do nevoeiro. Lá à frente, o galifão Deniz Gül, estranho a isto de jogar de início desde outubro, só com os seus 360 minutos feitos esta época. Atrás dele começava Fábio Vieira, um dos meninos-bonitos do Dragão, talentoso até dizer chega, mas visado por um dos últimos atos de Vítor Bruno e ostracizado pelo treinador despedido. Também começou Gonçalo Borges, visto como um ocasional agitador para usar a partir do banco nas mais de 70 aparições que tem pelo FC Porto.

O que era exatamente suposto aprendermos com esta miscelânea, este sortido inesperado, escolhido por José Ferreirinha Tavares, até há dias coordenador da formação do clube, agora promovido a treinador interino da equipa principal? Era o finca-pé do Ipiranga de um homem a prazo, para deixar marca? Seria uma tentativa de extrair algo, o que fosse, de uma equipa vinda de quatro derrotas seguidas? Ou uma forma de ir buscar energia aos renegados, provando a quem aí vem que há qualidade em quem tem vivido nas sombras?

À primeira vista, a última hipótese ganharia a distinção de mais inusitada, mas não era descabido pensar que a justificação para esta amálgama poderia ser essa mesmo.

Afinal, no alto de um Estádio do Dragão sob um calvário dos céus, encharcado pelas chuvas além de inundado pela instabilidade, estava Martín Anselmi. Com as persianas dos olhos semicerradas, talvez ainda banhado pela diferença horária para a Cidade do México, o próximo treinador do FC Porto assistiu da tribuna ao estrambólico que acontecia lá em baixo no relvado: um jogo alheio a qualquer indício de estabilidade, cheio de faltas, jogadas de curta duração, passes falhados e precipitações dos dragões, que mais do que uma equipa eram um emaranhado de jogadores sem um nexo a ligá-los. A adequarem-se, no fundo, às últimas horas de quem em breve se juntará a eles.

Porque ainda não eram 7 da manhã de sexta-feira quando, do aeroporto de ‘dê-éfê’ - como os mexicanos dizem DF para mencionarem o Distrito Federal, que é o cognome da capital do país -, Anselmi se preparava para embarcar num avião e recebeu, no e-mail, uma carta do Cruz Azul, a ordená-lo que se apresentasse ao trabalho; ele desdobrou-se em telefonemas para agentes e advogados, ignorou o chamamento ao contrário de dois dos seus adjuntos, apanhou o voo e foi cercado por jornalistas na chegada à escala em Madrid; depois, antes de aterrar no Porto, já circulava nas redes sociais um vídeo a mostrar o quarto de hotel que o esperava, enfeitado com adereços do clube.

ESTELA SILVA

Era toda uma novela mexicana, apimentada por peripécias várias: dizem os jornais mexicanos que o diretor-desportivo do Cruz Azul, entretanto sumido, aceitara uma proposta de €3 milhões do FC Porto pelo treinador, mas o clube alega que a sua cláusula vale €5 milhões; que a diferença de valores depende de o clube português ser considerado, ou não, um “tubarão europeu”; que não foram devolvidos telemóveis e computadores; que ainda não há qualquer acordo.

No entanto, eis Martín Anselmi a provar a chuva no Dragão, a ver a futura equipa sofrer um golo de canto (33’), impávida e aos papéis, com os jogadores a gesticularem mutuamente após Gabriel Silva rematar, perto da marca de penálti, uma bola já quase na relva.

Num lance, o reflexo da primeira parte. O FC Porto existiu aos repelões, despido de qualquer lógica, sem uma alma que colocasse alguma calma na equipa. Quando o tentava, Alan Varela, único a emanar um esgar de querer fazê-lo, era assobiado pela impaciente falange nas bancadas. O desgosto dos adeptos afunilava para assobios, apupos que empurravam os jogadores a olharem para a frente. Houve um remate brutal do médio argentino de longe. Outro de Galeno, rasteiro, que Gabriel Batista também defendeu. Quando Deniz Gül desperdiçou a baliza escancarada dois metros à sua frente, desviando um cruzamento de João Mário com a anca, contra o poste, os tons do ruído foram desesperantes.

Não se pode esticar o dedo da falta de coragem a quem teve a cair-lhe no colo as consequências de o FC Porto ser o 12.º clube, em 18, a trocar de treinador neste campeonato. De fatiota e engravatado, José Ferreirinha Tavares tirou um médio para ter a genica de Rodrigo Mora no ataque, deixando Alan Varela, no miolo, apenas com a ajuda de Fábio Vieira, pouco dado a labores sem a bola. Por outro lado, manteve a tresloucada contradição que é uma equipa, por decreto, dever e estatuto, ter de jogar para controlar os adversários, atacar com Gonçalo Borges e Galeno nas alas. Com eles, a bola é uma urgência, qualquer jogada fica logo submetida à pressa.

Nessa qualidade o brasileiro correu atrás de um passe de João Mário, na área, para o guarda-redes o derrubar e ser penálti. Era um vislumbre de boas notícias no Dragão. O próprio Galeno ajeitou a bola na marca, correu como lhe é querido, rematou com força e a tentativa bateu, com estrondo, no poste. O etéreo atuou então naquele instante: a tabela no ferro fez a bola ir rápido bater num jogador à beira da área, em quem o ricochete a levou depois direitinha às mãos de Gabriel Batista - o guardião que mergulhara para o lado oposto da baliza.

E o barulho nas bancadas soava a mais do que desesperança, era quase cólera.

Protetor zeloso da sua vantagem, o Santa Clara de granito, feito por Vasco Matos de coesão defensiva e organização sem a bola, preferia guardar o seu último reduto. A quarta equipa com menos golos sofridos no campeonato baixava as suas linhas, contentava-se com isso, não era vista a atacar. Mais raro ficou quando Matheus Pereira foi expulso (81’) e no estádio ecoar a segunda manifestação de alegria. Pouco antes tivera a primeira, algo inesperadamente, mas sempre no desnexo característico da noite: num livre que Varela cruzou, em balão, para lá do segundo poste, Otávio disputou a bola em condições avesas a sair dali um remate. A sua cabeça fê-la sobrevoar o guarda-redes para o empate (76’).

Sobrava tempo. O ímpeto urgente do FC Porto encostou os açorianos à área, era uma equipa refém de cruzamentos insistentes dos laterais e dos lançamentos de Fábio Vieira. Precipitava-se assim contra o adversário, espremido em 30 metros ou menos. Antes da expulsão já tinha sido encostado e agora os portistas tentavam tudo, de qualquer forma. Diogo Costa aventurava-se perto dos centrais, de onde também chutar bolas para a frente, instintivamente praticando o que dizem ser os gostos do futuro treinador. O grunhido das bancadas, grave e bem sonoro, ouvia-se a cada passe que não andava para a frente. O Dragão era um palco de surreais incoerências, de assobios a batizarem uma equipa já de si instável sem eles.

ESTELA SILVA

Neste frenesim de impulsos, cheio de desordem e vontades sem dono, seria um recente contribuidor para a distopia em que vive o FC Porto a provocar a possibilidade de salvamento. Já depois de Tiago Djaló dar uma sapatada de longe contra o poste, o revoltado Pepê, autor de uma publicação nas redes sociais a criticar Vítor Bruno pouco antes do seu despedimento, usou Galeno como parede, correu ao seu encontro para recolher a bola e tão rápido o fez que Gui Rodrigues o rasteirou na área. O jogador com um processo disciplinar em cima a resgatava uma hipótese de a equipa sobreviver a isto, ao que quer que isto fosse.

O penálti, já nos descontos, foi assumido pelo mais corajoso, valentia só podia ser o que movia agora Galeno quando, pouco antes, falhara um pontapé igual. A sucessão de acontecimentos não o beneficiou. Com essa tonelada em cima, o brasileiro desta feita acertou na baliza, mas o seu remate rasteiro foi adivinhado por Gabriel Batista, guarda-redes que se esticou na relva sem agarrar a bola. Galeno tinha uma segunda chance, ou seja, uma terceira, para na recarga se redimir e aplicar um pronto-socorro ao FC Porto. O remoinho das pressas, de tantos sobressaltos, fê-lo rematar essa ressaca ao lado da baliza. Ficou pasmado, descrente no que acabara de acontecer.

Se há som para a incredulidade, então foi escutado no Dragão durante os segundos seguintes. Não eram assobios, nem gritos, tão-pouco apupos. Era um ruído abafado, como se o estádio tivesse dentes e os tivesse cerrado enquanto tentava falar.

Diogo Cardoso

Esta noite para o FC Porto acabou com um empate, ao menos melhor do que as quatro derrotas seguidas que trazia. Lá no alto, André Villas-Boas clamara aos céus, os braços abertos para o ar, quando o saltimbanco penálti não entrou. Mal o jogo terminou, Martín Anselmi abandonou logo o lugar na tribuna à vista das câmaras. Mais demorado foi Galeno a destapar a cara com a camisola, desalentado com o que o atormentará por algum tempo. Mais tempo se teve de esperar para o conhecido silvo a que os adeptos recorreram deixar de envolver o relvado: houve assobios até ao último dos jogadores da casa abandonar o campo.

Na estrambólica existência recente do FC Porto, desabituados a dias e noites destas, sem treinador e com as intermitências de um presidente ainda novo, esse som, essa reação, era algo que todos conheciam. Além de toda a azáfama recente, nunca os dragões tinham cedido um ponto que fosse na sua história, em casa, contra o Santa Clara. Este jogo teve sentido único, mas nunca pareceu fazer sentido. Com o quinto encontro consecutivo sem ganhar, ficam a meia dúzia deles da liderança do Sporting no campeonato.

Que lição haverá a retirar do que aconteceu? De tudo o que se tem passado? Os adeptos também não saberão, por isso assobiaram. Porque esta distópica existência portista é estranha às suas gentes.