“Aprendemos geologia na manhã a seguir ao terramoto”, escreveu num dos seus poemas o filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson, na segunda metade do século XIX. Dito de outro modo, Emerson dá a entender que é preciso passar pela experiência para perceber a dimensão e impacto destes fenómenos naturais nas nossas vidas. Em pleno século XXI, o que não faltam são investigadores que os estudam, não para os prever com exatidão, pois isso é impossível e cientificamente considerado inaceitável, mas para determinar quais os locais que no futuro poderão ser afetados por grandes sismos e tentar perceber quais os mecanismos que os podem despoletar.
Em Portugal, quando falamos de um sismo, abalo, tremor de terra ou terramoto – todas estas palavras são sinónimas – recuamos automaticamente até 1 de novembro de 1755, data do grande terramoto de Lisboa, considerado um dos mais fortes de que há registo histórico, em todo um mundo. Tal como escreve o historiador Rui Tavares em O Pequeno Livro do Grande Terramoto, “o grande legado de 1755 é o da interpretação construtiva de um fenómeno natural, ou seja, em termos muito simples, uma atitude que consiste em dizer que, da próxima vez, estaremos melhor preparados”.
Efetivamente, deste essa fatídica data muito se aprendeu. Sabemos que o movimento das placas tectónicas na crosta terrestre são uma das causas mais vulgares para um sismo, o qual ocorre, explicando de forma muito rudimentar, quando pedaços da crosta (a camada mais externa do planeta) subitamente deslizam um ao longo do outro, numa zona de falhas geológicas. No que respeita ao nosso país, estamos situados numa zona de sismicidade assinalável, pois estamos juntos à fronteira das placas tectónicas da Eurásia e de África.
A energia de um terramoto, aquilo que realmente é temido pelos humanos, é libertada e sentida à superfície quando a tensão armazenada nas rochas da crosta ultrapassa o limite da plasticidade do material rochoso, provocando a sua rutura. Mas também pode suceder o caso em que a tensão acumulada se torna superior à força de atrito que segura dois blocos de rocha separados por uma falha geológica pré-existente, o que leva ao deslizamento de um desses fragmentos e à consequente libertação de energia. Portugal, por exemplo, é atravessado por diversas falhas geológicas.
Vamos ao que interessa. Há vários fatores que podem tornar mais fácil o deslizamento de matéria ao longo de uma zona de falhas geológicas, fazendo diminuir a força de atrito entre blocos: entre eles podemos encontrar as temperaturas elevadas ou os gases de alta pressão, capazes de operar como um elemento intermédio que separa os dois blocos. Basicamente, ao reduzirem o atrito isso faz com que um dos fragmentos deslize de forma acelerada ao longo do outro, até ficar sem energia.
“Os sismólogos há muito que acreditam que este tipo de instabilidade friccional pode explicar como é que os terramotos começam. Mas esta história pode não estar completa”, diz através de comunicado o Instituto de Tecnologia de Massachussets (o MIT), nos EUA.
Em causa está um estudo, recentemente publicado na revista científica Nature Communications e da autoria de dois investigadores do MIT, que dá conta de uma experiência em laboratório que mostrou como cristais ultrafinos sob a forma de grãos, existentes entre as zonas de falha, podem comportar-se como um fluido viscoso (um lubrificante) e também levar ao deslizamento de matéria na crosta terrestre. Segundo a equipa de cientistas envolvida na pesquisa, esta descoberta fornece mais uma explicação sobre o que pode estar na origem dos sismos
Estes “nanogrãos”, refere o MIT, costumam ser encontrados em rochas ligadas a eventos sísmicos, nomeadamente nas superfícies polidas e suaves dos chamados «espelhos de falha». Estas rochas, tão polidas que são capazes de refletir a luz (como se fossem um espelho), podem ser encontradas à superfície e estudadas, sendo um dos principais vestígios (uma prova) de sismos que ocorreram no passado e no interior da crosta. Com o passar dos milénios, estes sedimentos acabaram por emergir das profundezas.
Contudo, subsiste a dúvida sobre se estes cristais ultrafinos são um produto da moagem provocada pelos deslizamentos que causaram sismos ou se eles também pode contribuir, e muito, para o eclodir desses deslizamentos.
Os nanocristais têm uma força de atrito tão baixa que mais parecem um lubrificante para as rochas deslizarem
Para testar esta última ideia, o par de pesquisadores recriou em ambiente laboratorial as propriedades mecânicas desta poeira no interior de uma falha geológica. Primeiro, usaram um pequeno moinho com esferas de cerâmica lá dentro para pulverizar rochas de granito: esta máquina usada em laboratórios opera como se fosse o tambor de uma máquina de lavar, produzindo, em simultâneo, forças de fricção e de impacto para triturar o material em partículas de dimensão incrivelmente pequena. Qual o motivo para usarem granito? Porque é o tipo de rocha que por norma se encontra e dá forma às placas continentais da crosta terrestre.
O resultado desta moagem foi uma poeira de cristais em que cada grão media 100 nanómetros, o equivalente a uma milésima parte da grossura de um fio de cabelo. A olho nu não dá mesmo para observar cada partícula, só com um microscópio.
Em seguida, esta poeira superfina foi ‘empacotada’ dentro de cilindros, revestidos a ouro, do tamanho de um selo postal. Por fim, os cilindros cheios de matéria foram submetidos a altas pressões e temperaturas, tendo-se recriado em ponto pequeno o que sucede nas verdadeiras zonas de falha da crosta terrestre, incluindo durante os deslizamentos. Pormenor importante, salientam os investigadores do MIT: “este processo permitiu isolar o efeito dos cristais da complexidade de outros fatores envolvidos num terramoto real”.
Uma vez realizado este trabalho de sapa, todo ele feito dentro de um laboratório, a que conclusões chegaram? Os resultados podem dividir-se em duas partes distintas. A crer no estudo, a poeira de “nanocristais” tem uma força de atrito extremamente fraca quando o deslizamento nas linhas de falha tem início, com uma ordem de magnitude muito menor em comparação com uma poeira feita de “microcristais” (de maior tamanho, mas igualmente muito pequenos). Basicamente, numa fase inicial funcionam como uma espécie de lubrificante.
Contudo, à medida que as rochas deslizam a uma velocidade cada vez maior os nanocristais ganham propriedades mecânicas opostas às que tinham no começo: “tornam-se significativamente mais fortes”, ou seja, provocam uma maior força de fricção.
A parte estranha foi quando a poeira estudada se comportou como mel: mexes nele devagarinho e tudo é viscoso, mexes mais rápido e já parece cola
Tal como explica o geofísico Matej Pec, um dos autores da pesquisa, as características desta poeira assemelham-se a usar uma colher para mexer o mel que está dentro de um pote, pois é fácil rodar uma colher dentro dele de forma vagarosa, mas o processo torna-se cada vez mais difícil à medida que aumentamos a velocidade.
A experiência realizada sugere, de acordo com o texto de imprensa do MIT, que “algo similar acontece nas zonas de falha”, pois à medida que os blocos tectónicos aceleram, ao passar um pelo outro, os cristais começam a comportar-se como uma espécie de cola.
Hongyu Sun, a principal autora do estudo, admite que estes resultados não se encaixam na “teoria do enfraquecimento do atrito”, um conjunto de explicações que tenta descrever como têm início os terramotos e que, atualmente, é dominante junto da comunidade científica. “Esta teoria prediz que as superfícies de uma zona de falhas têm matéria que enfraquece à medida que os blocos aceleram, com o atrito a decrescer”, refere o MIT.
Em suma, os testes feitos com a poeira de nanocristais mostraram exatamente o oposto. Não obstante, e esta é a principal conclusão a que chegou o par de cientistas, a perda de atrito que é intrínseca a este tipo de matéria “pode significar que quando um número suficiente de nanocristais se acumula dentro de uma falha, eles podem ceder, causando um terramoto”.
Apesar de tudo, Hongyu Sun diz não discordar por completo da teoria que neste momento é mais consensual, mas faz questão de frisar que “o nosso estudo realmente abre novas portas para explicar os mecanismos de como os terramotos acontecem na crosta”.
Todas as semanas Portugal treme devido a sismos de baixa intensidade, causados por falhas ativas que existem no território... e isso é normal
O sismo de 1755 que devastou Lisboa teve como epicentro o banco de Gorringe, um maciço montanhoso com 180 quilómetros de comprimento e outros 60 de largura que está submerso no oceano Atlântico, a sudoeste do Cabo de São Vicente e a cerca de 200 quilómetros de distância deste ponto de Portugal continental.
O porquê deste epicentro já não causa espanto, pois ele situa-se ao longo da linha de fonteira das placas tectónicas da Eurásia e de África, a chamada zona de falha Açores-Gibraltar. Aliás, o banco de Gorringe só surgiu devido a deslocamentos verticais da crosta, provocados pelo afundamento da placa africana sob a placa euroasiática (um processo a que se dá o nome de subducção). Esta zona nas águas do Atlântico foi igualmente o epicentro de outros sismos (os mais fortes) sentidos na Península Ibérica e no norte do continente africano.
Todavia, nas últimas duas décadas têm surgido cada vez mais estudos a concluir que as zonas de falhas existentes na região do vale do Tejo também tiveram o seu contributo para o enorme abalo sentido em 1755.
De acordo com o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), responsável por detetar e monitorizar os eventos sísmicos que se sentem em Portugal, “o território do continente, assente na placa euroasiática, caracteriza-se por uma sismicidade de nível intermédio em termos globais, quer em termos de magnitude, quer em termos de frequência”.
Sejamos mais claros. De momento, não existem evidências de que estejam a ocorrer mais sismos em Portugal, mas a placa tectónica de África está a exercer pressão sobre a microplaca ibérica (que faz parte da euroasiática), podendo levar ao surgimento de mais falhas em solo português: o que, por sua vez, aumenta a probabilidade de no futuro virem a ocorrer mais sismos e de maior magnitude.
“A maior parte dos sismos acorrem na zona sul do Algarve, mas principalmente a sudoeste do cabo de São Vicente”, informa o IPMA. “Nos últimos 40 anos existe alguma aglomeração sísmica na zona de Évora, na zona litoral entre Santarém e Coimbra e a este da Costa Vicentina. No restante território a sismicidade tem sido dispersa.”
Todas as semanas o IPMA, através da sua rede de sismógrafos, deteta sismos de baixa intensidade causados por essas zonas de falhas geológicas. Basta clicar aqui para ver no mapa dinâmico que o instituto disponibiliza onde se situa epicentro de cada um, quando ocorreu e com que magnitude. É fácil reparar que estes abalos são mais habituais e normais do que poderíamos supor.
E onde podemos encontrar, no nosso território, espelhos de falha, as já mencionadas rochas polidas pelo deslizamento de outras no interior da crosta, há muitos milénios atrás, e que causaram enormes libertações de energia (sismos)? Damos um exemplo, entre outros que existem. Num dos flancos da Serra dos Candeeiros é possível ver em grande extensão o seu espelho de falha: apesar de ter sofrido com o passar do tempo uma enorme erosão e perdido a polidez que inicialmente teria, mantém uma aparência suave. O local está situado, precisamente, sobre o sistema de falhas geológicas de Rio Maior - Porto de Mós, situado no vale do Tejo.