Foi no Auditório Sul da Feira do Livro de Lisboa que, no último Sábado,14, um público diversificado — em gerações, nacionalidades e interesses — se reuniu para assistir à apresentação da versão em português do livro “A Armadilha do Auto-Engano. Uma visão crítica das relações entre África e a Europa”, da autoria de Carlos Pinto Lopes.

Com várias obras publicadas, o antigo secretário-geral adjunto das Nações Unidas descreve este livro como “o desabafo guardado no peito” de tudo aquilo que não conseguiu materializar durante a sua passagem pela ONU. Nomeado para o cargo em 2003 por Ban Ki-moon, Carlos Lopes foi reconduzido em 2012, assumindo durante anos um papel de destaque na diplomacia e na reflexão sobre o futuro do continente africano.

Nesta nova obra, o autor — licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa e mestre em Planeamento Ambiental e Ordenamento do Território pela Universidade Nova de Lisboa — propõe uma leitura crítica da complexa relação entre Europa e África, desde os primórdios até aos dias de hoje. Um exercício de confronto entre o passado colonial, as heranças económicas e políticas, e as armadilhas ideológicas que persistem.

Apaixonado pelo pensamento de Amílcar Cabral, Carlos Lopes evoca o líder histórico da Guiné-Bissau e Cabo Verde para sustentar algumas das suas reflexões. “As experiências que vivi não podiam ser explicadas apenas pelas teorias económicas ou políticas. A psicologia ajudou-me a perceber que o maior problema está nas mentalidades”, referiu.

A obra disseca a questão das relações euro-africanas, evidenciando como, ao longo das décadas, tanto europeus quanto africanos se deixaram aprisionar num ciclo de percepções, narrativas e autoilusões. “Cheguei à conclusão de que há boas vontades que provocam desastres. É um auto-engano dos dois lados”, afirmou o autor.

“Foi a frustração que me obrigou a escrever este livro. Era preciso tirar esta dor do peito”

Do lado europeu, aponta a perpetuação de uma narrativa baseada no altruísmo cristão e na caridade como justificativa para políticas de desenvolvimento que, na prática, alimentam dependências e travam transformações estruturais. “Transforma-se caridade em teoria de vantagens comparativas e caímos numa armadilha”, sublinhou.

Por outro lado, em África, segundo Carlos Lopes, prevalece a ilusão de que o progresso se faz por via da ajuda externa. “Não há registo histórico de países que tenham alcançado desenvolvimento transformador através de ajuda ao desenvolvimento”, alertou, recordando que, apesar de 60 anos de independências e de assistência financeira internacional, a estrutura económica dos países africanos mantém-se quase inalterada, assente na exportação de matérias-primas.

O autor denuncia também o uso de dados e percepções distorcidas sobre o continente. “Há uma tentativa permanente de minimizar África, sustentada por informações sem rigor e ideias pré-formatadas. Isso, em psicologia, chama-se autoengano”, observou.

Numa intervenção marcada pela franqueza, Lopes reconheceu que as suas ideias perturbadoras foram alvo de resistência tanto na Europa quanto em África. “As pessoas não eram contra o Carlos Lopes, mas sim contra as ideias que incomodavam. E muitos africanos acomodaram-se a um sistema que não é transformador”, declarou.

A apresentação contou com as intervenções do escritor Nelson Saúte e da jornalista Carla Adão. Publicada originalmente em inglês, “A Armadilha do Autoengano” chega agora ao público lusófono, com edições previstas para breve em francês, catalão e outros idiomas, segundo promessas do autor, que actualmente é também professor na Mandela School of Public Governance, da Universidade de Cape Town, na África do Sul.

“Foi a frustração que me obrigou a escrever este livro. Era preciso tirar esta dor do peito”, confidenciou Carlos Lopes, antes de iniciar a sessão de autógrafos.