Primeiro o que sabemos, o que é factual, indesmentível e lastimável: um homem de 43 anos, Odair Moniz, cabo-verdiano, residente no bairro do Zambujal (Amadora), morreu na Cova da Moura (também na Amadora) na madrugada da última segunda-feira, baleado por um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP). Até ao momento, e perante a inexistência de mais dados inequívocos, só isso pode ser afirmado com certeza e precisão.
Assumir que não conhecemos mais que isto não nos diminui. Pelo contrário, é reflexo de prudência e atestado de sensatez. Porque a partir daí, da triste evidência da perda de um concidadão nosso, que deixa cá três filhos (um de apenas dois anos), tudo é mais frágil e escorregadio. As notícias surgem em catadupa, os testemunhos, qual fado à desgarrada, contrariam-se e as versões e interpretações que nos chegam por todas as vias são inconciliáveis, impedindo a reconstituição rigorosa do que terá acontecido.
Nesta fase, um módico de respeito pela vítima, família e amigos e pelos profissionais que lidam diariamente com situações similares (forças de segurança incluídas) exigiria de todos responsabilidade. Mais reflexão e continência verbal.
Apesar de relatos incongruentes e de um vídeo divulgado pela Visão pouco abonatório para os agentes no terreno, não sabemos: 1) de que era (se é que era) suspeito Odair; 2) se o carro que Odair conduzia – o seu, ao contrário do que foi veiculado por alguma imprensa – abalroou outros antes ou depois de ser intercetado pela PSP; 3) se Odair resistiu à detenção; 4) se se precipitou sobre algum dos agentes empunhando uma arma branca (se é que a tinha); 5) se as autoridades esgotaram “outros meios e esforços” para travar o alegado ataque; 6) se o(s) disparo(s) fatal(is) foi(foram) intencional(ais) e em que circunstâncias foi(foram) perpetrado(s); 7) o que alegou o autor dos disparos no interrogatório a que foi submetido; 8) se a tragédia teve subjacente alguma motivação xenófoba ou racista.
Na mesma linha, só temos a palavra de uns contra a de outros (ou até de “fontes” para todos os apetites) sobre os acontecimentos subsequentes. Ainda não dispomos de informação sólida que nos permita afirmar: 9) que 15 agentes tenham arrombado a porta da casa onde residia Odair na terça-feira à noite; 10) que três desses agentes a tenham invadido e agredido duas pessoas que lá estavam; 11) que as autoridades não estivessem identificadas; 12) que não dispusessem de mandado para a realização daquela diligência; 13) que, a ter acontecido, a cadeia hierárquica da PSP não estivesse a par da ação, como foi assegurado ao Público.
O que a morte de Odair exige, antes de mais e acima de tudo, é uma investigação rigorosa, imparcial e transparente, que não se compadece com a sujeição a pressões de jornalistas, comentadores, líderes partidários ou mesmo do Presidente da República, que contribuiu para enevoar a imagem que existe de quem existe para nos manter seguros.
É em nosso nome, de todos os cidadãos – brancos, negros ou mestiços, ricos, pobres ou remediados, religiosos ou indiferentes a credos, politizados ou nem por isso, de uma orientação sexual ou qualquer outra – , que as forças policiais detêm o monopólio do uso da força. E é pela sua utilização, obedecendo aos princípios da necessidade e da proporcionalidade, que têm de responder em sede própria. É essa a garantia mínima que cada um tem num Estado de Direito democrático.
Mesmo num país indigente e assimétrico, cada vez mais radicalizado pela importação tardia de movimentos e tendências que só promovem a animosidade e o caos, e com os ânimos inflamados pela retórica abjeta de quem vira excluídos contra excluídos, o apuramento da verdade não autoriza reparação da dor e do sofrimento pelas próprias mãos.
Ainda que exista – em muitos casos com fundamento – uma perceção de iniquidade na atuação das polícias, sobretudo nos bairros esquecidos dos subúrbios, o vandalismo e as ameaças à ordem pública, que alastraram a diferentes partes da Área Metropolitana de Lisboa, são inaceitáveis, merecem condenação sem adversativas e convocam as forças policiais para uma atuação implacável, desde que no estrito cumprimento da lei.
Em nada ajuda, porém, termos líderes partidários como André Ventura, sempre de dedo no gatilho para estigmatizar, marginalizar e colocar anátemas sobre comunidades inteiras, a designar os desordeiros como “rascaria”. Pior: a fazer a inqualificável apologia da condecoração do agente que alvejou Odair.
Mais polidos têm sido alguns porta-vozes do Bloco de Esquerda e os seus proxies institucionais e mediáticos (com e sem carteiras de jornalistas, refira-se). No entanto, também sem conhecerem a fundo a situação e as suas consequências, foram lestos a explorar a tese do racismo, o flagelo do entrismo da extrema-direita nas corporações policiais e a apontar, como fez o SOS Racismo, como causa da fatalidade desta semana o “securitarismo estigmatizante dirigido às comunidades negras”.
Meço as palavras: concedendo que em graus de desfaçatez e patamares de indignidade diferentes, uns e outros alimentam-se do deslaçar das sociedades, sobrevivem graças ao ressentimento que ajudam a perpetuar e prosperam parasitando vidas miseráveis para ganhos de ocasião. Uns e outros têm nestas vidas periféricas o seu ganha-pão político. Uns e outros são predadores de gente frágil, zangada e sem voz. Gente com pouco ou nada a perder. Gente que, de desesperança no espírito e fogo nos olhos, não teme a descida ao Inferno. Afinal, já conhece os dias na Terra.
Ex-jornalista e especialista em comunicação