Nos finais dos anos 1980 e início dos anos 1990, a restauração portuguesa era dominada pela tradição. Lisboa ainda oscilava entre casas formais — como o Gambrinus ou o Tavares Rico — e uma nova geração de espaços que começava, timidamente, a propor outra linguagem. O Pap'Açôrda, inaugurado em 1981 no Bairro Alto, foi dos primeiros a tratar a cozinha portuguesa com um olhar contemporâneo, informal e urbano. Em 1989, surgia o Alcântara Café, instalado num antigo armazém industrial junto ao Tejo, onde um jovem Vítor Sobral combinava técnica francesa, leveza e apresentação moderna, num restaurante cosmopolita, aberto para o mundo, que rendeu visitas de estrelas internacionais. O XL aberto em 1994, de Vasco Gallego, introduzia uma elegância clássica num registo de clube inglês, sofisticado, mas menos cerimonioso do que os salões tradicionais.

No Algarve, a restauração beneficiava do turismo internacional, em especial de origem alemã e britânica, que impunha padrões mais exigentes. Foi nesse momento que surgiu a primeira estrela Michelin da região, atribuída em 1995 ao Vila Joya, em Albufeira, pelas mãos do chef austríaco Dieter Koschina. Esta distinção marcou o início de uma nova era no sul do país, onde começaram a aparecer espaços de fine dining voltados para um público estrangeiro, onde a inovação era um reflexo externo e não uma vontade nacional.

No Porto, o cenário era mais fechado e conservador. A cidade vivia sobretudo de marisqueiras, tascas e casas regionais, com ementas fiéis a receitas robustas como tripas à moda do Porto, rojões ou bacalhau à Gomes de Sá. A francesinha, criada nos anos 1950, popularizada no restaurante A Regaleira e inspirada no croque-monsieur francês, consolidava-se como o prato icónico da cidade, servida noite dentro em cafés e cervejarias, tornando-se uma espécie de ceia ritual para operários, estudantes e boémios. A inovação era praticamente inexistente e os poucos que arriscavam, como Miguel Castro Silva, faziam-no de forma isolada e ainda longe do grande público.

Em 1995, ainda se marcavam jantares pelo telefone fixo e o email parecia uma coisa de ficção científica. Nessa mesma altura, o Porto ganhava um restaurante que desafiava o paladar tradicional da cidade ao mesmo tempo que Portugal dava os primeiros passos na Internet com o nascimento do SAPO. Trinta anos depois, o Cafeína e o SAPO resistem de forma elegante, só que um à mesa e outro na rede.

Ainda nem nos sentámos quando Vasco Mourão, o rosto por detrás de um dos primeiros grupos de restauração portugueses, que nos recebe à entrada, diz sem rodeios: “A ideia inicial era abrir um bar. Daí o nome Cafeína, que, para mim, não é um grande nome para um restaurante, mas foi pensado para ser um café/bar. Eu vinha desse mundo”.

O discurso desempoeirado e quase sem filtros mantém-se ao longo da refeição, numa mudança de assuntos vertiginosa. Vasco Mourão fala como gere: com pragmatismo, frontalidade e atenção ao que realmente importa. E a história do Cafeína é, invariavelmente, a história e as experiências do seu fundador.

O restaurador não tem pressa, nem ambição em abrir novos espaços – além do Cafeína tem o Terra, o Portarossa, a Casa Vasco, e o Lucrécia. “Não quero fazer novos projetos, quero melhorar estes”, começa por dizer.

Neste restaurante da Foz, há pratos que são lendas, como o Bife Wellington, há outros reinventados ao sabor do tempo, como o robalo com arroz de bivalves e algas, e há sobremesas que sobreviveram à reforma de quem as fazia, como o icónico bolo de chocolate cuja receita original se perdeu, mas o sabor ficou na memória dos clientes.

Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro
Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro Vasco Mourão créditos: Divulgação

Somos recebidos como se fôssemos habitués (já explicaremos a importância deste termo), mesmo sem o sermos. Não há poses, nem excessos. Receber bem, à moda do Porto, é saber pôr o outro à vontade. O restaurante pode ter evoluído para ícone da restauração portuguesa, mas Vasco Mourão manteve a atitude com que começou.

“Este restaurante tem muito a ver comigo”, diz, com a naturalidade que lhe é característica. “É um espaço de trato sóbrio, uma certa sobriedade que, de alguma forma, reflete a minha personalidade, um pouco masculino”. Ao longo destes 30 anos, que coincidem com os seus 60, o Cafeína acompanhou as várias fases da sua vida, refletindo a sua maturidade e visão. “Tenho a ideia de que conseguimos chegar a clientes cerca de dez anos mais novos ou mais velhos do que nós. Para mim, isso é um desafio, porque agora chego a pessoas de 50 e até aos 70 anos”.

Quando se pergunta se nota os clientes antigos a trazer filhos e netos, confessa que “a renovação é um tema”. O espaço, admite, autorrenova-se até certo ponto. No entanto, assume que agora há um esforço mais evidente da sua parte para continuar a chegar a novas gerações.

Mas há uma filosofia de base que nunca mudou: “Este restaurante foi feito para ter clientes dos 7 aos 77, isso sempre foi assim. E essa é uma parte do segredo da longevidade: ter cá pessoas mais novas, mais velhas, que voltam. Antigamente, nos primeiros 12 anos, havia movimento a toda a hora, porque o restaurante nem sequer fechava durante a tarde, por causa da parte de bar”, relembra.

Três décadas depois, essa longevidade alimenta-se agora de um olhar mais atento para o futuro. Os 30 anos do Cafeína servem de marco, mas também de pretexto para repensar formatos, refrescar ideias e consolidar uma renovação que não é só de espaço, mas também de públicos e maneiras de fazer. Sem ceder a modas passageiras.

Cafés ao relento, ideias à prova de chuva

Antes do Cafeína, havia esplanadas… e preocupações meteorológicas. No final dos anos 1980, Vasco já estava na restauração, andava pela Baixa do Porto e pela Praia da Luz, a tentar manter de pé projetos que viviam demasiado à mercê dos caprichos do São Pedro. Um deles era o Café na Praça, que ficava junto aos Clérigos, que hoje já não existe e onde foram erguidas as galerias comerciais. Já o Praia da Luz, como o nome indica, ficava de frente à praia da Foz, muito perto do local onde viria a abrir o Cafeína. Ambos tinham esplanada, bar, uma parte de restaurante, e a incerteza constante das quatro estações. “Na altura chovia mais do que chove hoje. Andava sempre desesperado com aquilo”, recorda. “Fazia 30 por uma linha para funcionar no inverno.”

Foi assim que nasceu a ideia de abrir um espaço mais protegido, mais constante, um negócio de inverno, como lhe chamou. Numa viagem à Alemanha, ficou com a imagem na cabeça de cafés acolhedores, ambientes mais escuros, com calor humano e pouca cerimónia. Quando surgiu a oportunidade de abrir um espaço em Nevogilde, no coração do bairro onde nasceu — “a farmácia, a igreja, a padaria, o centro é aqui” —, viu a hipótese de concretizar essa ideia, numa antiga casa de família que se assemelha a outras da rua. “Foi caríssimo”, recorda.

A primeira intenção era simples: um bar. Daí Cafeína, um nome curto, direto, mesmo que o próprio não o ache genial. “Hoje até há quem goste”, afirma.

Durante os primeiros 12 anos, até 2007, o Cafeína funcionava em dois tempos: restaurante de um lado, bar/cafeteria do outro. Mas tudo mudou com a chegada da nova lei do tabaco. Para cumprir a legislação, o lado esquerdo passou a ser zona de fumadores, o direito ficou para não fumadores. A solução revelou-se insustentável — para chegar à casa de banho, todos os clientes tinham de atravessar a zona de fumo, fossem fumadores ou não. Foi nessa altura que todo o restaurante foi convertido para não fumadores.

Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro
Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro créditos: Divulgação

Mais tarde, já depois da pandemia, e de uma breve mudança de mãos, fez-se uma obra profunda de renovação que durou ano e meio. “Se vissem como era, percebiam as mudanças. Mas a ideia foi mesmo essa: mudar tudo sem que parecesse que mudou”, explica, sobre o projeto da responsabilidade do arquiteto e amigo José Carlos Cruz. O projeto inicial do Cafeína teve a assinatura de Paulo Lobo, com quem trabalhou muitos anos, neste e noutros restaurantes do grupo.

Há um espaço novo no andar de cima que, na verdade, já estava pensado desde o início. Durante vinte anos serviu de escritório a Vasco Mourão, mas fazia parte do projeto original: um refúgio discreto, indicado para grupos pequenos, mais resguardado da azáfama da sala principal. Agora está finalmente a ser usado e embora a ideia, para já, seja mantê-lo assim, o restaurador admite que o futuro pode trazer novas abordagens. “Às vezes pode ter graça fazer ali em cima uma coisa mais gastronómica”, deixa escapar.

Receitas com memória e um pé no futuro

Quando abriu, a 1 de junho de 1995, o Cafeína tinha uma carta que, para os padrões da época, era claramente arrojada. “Tínhamos carpaccio numa altura em que ninguém sabia bem o que era aquilo”, recorda Vasco Mourão. A ousadia não vinha de uma sofisticação ostensiva, mas da introdução de salmão fumado, da presença de tártaros e saladas como prato principal, da forma como ingredientes e técnicas internacionais apareciam lado a lado com sabores portugueses. O espírito era irreverente, mas fundamentado, e a provocação estava nos detalhes: no empratamento, no ritmo do serviço, nos produtos frescos com cortes pouco comuns ou nos molhos, que contrastavam com a densidade da cozinha tradicional da Invicta.

Essa ousadia dos primeiros tempos marcou o tom. Tratava-se de impressionar e de alargar o paladar da cidade, desafiando o conservadorismo gastronómico portuense. Trinta anos depois, a carta continua a ser construída tentando um equilíbrio. “A nossa gastronomia mudou muito e temos de fazer um esforço para manter alguma distinção”, explica.

Mas os clássicos continuam lá, como o Bife Wellington, servido com esparregado, foie gras e cebolinhas, um prato de assinatura desde o primeiro dia, e um dos mais emblemáticos da casa.

Se algumas receitas se mantêm inalteradas, outras vão evoluindo. O robalo com arroz de bivalves e algas, por exemplo, é um prato reinventado com base em ingredientes familiares. Já o bacalhau, Vasco Mourão assume que a inspiração é no bacalhau à Conde da Guarda.

Nas entradas, o tártaro de atum dos Açores, introduzido em 2021, é um dos sinais mais visíveis de renovação e há espaço para pequenos gestos comemorativos, como a tosta de gambas “Cafeína 30 Anos”, que mantém o espírito da casa: pratos bem feitos, com produto de qualidade e uma mão segura.

Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro
Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro Tartaro de atum créditos: Bruno Calado

As sobremesas encerram a refeição com o mesmo cuidado. O bolo de chocolate é quase um caso de culto. Durante anos foi feito por uma senhora que se reformou sem partilhar a receita. “Tentámos replicá-lo, e ficou muito parecido, mas nunca ficou igual”, assume. O crepe queimado é inspirado numa receita do antigo Hotel Aviz, em Lisboa, assim como a mousse de chocolate que confessa Vasco Mourão, tem como referência uma outra igualmente mítica: a do Papa'Açôrda.

“Nunca tivemos um prato bandeira”, admite, pois “os pratos que se mantêm são os que os clientes foram escolhendo ao longo do tempo.”

O restaurante constrói-se assim: a partir de quem volta, não de quem passa. E foi com esse princípio que nasceu o menu habitué, uma proposta pensada, exclusivamente, para os clientes regulares da casa.

O formato é simples: um menu executivo ao almoço, mas que exige uma inscrição prévia. Porquê? Não se trata de atrair turistas, num restaurante que figura na lista de recomendados do guia Michelin, mas de recompensar a frequência e a lealdade, de quem volta. “Por opção minha, o cliente habitual é o mais importante”, reforça.

“Um restaurante não pode ser um cenário”, afirma ainda. A ideia, explica, é que não interessa parecer bonito se o que está nos bastidores não funciona. É talvez por isso que a cozinha do Cafeína foi pensada para impressionar, mas também para durar. “Isso obriga-nos a refletir sobre o nosso nível de serviço e qualidade”, enfatiza.

Camilo Jaña está na casa há anos. Vasco Mourão fala do chef com respeito e confia-lhe a execução da carta. Sabe que há consistência, e é isso que lhe interessa.

A carta muda de acordo com as estações, mas as alterações são pensadas, pontuais e alinhadas com o perfil da casa. A equipa segue o mesmo registo. Muitos estão ali há uma década ou mais, com rotinas bem afinadas, e uma ideia clara de como as coisas devem correr.

Nos primeiros tempos, a carta de vinhos do Cafeína foi alvo de críticas. A provocação chegou no final dos anos 1990, quando uma visita de jornalistas da Wine Spectator levou a uma crítica tão elogiosa quanto embaraçosa: consideravam o Cafeína um restaurante ao nível dos melhores de Los Angeles ou Nova Iorque, mas com uma carta de vinhos que consideraram “insignificante”.

“Li aquilo e pensei: têm razão”, recorda. Nessa altura, fez uma viagem a Nova Iorque. Entrou em vários restaurantes, observou o funcionamento das cartas e entendeu o que se exigia a um restaurante que quisesse ser levado a sério. Quando regressou ao Porto, começou a construir, devagar, um caminho diferente.

Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro
Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro Por ocasião dos 30 anos, foi lançado um tinto reserva Touriga Nacional créditos: Divulgação

Hoje, a carta de vinhos do Cafeína cresceu, ganhou estrutura e profundidade, mas mantém um equilíbrio. O próprio Vasco Mourão confessa-se apreciador de vinhos, sobretudo espumantes: “Vou todos os anos ao Millésime [evento de espumantes organizado na Bairrada], já não consigo passar sem aquilo”.

Um dos marcos dessa evolução é o vinho da casa: um Touriga Nacional do Douro, feito em colaboração com o enólogo João Matos.

“A crítica fez-nos crescer”, admite. E a carta atual é a prova disso, sendo um reflexo do tempo, da aprendizagem, e de uma ideia muito clara de que se um restaurante é feito para durar, a sua garrafeira também.

Vasco Mourão, o homem que não quis ser estrela ou pioneiro, apenas fazer bem

Vasco Mourão pode ser justamente reconhecido como uma das figuras fundadoras da restauração contemporânea em Portugal, não por uma estratégia deliberada de afirmação ou desejo de protagonismo, mas precisamente pelo contrário: pela naturalidade com que construiu um ecossistema inovador e coeso.

A vocação, no entanto, não foi imediata. “Eu estudei Direito. O meu pai era advogado, o meu avô era advogado, o meu bisavô era advogado, o meu irmão era advogado.” Diz isto com a franqueza que lhe é típica, reconhecendo um caminho que nunca foi realmente seu. “Andava a estudar Direito obrigado”, admite. O gosto pelos restaurantes apareceu, confessa, por causa do Papa'Açôrda. Foi graças a esse espaço histórico em Lisboa que começou a perceber o que o cativava verdadeiramente.

Ainda assim, o seu primeiro negócio foi uma agência imobiliária, aos 23 anos. Mas foi com o Praia da Luz, aberto em 1989, que percebeu que tinha vocação para o ramo da restauração. Ao partilhar a sua busca por um sentido profissional, recorda um conselho que lhe foi dado pela mãe: “Filho, ou tens veia para o negócio, ou tens de o vender.” E a verdade é que acabou por encontrar na restauração o seu propósito. “Finalmente percebi que tinha vocação para aquilo.”

Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro
Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro Vasco Mourão e Camilo Jaña créditos: Divulgação

Mas, as suas próprias palavras revelam uma aversão a rotulações. "Não é uma coisa muito intencional, eu sou um bocado avesso a isso", diz ao referir-se à ideia de ser um dos primeiros grandes restauradores portugueses, sublinhando que nunca teve a pretensão de liderar ou dominar o setor. Na sua ótica, o objetivo era ter restaurantes diferentes, que fossem complementares uns aos outros, localizados na mesma zona e pensados para o mesmo público, mas em momentos distintos da sua vida — com ou sem filhos, com amigos, para momentos festivos — e com preços diferentes. Algo que percebeu que tinha de fazer ainda enquanto proprietário do Praia da Luz: “É um modelo de negócio que obriga a alguma escala, senão não fecha a conta.”

Há em Vasco Mourão um pensamento estratégico, que alia a diversidade de experiências a um sentido quase doméstico de proximidade em que, enquanto gestor, “possa andar a pé de uns para os outros.” Chegou a abrir outros espaços no centro do Porto, mas acabou sempre por se voltar a concentrar na Foz.

Não tem problemas em afirmar que “nunca estive à frente de uma operação de sala, nem da cozinha”, mas que “estive, e estou, presente”, sendo que durante muitos anos tratava da escolha dos pratos, de arranjar receitas ou de fazer as compras. “Sempre almocei nos meus restaurantes. É uma coisa que faço desde o início e continuo a fazer. E os clientes habituaram-se a isso. Passam pela mesa, cumprimentam-me, vêm ter comigo, nem sou eu que vou ter com eles”, diz.

Confessa ainda que “um restaurante é um negócio muito chato” e essa honestidade ajuda a entender a sua filosofia de trabalho. Para compensar o peso da exigência diária da restauração, procura centrar-se no que diz ser a “parte gira”. “Aquilo que realmente acho que consigo fazer bem é um bom programa de decoração, trabalhar bem o que é luz, música e ambiente em geral. Se for a um restaurante qualquer a primeira coisa que eu sinto logo é o ambiente. Não preciso de falar com ninguém”, explica.

A prioridade que dá à atmosfera é tal que pode superar a importância da comida: “Se o ambiente não encaixar, a comida pode ser a melhor do mundo que já não vou voltar.”

Esta sensibilidade refletiu-se numa atenção constante aos detalhes. Os seus espaços evoluem continuamente, ainda que sem ruturas visíveis ou transformações abruptas. “Este restaurante teve uma grande mudança em 2021, mas foi sempre sofrendo atualizações e pequenas mudanças. Por exemplo, estas cadeiras já são o terceiro modelo diferente que temos aqui.”

Aponta ainda o exemplo da cor das paredes: “A cor foi mudando ao longo do tempo, já foi mais verde. Mas os clientes nunca se aperceberam”, refere, explicando que esses ajustes tinham como propósito “tentar ter mais claridade ao almoço, uma vez que este é, por natureza, um restaurante com um ambiente mais virado para o jantar.”

Para Vasco Mourão, essa evolução constante é essencial: “Um restaurante nunca pode ficar estático. Ciclicamente, tem de ter mudanças. As pessoas podem não se aperceber imediatamente, mas têm de sentir que a coisa evoluiu.”

Um segundo restaurante, a primeira lição

“Já sei qual é o sucesso do Cafeína”, disse-lhe uma vez o amigo e arquiteto responsável pela remodelação do restaurante em 2021, José Carlos Cruz, num momento “eureka”: “É a má acústica!” O arquiteto, relembra Vasco Mourão, almoçava muitas vezes sozinho e chegou a essa conclusão porque o espaço tinha permanentemente um barulho de fundo. “E pessoas como eu, que almoçam sozinhas, sentem-se acompanhadas”. Na remodelação, essa parte foi trabalhada.

Com a concorrência à espreita fez crescer o negócio. A oportunidade surgiu do outro lado da rua, quando um incêndio destruiu o restaurante Porto Fino, que na altura já mordia os calcanhares ao Cafeína. “Se não for eu, vem outro fazer-me concorrência. Então tenho de avançar”, pensou.

Nascia assim o Oriental, um projeto arrojado, “muito diferente” em tons de preto e dourado, com interiores da responsabilidade de Paulo Lobo. Como o nome indicava, propunha uma cozinha de fusão com forte inspiração asiática. O prato estrela era o sushi, ainda uma novidade na cidade – e arriscamo-nos a dizer, no país. Estávamos no ano 2000 e o risco compensou: o restaurante teve uma estreia fulgurante… mas tornou-se também um problema.

“O resultado? Trabalhava muito ao jantar, com clientes muito fidelizados. Ao almoço não trabalhava nada, e não era minimamente complementar deste”, admite.

Ao fim de quatro anos deste novo restaurante, o sucesso do Cafeína continuava a crescer, mas faltava-lhe uma válvula de escape. Os clientes que não conseguiam mesa não tinham alternativa dentro do grupo, já que o Oriental — com a sua cozinha de fusão e estética ousada — era um conceito demasiado distinto. Enquanto isso, começaram a surgir novos restaurantes a apostar no sushi, replicando a fórmula que o Oriental ajudara a introduzir na cidade. A concorrência apertava, e a pressão fez-se sentir.

Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro
Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro créditos: Divulgação

“Estava desesperado com os resultados. Até que um amigo me disse: ‘Um negócio tem várias pontas. Pega numa e leva mais para a frente’. Foi o que fiz.”. Tomou uma das decisões mais ousadas do seu percurso: mudar tudo. Em apenas 11 dias, transformou completamente o espaço, o conceito e a carta. Nascia o Terra, um restaurante mais na linha do Cafeína, que ainda assim tem sushi na carta, uma herança do espaço anterior.

E como reagiram os clientes à mudança? “Desatinaram completamente”, recorda, reconhecendo que, com o Terra aberto há mais de 20 anos, a transformação podia ter corrido muito mal. Foi uma das suas maiores lições. “Os clientes têm de sentir uma certa coerência, um certo conceito”, sublinha. “Isso entranha-se nas pessoas, que depois sentem aquilo como parte delas. É isso que as fideliza: sentirem que o restaurante é a sua casa.”

A viragem revelou-se determinante. O Terra trouxe estabilidade ao grupo e consolidou a identidade de uma marca que começou a ter vários rostos. Foi a partir desse momento que o “império” começou a ganhar forma. Vieram depois o Portarossa, a Casa Vasco, o Lucrécia. Espaços diferentes, com conceitos próprios e complementares, mas com uma raiz comum: a de serem lugares de consistência, onde se vai mais do que uma vez.

A parceria com Avillez e o regresso inesperado

Estávamos em meados de 2018 quando surgiram as notícias sobre a venda do grupo Cafeína ao grupo de José Avillez. O chef lisboeta atravessava então uma fase de expansão acelerada, com várias aberturas em Lisboa e uma nova aposta no Porto. O negócio avançou, e Vasco Mourão afastava-se, pela primeira vez em décadas, da gestão direta dos seus restaurantes.

Na verdade, não foi Avillez quem bateu à porta, foi Mourão quem procurou o chef. “Na altura pensei nas hipóteses, quem é que eu gostaria de ter como sócio em Portugal, e a primeira pessoa que me veio à cabeça foi o José Avillez”, recorda. O entendimento aconteceu e os dois anos de parceria correram bem. “Foi uma sociedade bastante feliz, porque nos demos sempre muito bem”, afirma.

Até que chegou 2020 e a pandemia. Com o fecho abrupto da restauração, em março, o contexto mudou. “A minha recompra foi decidida em menos de um mês após o encerramento total, por volta de 15 de março. Ainda nem havia layoff, não sabíamos o que vinha aí. Era tudo novo”, conta, evidenciando que a maioria de casos de covid-19 se concentrava na região Norte do país. O grupo de Avilez estava numa fase de grande estrutura e complexidade, e a pandemia tornou inviável manter o modelo existente.

“Pensei: lá vou eu outra vez.” E assim voltou, apesar de confessar que “na altura também não estava muito virado para aí, mas foi uma fase de salve-se quem puder”, e a recompra concretizou-se. “Eu decido rápido. Nem sempre bem, mas rápido. Prefiro mal e rápido do que andar a pensar na coisa. Mas aqui foi bem”, conclui.

Aliás, Vasco Mourão não tem senão elogios a endereçar ao chef. “É uma pessoa excecional, como não há outra em Portugal”, afirma com convicção, confessando que aprendeu bastante com a organização e gestão durante os anos de parceria. “Aprendi imenso, a organização dele é espetacular. Nem sei como é que ele consegue fazer aquilo com a vida infernal que tem”, remata.

Escola informal de chefs

Ao longo dos anos, o Cafeína não foi apenas palco de refeições, mas tornou-se também uma espécie de estufa de talentos culinários, um espaço onde vários cozinheiros hoje reconhecidos deram os primeiros passos ou definiram rumos importantes nas suas carreiras.

É o caso de Pedro Pena Bastos, hoje em fase de transição de projetos depois de ter deixado o Cura, restaurante do hotel Ritz, com uma estrela Michelin, no início do ano. Esteve dois anos no Cafeína, e foi ali que deu os primeiros passos na cozinha. “O Pedro Pena Bastos era um autodidata”, recorda Vasco Mourão em relação ao talento do então jovem chef.

Outro nome a destacar é o de Jonathan Seiller, hoje no Vinha ao lado de Henrique Sá Pessoa, restaurante que conquistou este ano uma estrela Michelin. Foi ele quem introduziu o tártaro de atum — um dos pratos mais marcantes da renovação da carta pós-2020 — e que deu uma nova leitura aos sabores frescos e crus no menu do Cafeína. “O Jonathan teve um papel importante na reabertura. É um cozinheiro excelente”, descreve.

Também Nuno Castro, hoje com o Fava Tonka, passou pela cozinha do Cafeína, num momento de transição criativa. “Dou-lhe imenso valor e tenho muito boa relação com ele”, afirma.

E não se pode esquecer de António Vieira, um dos primeiros chefs da casa, que ajudou a definir a identidade do restaurante nos seus anos iniciais. Hoje, com uma carreira consolidada, é o responsável pelos projetos Wish Restaurante & Sushi, Uva By Calém e pela gelataria Segreti.

Mas há quem tenha ficado. Camilo Jaña está no grupo Cafeína desde 2008 e hoje é o chef executivo e diretor de operações do grupo. Discreto e consistente, tem sido uma peça central na continuidade do projeto, assumindo funções tanto na cozinha como na gestão diária.

Mas nem todas as histórias nasceram dentro de casa. Algumas começaram fora, como a que uniu Vasco Mourão a Miguel Castro e Silva, então chef do restaurante do Miguel, na Foz, concorrente direto do Cafeína, nos anos 1990. "Na altura, tudo o que era concorrente, eu picava-me um bocado", recorda. Em vez de alimentar a rivalidade, decidiu fazer o oposto: convidou o chef para cozinhar no Cafeína. Mas não foi apenas um jantar especial. "Fizemos uma semana inteira com o Miguel Castro Silva. Tiramos a nossa carta, metemos a carta do Miguel", explica. A iniciativa, ousada para a época, correu tão bem que resultou numa amizade duradoura. “Ele aceitou, foi espetacular. Ficámos amigos a partir daí.”

E há ainda a história menos conhecida — mas determinante — do encontro entre Diogo Formiga e José Avillez. O chef, que estava no Porto, queria voltar a Lisboa e foi Vasco Mourão quem facilitou o contacto. “Disse-lhe: entrevista-o, que vais gostar dele. Não previa que ele gostasse tanto”, comenta. Diogo Formiga acabou por integrar o grupo Avillez e tornar-se chef do Encanto, o primeiro restaurante vegetariano com estrela Michelin em Portugal.

Cafeína aos 30 anos: memórias, vinhos e ideias novas

Para assinalar os 15 anos do Cafeína, Vasco Mourão decidiu organizar uma festa na rua. Nos meses anteriores tirou fotografias aos clientes habituais que tiveram o seu rosto impresso em pequenas bandeiras decorativas. Só que a festa foi um sucesso tão grande que saiu do controlo.

“Foi um inferno”, recorda o proprietário. O evento alastrou-se ao redor do restaurante. Admite que por ser mais novo, "era um bocado amalucado” e não se preocupou muito com burocracias ou licenças. Montou tudo sem pedir autorização, numa espécie de celebração espontânea que parecia ter tudo para correr bem. Estava um dia de calor, e o entusiasmo foi tal, que rapidamente se transformou num mar de gente. “Foi uma multidão mesmo. A rua era só cabeças, de um lado ao outro. Até as ruas laterais ficaram cheias. Não passava autocarro, não passava carro, não passava nada.”

Como resultado, apareceram seis carros da polícia. Vasco foi informado que teria de pagar uma multa por ocupação indevida da via pública e o valor seria calculado… por metro quadrado. Sem muita margem de manobra, começou a desmobilizar a multidão com a ajuda do chefe da polícia. A festa foi sendo desmontada aos poucos, mas a sanção acabou por chegar, ainda que com um valor mais leve do que o inicialmente ameaçado.

Por isso, ao pensar nas comemorações dos 30 anos do Cafeína, Vasco Mourão tem em mente algo um pouco diferente. “Eu acho que é importante chegar a um público mais alargado”, explica, não se concentrando num único evento, mas em várias coisas. Uma das ideias é promover uma conversa pública entre os dois arquitetos que marcaram a história visual do restaurante: Paulo Lobo, responsável pelo projeto original, e José Carlos Cruz, autor da renovação de 2021.

Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro
Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro O clássico bife Wellington agora também é servido à fatia ao almoço. créditos: Divulgação

Outra proposta, mais prática e descontraída, é testar durante o verão uma experiência de deli bar. A ideia é usar o antigo lado da cafeteria para criar algo mais leve, voltado para o almoço.

A tradição vínica também não fica de fora: depois do Porto de 20 anos criado com Álvaro van Zeller, nos 20 anos do restaurante, foi agora lançado um Porto 30 anos, que pode ser degustado no Cafeína, acompanhado também de um vinho tinto comemorativo, um monocasta Touriga Nacional, criado especialmente para a data.

Os Signature Dinners têm sido momentos centrais nas celebrações dos 30 anos do Cafeína, marcados pelo regresso de chefs que passaram pela casa ao longo das últimas três décadas. O primeiro contou com Francisco Meireles e encheu a sala num jantar pautado pela amizade e pela memória. O segundo, com Pedro Nunes, trouxe de volta ao Porto os sabores do São Gião, restaurante que agora gere em Guimarães, e esgotou em pouco tempo, confirmando o entusiasmo do público por estas reuniões.

No dia deste regresso foi também inaugurada a nova esplanada do Cafeína, um pequeno espaço exterior com 10 lugares, pensado como uma área de espera informal antes das refeições.

O Cafeína recuperou também o bife Wellington com um toque especial, que passou a ser servido à fatia, num carrinho, evocando o serviço clássico de sala. A edição está disponível às sextas-feiras, ao almoço, em formato de menu executivo, com entrada ou sobremesa por 21€, ou completo por 24€.

Trinta anos depois, tudo mudou. Mas o Cafeína continua lá

Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro
Cafeína, 30 anos depois. O restaurante que abriu o apetite do Porto para o futuro Robalo com arroz de bivalves e algas créditos: Divulgação

O Porto de hoje é uma cidade onde chefs com estrelas Michelin cozinham com vista para o Douro ou junto à linha do mar, onde esplanadas se transformam em ateliers gastronómicos e onde o apetite pela novidade é constante. Vítor Matos no Antiqvvm, Julien Montbabut no Le Monument, Ricardo Costa no The Yeatman, Rui Paula na Casa de Chá da Boa Nova, Vasco Coelho Santos no Euskalduna ou Arnaldo Azevedo no Vila Foz, todos representam uma nova geração de mesas de prestígio, com ambições internacionais e técnica refinada.

A cidade abriu-se à cozinha global, às fusões mais ou menos felizes, ao apetite pela novidade. Os bairros mudaram, a clientela diversificou-se, o turismo deixou de ser um fenómeno sazonal e a gastronomia transformou-se numa linguagem de cidade, com tudo o que isso implica de visibilidade, concorrência e efemeridade.

O Porto gastronómico de 2025 é feito de muitas vozes, muitos formatos e muitos nomes. Mas há lugares que pela sua história continuam a dizer tudo. O Cafeína é um deles.

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