O “Family Business Day” é um evento organizado pela Universidade Católica Portuguesa centrado nos negócios familiares e na sua importância no tecido empresarial nacional. A iniciativa, que é anual, teve este ano a sua 3ª edição, tendo decorrido no Auditório E&Y da Católica-Lisboa. A organização coube à docente Liliana Dinis (investigadora em empresas familiares na Católica Lisbon School of Business and Economics), coadjuvada por alunos seus de mestrado.

O mote foi “The Truth Behind Family Business: Myths vs. Facts” (“A verdade por detrás das empresas familiares: Mitos vs. Factos”).

No encontro participaram líderes de algumas das mais relevantes empresas familiares portuguesas, como a MEXT – Mota Engil, Casa Mendes Gonçalves, Porcel, Grupo Nabeiro e Riberalves, bem como académicos e especialistas, para uma análise ao que caracteriza este setor.

Alguns dos tópicos debatidos andaram à volta de algumas dicotomias com as quais as empresas familiares se deparam como tradição/inovação; continuidade/disrupção; gestão familiar/outsourcing profissional; ou o estilo de governação mais distante/próxima.

E, claro, a inevitável continuidade do negócio, feita através da sucessão hereditária ou da venda dos ativos a terceiros, foi também abordada.

Liliana Dinis, professora da unidade curricular Mastering Family Business da Católica-Lisbon e responsável por esta iniciativa, explica que “o evento visa questionar ideias pré-concebidas que habitualmente acompanham as empresas familiares, como a resistência à mudança, os conflitos intergeracionais ou a alegada vantagem competitiva. Ao reunir líderes empresariais, académicos e especialistas, o encontro propõe-se desmontar mitos e confrontar estereótipos, promovendo uma conversa franca sobre os desafios e as oportunidades reais que moldam o universo das empresas familiares”.

Filipe Santos (Dean da Católica-Lisbon) enfatiza o facto de as empresas familiares, que “são a espinha dorsal da nossa economia”, terem uma orientação do negócio distinta de outro género de empresas mais viradas para a apresentação de resultados no curto prazo: “As empresas familiares colocam o seu foco mais a longo prazo”, tomando decisões para um futuro mais distante, pensando “nas gerações seguintes”: “Isso muda a perspetiva do negócio e a orientação dos investimentos”, salienta o Dean da Católica-Lisbon.

“Algo que diferencia a empresa familiar é o enraizamento com a comunidade. As empresas familiares são fatores de desenvolvimento das regiões onde se inserem”, diz Felipe Santos (Católica-Lisbon).

“Algo que também diferencia a empresa familiar é o enraizamento com a comunidade”, sendo “fatores de desenvolvimento das regiões onde se inserem”. Para Filipe Santos, no contexto atual de lutas comerciais entre blocos económicos e políticos (EUA, UE, China), em que cada nação procura captar investimentos que beneficiem o seu tecido económico e dar mais protagonismo aos centros de decisão nacional, o tema das empresas familiares adquire ainda mais relevo: “No contexto geopolítico atual de mundo fragmentado, faz diferença termos uma empresa portuguesa ou europeia, por exemplo. Cada vez interessa mais a nacionalidade da empresa, pois as decisões são tomadas no sentido de irem ao encontro do interesse deste ou daquele bloco”. E as empresas familiares, sublinha o Dean da Católica-Lisbon, “são veículos deste desejo de desenvolvimento a favor de termos centros de decisão nacionais”.

Dando o exemplo da Mota-Engil que tem mais de 50 mil colaboradores no mundo, Sílvia Mota, que lidera a Mext, empresa do Grupo dedicada à transformação do grupo, inovação, incubação e investimento, salientou nesta conferência que, quando as organizações familiares crescem, um dos desafios é “garantir que o espírito original da cultura da empresa se mantém”. Apesar da diversificação do negócio que pode ocorrer, é preciso “fomentar a cultura do grupo quando as organizações crescem” e “resgatar o espírito” fundacional. “Respeitar o legado e impulsionar a inovação”, é a ideia-chave que preside à Mext, explica Sílvia Mota, ela que é a terceira geração da família a chefiar o Grupo.

É preciso “resgatar o espírito” fundacional da empresa quando as organizações crescem”, afirma Sílvia Mota (Mota-Engil).

Felipe Santos afirma que “as grandes e melhores empresas são as que, ano a ano, vão inovando sistematicamente, tornando-se ‘best in class’”. E essa característica de saber adaptar-se e inovar é a que traz mais vantagens: “Entre uma inovação radical e uma capacidade de melhoria constante, esta última ganha”, sublinha o Dean da Católica-Lisbon para quem “isso é o que as empresas familiares fazem muito bem”.

Nesta lógica, Carlos Mendes Gonçalves, co-fundador (com o pai) da Casa Mendes Gonçalves, destacou que o título do seu cargo de liderança na Mendes Gonçalves tem tudo a ver com esta lógica de inovação permanente: Chief Executive Officer of Dream and Instability, algo como “Diretor Executivo de Sonho e Instabilidade”. De resto, quando todos faziam vinagre de vinho, a Casa Gonçalves nasceu, em 1982, para inovar e fazer diferente, apostando em vinagre de figo, valorizando um produto da região, o figo de Torres Novas. Quatro décadas depois, o negócio alargou-se à área de molhos e condimentos diversos, fruto de um departamento de Investigação & Desenvolvimento, com a Paladin – a marca bandeira da empresa – a afirmar-se como uma das marcas de temperos mais conhecidas em Portugal.

Felipe Santos, Dean da Católica-Lisbon: “Alinhar a gestão da empresa com os quadros e colaboradores une todos”.

Felipe Santos destaca “a importância do propósito para uma empresa”, pois não perder isso de vista “ajuda a tomar as decisões mais difíceis”. Felipe Santos entende até que é importante ter explícito esse propósito: “Por vezes, o propósito está implícito na forma como foi criado, mas não está explícito. É importante que a empresa familiar tenha estabelecido de forma clara qual o seu papel e “alinhar a gestão da empresa com os quadros e colaboradores. Isso une todos. E o propósito dá um cunho de ambição e leva a inovar mais e melhor”. Reforçando a sua ideia, o Dean da Católica-Lisboa declara que numa empresa “todos são importantes. Se não há um propósito claro, cada um puxa para o seu lado. Essa é a importância do propósito”.

“Enquanto empresa familiar, costumo dizer que planeamos para os próximos 430 anos!”, destaca Carlos Gonçalves (Casa Mendes Gonçalves).

Carlos Gonçalves, que é a segunda geração à frente da Casa Mendes Gonçalves, lembrou que cada geração que dá continuidade a um negócio tem sempre uma visão diferente e coloca a sua especificidade na empresa. Porém, independentemente da geração que assume o comando, “a gestão tem de ir no sentido de como vamos deixar o legado e de projetar o futuro de uma empresa, que no nosso caso tem 43 anos. Costumo dizer que planeamos para os próximos 430 anos!”. Neste espírito, Carlos Gonçalves lançou em abril deste ano a Fundação Mendes Gonçalves, tendo doado as suas ações à Fundação para que passasse ela a ser a dona da empresa Casa Mendes Gonçalves: “Doei as minhas ações porque planeamos muito além do negócio. Estamos na zona da Golegã e temos o supremo luxo de estarmos com as nossas gentes, na nossa terra, para criar impacto duradouro”. Carlos Mendes Gonçalves, que aos 15 anos de idade co-fundou a empresa com o seu pai, afirma que “agora sou eu que procuro que sejam as novas gerações a tomar a liderança, tal como eu tomei”. Para isso, diz, é preciso “passar conhecimento aos mais novos”, garantindo-se nessa transição “um equilíbrio com os mais velhos”.

Continuidade ou disrupção

O tema do passar o testemunho de pais para filhos esteve, igualmente, em foco nesta conferência. Ana Luísa Roque, Presidente da Porcel, empresa de porcelana criada em 1987 pelo seu pai, o Comendador Eng. Adolfo Roque, assume que “o legado da família foi a minha missão”, afirmando ter sentido o peso da responsabilidade de prosseguir esse legado: “Quando enfrentei pela primeira vez os colaboradores da empresa houve uma pergunta que pairou no meu espírito: ‘Como é que o meu faria?’”. Isto porque, reconhece, há um “receio dos colaboradores na mudança e um receio do que virá com a mudança de um novo líder”.

Ana Luísa Roque refere que “para ser reconhecida”, procurou na sua gestão “ter humildade, ouvir todos e aprender com quem tem experiência” para poder decidir.

Há um “receio dos colaboradores do que virá com a mudança de um novo líder”, indica Ana Luísa Roque (Porcel).

Para João Silveira, diretor das Farmácias Silveira, na sucessão das empresas familiares, a fonte de resistência também se sente da “geração acima e dos colaboradores da geração acima”, receosos de abrir mão daquilo que fundaram e construíram. Para João Silveira, “valores, propósito e missão é o mais importante numa empresa” para que não haja dissabores no futuro.

Gestão não familiar numa empresa familiar

No “Family Business Day”, organizado pela Universidade Católica de Lisboa, houve um painel dedicado às vantagens ou armadilhas de, numa empresa familiar, se optar por uma gestão não familiar. Esse painel contou com a participação de Dinis Cunha (International Markets Sales Director do Grupo Nabeiro) e André Oliveira (da sociedade gestora de fundos C2Capital, cujo objetivo é investir em equipas de gestão).

Para Dinis Cunha, que não pertence à família fundadora Nabeiro, o recrutamento de profissionais exteriores ao círculo familiar “é essencial para que o negócio encontre novos caminhos”, sendo, igualmente uma opção que faz sentido para ajudar as empresas a “ganharem dimensão e a se internacionalizarem”.

André Oliveira salienta que o cenário de uma gestão não familiar para uma empresa familiar coloca-se quando a empresa se depara com “uma ausência de sucessão, há conflitos entre os acionistas ou é útil o contributo de um gestor profissional para ajudar na transição, quando essa questão não foi planeada”. De acordo com André Oliveira, nas empresas familiares “ainda há resistência à abertura das empresas familiares a fundos de capital de risco”.

O sucesso para perdurar

Por seu lado, Tomás Champalimaud (Grupo Manuel Champalimaud) e Ricardo Alves (Riberalves) abordaram aquilo que ajuda a que um “family businesss” perdure no tempo. Na perspetiva de Ricardo Alves, para isso é determinante “ter clareza na missão, focada em números e em princípios”. Para Tomás Champalimaud, esse sucesso das empresas familiares passa pela existência de “um propósito comum entre os membros da família” e pela consciência de que “se está a tomar conta de algo que alguém antes de nós construiu e em relação ao qua não somos verdadeiramente donos, pelo que não podemos dispor desse património de forma irresponsável”. Nesse contexto, o “modelo de governance tem de ser sólido e competente”, sendo igualmente relevante não descurar o “investimento na inovação”.

“Nas empresas familiares, está a tomar-se conta de algo que alguém antes de nós construiu”, refere Tomás Champalimaud (Grupo Manuel Champalimaud).

Como ameaças à sobrevivência das empresas familiares, Tomás Champalimaud refere o risco de sucessão, o qual surge “quando a empresa cresce muito rápido e não há uma família a crescer” para sustentar esse crescimento. Tomás Champalimaud, neto do empresário António Champalimaud (1918-2004) que chegou a ser o homem mais rico do país, afirma que outras ameaças com as quais as empresas familiares se podem deparar são “quando a sucessão é feita com base numa disputa emocional de uma geração que não convive bem com outra”. No entendimento de Tomás Champalimaud, é igualmente importante que os donos das empresas familiares saibam avaliar quando “não têm perfil para ser CEO e precisam de contratar um CEO de excelência, passando a acionistas”.

Tomás Champalimaud considera que “uma empresa para perdurar como empresa familiar tem de ter um acordo parassocial” ou um “protocolo familiar” que estabeleça regras e obrigações entre os sócios, em relação aos mais variados temas, como garante da estabilidade e do bom funcionamento da empresa, algo que é especialmente adequado em contextos familiares, onde as relações pessoais se podem misturar com as profissionais. “É mais fácil gerir um negócio familiar se tivermos à nossa volta membros comprometidos connosco e com o nosso objetivo”, diz.

Nessa medida, Ricardo Alves acrescenta que “o principal desafio nas empresas familiares é falar abertamente sobre os temas: se concordam que a sucessão seja feita dentro da família ou fora; perceber se há condições para continuarem a liderar a empresa; se é necessário contratar um administrador profissional; se é necessário repensar o modelo de gestão se os resultados não forem atingidos”.

Em jeito de balanço, o “Family Business Day” mostrou que não há uma fórmula única para o sucesso das empresas familiares — mas há ingredientes comuns: propósito claro, capacidade de inovação, liderança consciente e, sobretudo, coragem para falar de temas difíceis. Entre legado e futuro, tradição e reinvenção, o desafio está em manter viva a alma da empresa enquanto se prepara o caminho para as próximas gerações.