José Cardoso Pires (JCP) nasceu em 1925 numa aldeia pobre da Beira Baixa, mas foi entre a pequena burguesia de Lisboa que cresceu, filho de um oficial da Marinha que conheceu meio mundo e de uma mãe, profundamente devota e conservadora, dada a “terrores bíblicos”. Foi neste caldo de contradições que Cardoso Pires cunhou a sua personalidade, em oposição frontal às forças que o tentavam condicionar, fossem elas políticas, literárias ou dentro da própria família. Criticou os escritores neorrealistas, seus contemporâneos, pela excessiva idealização do mundo rural, mas nunca se colocou fora do movimento neorrealista. Criou uma imagem de boémio e brigão, para que não fosse confundido com quem preferia os círculos literários “mais bafientos e a cheirar a naftalina”, mas não quis que ela ofuscasse os seus méritos como escritor. Foi militante do PCP, mas logo após o 25 de Abril desvinculou-se do partido. Faleceu em 1998, duas semanas após o anúncio de que Saramago vencera o Nobel da Literatura.
A biografia, com a chancela da editora Contraponto, tem o título de Integrado Marginal, mas estas duas palavras dizem muito pouco sobre a figura complexa que foi JCP, tal como nos explica Bruno Vieira Amaral, em entrevista.
Esta biografia sugou três anos da sua vida. Numa entrevista que deu, refere que a editora lhe adiantou algum dinheiro, mas houve muito mais que saiu diretamente do seu bolso. Em Portugal, para se escrever a primeira biografia de um dos nomes maiores da nossa literatura, é preciso que o autor do mesmo tenha de fazer isso?
Sim! Para fazer uma boa biografia tem de ser ele a financiar boa parte do mesmo: um autor, em Portugal, tem de se mentalizar disso. A menos que se queira escrever uma biografia que seja «assim-assim». Mas para algo que implique uma investigação rigorosa e prolongada, com tempo para transformar toda a montanha de informação numa biografia, tem de estar disposto a financiar do seu bolso. Claro que pode procurar outras formas de financiamento, como ir bater à porta de empresas que estejam dispostas a patrocinar uma biografia, mas não acredito que, de repente, surja uma catrefada de empresas que queiram investir nisso.
Como foi possível que se tenha tornado num escritor quase esquecido, em Portugal? É preciso ganhar um Nobel da Literatura para que isso não suceda?
Se compararmos com outros escritores da geração dele, nem é dos mais esquecidos. O José Saramago é um caso à parte, por causa do Nobel e porque a sua obra faz parte dos currículos escolares. Para a minha geração [Bruno Vieira Amaral nasceu em 1978], nomes como o da Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira ou até o Carlos Oliveira [autor de Uma Abelha na Chuva] podem ser mais familiares porque faziam parte dos programas escolares. Eu, na escola, também não me lembro de ter de ler o que fosse do JCP. O facto de um autor estar, ou não, no programa do que vai ser estudado, tem, de facto, influência na preservação da sua memória, na passagem da sua memória para a geração seguinte.
O próprio Carlos de Oliveira, assim como o Urbano Tavares Rodrigues, o José Rodrigues Miguéis ou a Fernanda Botelho, assim como tantos e tantos escritores que são contemporâneos do Cardoso Pires, também acabaram esquecidos, e até mais do que ele.
Estamos a falar de escritores que tiveram uma enorme relevância na segunda metade do século XX, sendo que não se passou assim tanto tempo desde essa época até aos dias de hoje…
…É certo que foram grandes nomes da literatura portuguesa, mais aqui em Portugal lê-se pouco, compram-se poucos livros. Essa é a realidade. Tratamos mal os nossos escritores e tratamos mal a nossa história. Não há uma política de preservação da sua memória. Por exemplo, existem os concursos para as bolsas de criação literária da DGLab [Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, sob tutela do Estado], só que elas não contemplam o género biográfico. Logo, não podemos ficar muito surpreendidos quando os escritores, depois de morrerem, caem no esquecimento, e com eles as suas obras.
A história de vida de todos estes nomes, tal como a de JCP, é igualmente a história de Portugal no século XX: ambas se cruzam. Além do mais, os seus contos e romances são uma porta aberta para o que foi a realidade de Portugal durante os mais de 40 anos de ditadura do Estado Novo. Esta biografia também retrata o Portugal em que nasceu e viveu JCP, ou seja, também ele é um livro de história?
Eu costumo dizer que a história é quase tudo, menos aquilo que vem nos manuais de história da escola. A história daquela época, sobre os meios literário, intelectual e de oposição ao regime, dos quais a vida do Cardoso Pires fez parte, foi também o que me motivou a escrever a biografia. É a história da vida dele e da sociedade em que viveu: uma sociedade que o moldou, mas que também o levou a opor-se e a revoltar-se em relação a certos valores – sociais, culturais e políticos – que à época eram dominantes.
É uma sociedade que ele depois acaba por analisar nos seus livros, num estilo literário. Quase toda a obra ficcional do JCP se passa no período da ditadura: apenas algumas páginas do livro Alexandra Alpha [publicado em 1987], que abarcam um período histórico muito curto, se passam depois do 25 de Abril. Ele foi não só um grande escritor, como também um médico-legista da sociedade portuguesa sob o regime de Salazar. Para se compreender quem foi mesmo o JCP, enquanto escritor e homem de ação política, comprometido com o seu tempo, é preciso compreender essa época.
Ele escreve O Hóspede de Job para também mostrar que é possível escrever sobre o mundo rural, neste caso o Alentejo, sem ser de uma forma sentimentalona e maniqueísta, sem romantizar o ‘bom povo’ como sendo ingénuo, inocente e trabalhador.
José Cardoso Pires (JCP) preferiu assumir-se como um escritor dos ambientes e da psicologia das cidades, influenciado pelo romancistas norte-americanos que lia. A sintaxe que usava era citadina. Ele estava em contraciclo em relação aos escritores neorrealistas da sua época, os quais usavam o mundo rural como pano de fundo para expor as desigualdades e as crueldades do Estado Novo, a luta dos mais vulneráveis contra as forças da injustiça.
Ele estava dentro do movimento neorrealista, só que estava contra o tipo de neorrealismo da primeira fase desta corrente, marcado pelas primeiras obras do Alves Redol [nasceu em 1911 e faleceu em 1969] e do Soeiro Pereira Gomes [1909-1949].
O neorrealismo surgiu em Portugal como resposta contra o movimento «presencista» [o nome vem da revista literária Presença, que surgiu em 1927 e foi a grande referência da segunda vaga do movimento modernista, do qual faziam parte Fernando Pessoa e Almada Negreiros, por exemplo], e que tinha uma visão da literatura como sendo a ‘arte pela arte’: a literatura não se devia preocupar com temas sociais, mas, isso sim, guiar-se por valores estéticos absolutos; ela não deveria comentar e intervir no mundo real. Os primeiros escritores neorrealistas em Portugal, como é o caso do Alves Redol, revoltam-se contra esta tendência e procuram fazer uma literatura que exprimisse as preocupações sociais e políticas daquela época, com as suas injustiças.
Só que o Cardoso Pires considerava que a escrita dos primeiros neorrealistas pecava pelo excesso de sentimentalismo, por uma idealização em demasia das personagens do mundo rural, as quais serviam para espelhar a oposição ao salazarismo.
Na primeira fase do neorrealismo houve uma certa idealização e romantização do povo, um certo maniqueísmo, para além de algum mau gosto na forma de escrever. O próprio Alves Redol, mais tarde, refletiu sobre isso, pelo que estas não eram acusações que os escritores dessa primeira fase ignorassem.
O JCP entra neste novo grupo de escritores do neorrealismo, o qual, é preciso frisar, não tinha regras definidas e estanques sobre a forma de escrever. Ele é um escritor realista, não deixa de tratar os assuntos relacionados com a realidade – não foge a isso –, mas diferencia-se dos outros pelo seu estilo literário mais despojado, muito mais interessado em explorar as virtudes do discurso direto. Ao contrário de outros autores contemporâneos, ele procura evitar o discurso indireto, evita uma certa retórica e barroquismo que sempre dominou (e ainda domina) a prosa portuguesa.
Esta influência veio dos escritores norte-americanos e é nisso que o JCP se diferencia, em Portugal. Mas isso não sucedeu logo de início: apesar de ter contos que têm como cenário a cidade, alguns dos seus livros, como O Hóspede de Job [escrito entre 1953 e 1954], passam-se num ambiente rural, mas o que o diferencia é a linguagem que usa. Aliás, ele escreve O Hóspede de Job para também mostrar que é possível escrever sobre o mundo rural, neste caso o Alentejo, sem ser de uma forma sentimentalona e maniqueísta, sem romantizar o ‘bom povo’ como sendo ingénuo, inocente e trabalhador – e que serviam depois de oposição às elites exploradoras e opressoras.
O JCP, em certas ocasiões, assumiu-se como neorrealista, mas noutros momentos dizia que esse rótulo era preguiçoso, que não explicava [o seu trabalho como escritor]. Na minha opinião, isso é verdade: dizer que o JCP era neorrealista não é uma boa síntese, não diz muito sobre a sua obra, pois ela embarca muito mais.
Naquela altura, também existia a questão de um escritor neorrealista não ser bem visto pela ditadura, por quem apoiava o Estado Novo e estava contra as ideias políticas que se o opunham.
Essa é outra questão importante. O rótulo de neorrealista era muitas vezes aplicado, logo de início, com um sentido pejorativo. Tinha uma conotação política muito forte. O próprio JCP chegou a dizer que quando a imprensa de direita falava em «escritor neorrealista», ela estava a querer dizer que esse escritor era demagogo, analfabeto e comunista. Foi igualmente por causa disso que nunca se quis livrar por completo do rótulo de neorrealista, porque sabia que existia essa carga política, que não se estava apenas a avaliar a qualidade literária – chamar a um autor de neorrealista era uma forma de denegrir quem tinha um quadro ideológico contra o regime. Daí, portanto, a sua relação ambivalente com esse rótulo.
Por um lado, aquilo que escrevia era diferente de outros escritores neorrealistas, mas, pelo outro, não se importava de ser considerado neorrealista, porque as suas convicções e posições políticas eram bem claras.
Cardoso Pires procurava uma linguagem mais urbana, mas depois, quando ia ao estrangeiro, percebia que Portugal não vivia no mesmo tempo histórico das outras nações ocidentais. Isso traduzia-se nas limitações que os escritores tinham para refletir, de forma fidedigna, sobre a sociedade portuguesa: não é possível usar uma linguagem urbana para descrever uma sociedade que ainda é rural, e, de alguma forma, também feudal.
Ele era um acérrimo crítico do Estado Novo, sendo que o livro O Delfim, publicado em 1968, é considerado a sua obra-prima. Em que se distingue esta obra de todos os outros livros daquela época?
O Delfim marca uma mudança no estilo do Cardoso Pires. Há ali uma viragem, um afastamento em relação ao discurso direto que ele explorou muito nos seus primeiros livros de contos. Neste romance ele usa, pela primeira vez numa obra sua, a narração na primeira pessoa: é uma técnica narrativa que lhe permite montar uma estrutura em torno de um narrador que vai contanto a sua história, ao mesmo tempo que conta a história que compõe a obra – é como que um livro dentro do próprio livro.
A forma como o livro começa é um perfeito exemplo disso: “Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.”
Há quem diga que há neste livro influências do estruturalismo, sendo por causa disso que alguns o associam ao nouveau roman [movimento que surge em França na década de 1950 e que procura romper com as estruturas tradicionais do romance], embora não ache essa avaliação muito correta. É uma obra inovadora para a literatura portuguesa porque o JCP vai buscar algumas influências estruturais (que são permitidas por essa narração na primeira pessoa), mas para abordar temas que já tinha abordado em obras anteriores.
Essencialmente, O Delfim é uma autópsia a um tempo estagnado que é o Portugal daquele período. O JCP procurava uma linguagem mais urbana, mas depois, quando ia ao estrangeiro, percebia que Portugal não vivia no mesmo tempo histórico das outras nações ocidentais: tal como ele dizia “o homem vai à Lua, mas Portugal continua numa espécie de Idade Média”. Isso era algo que depois se traduzia nas limitações que os escritores tinham para refletir, de forma fidedigna, sobre a sociedade: não é possível usar uma linguagem urbana para descrever uma sociedade que ainda é rural, e, de alguma forma, também feudal.
É por isso que ele procura fazer uma espécie de jogo duplo, em que vai buscar novas estruturas, diferentes do estilo mais direto dos seus primeiros livros, mas ao mesmo tempo não deixa de analisar uma sociedade estagnada, recorrendo a essa figura que é o Delfim – um representante da mentalidade retrógrada que existia em Portugal. No nosso país, nunca ninguém tinha feito isto com este tipo de acuidade, com um grau de pormenor tão grande e com brilhantismo literário.
Sempre formou a sua personalidade com base no antagonismo, pelo que é natural que se tivesse revoltado contra aquilo que o marcou muito, nomeadamente o lado religioso da mãe.
Na biografia do Cardoso Pires percebemos melhor a grande aversão que tinha em relação à ruralidade, muito por causa das experiências de vida que teve na freguesia de São João do Peso (no concelho de Vila de Rei), onde nasceu: testemunhou as condições de pobreza e miséria em que as pessoas aí viviam. Mas esse sentimento também era uma consequência da relação (ou da não relação) que tinha com a mãe, uma mulher natural da mesma zona e que era extremamente temerosa e devota para com a fé católica. Eram símbolos do Portugal retrógrado contra o qual se revoltou?
O problema do JCP não era com as pessoas, com o povo. O problema dele era com uma determinada mentalidade que dominava o país. Existia uma espécie de filosofia, que era a filosofia de Salazar, em que se fazia a apologia e se exaltava as virtudes da pobreza, da modéstia e do mundo rural. Este mundo que era romantizado, onde se falava bem da aldeia mais portuguesa de Portugal, era um mundo de uma enorme brutalidade, com condições de vida duríssimas, marcado por grandes dificuldades. O Cardoso Pires recusou e revoltou-se contra a construção da imagem de que o verdadeiro Portugal era o Portugal rural, o Portugal modesto e pobrezinho. Revoltou-se porque sabia que essa imagem era uma ficção nefasta para o país, que impedia o seu desenvolvimento e a melhoria das condições de vida das pessoas.
Para além disso, há que ter em conta as questões pessoais, a má relação que tinha com a família. Essa má relação tinha a ver com a mentalidade tacanha, provinciana e avarenta da parte materna da família. O JCP sempre formou a sua personalidade com base no antagonismo, pelo que é natural que se tivesse revoltado contra aquilo que o marcou muito, nomeadamente o lado religioso da mãe: de recordar que até aos 14 anos ele ia à igreja, às missas e até fez a catequese (chegando, depois, a dar aulas de catequese). Ele levava tudo isto a sério, até que aos 14 anos revolta-se com tudo e contra a mentalidade salazarista: o salazarismo não era só a repressão dos direitos políticos, era também uma atmosfera mental que afetava todas as dimensões da vida dos indivíduos, incluindo a relações amorosas e de amizade, as relações entre pais e filhos.
Quando se vive sob um regime repressivo, como foi o Estado Novo, todas as esferas da nossa vida encontram-se limitadas, e isso é um tema muito presente em toda a obra do JCP.
A própria relação do avô materno com a mãe do Cardoso Pires era, para os padrões de hoje, totalmente atípica. O avô era um homem de posses, dono de terras, mas praticamente abandonou a filha, deixou-a ao cuidado de tios…
Pois foi. Ele ficou desiludido porque era o primeiro bebé que tinha, mas saiu-lhe uma filha, quando o que ele queria era um filho. Isso levou-a a ser posta de parte. Foi criada por uma tia e por um tio, que era padre. Além disso, o homem tinha um comportamento tipicamente violento: e, neste pormenor, podemos especular se o JCP não herdou dele alguns traços de personalidade – se calhar mais do que aquilo que suspeitava –, pois existia um lado truculento e, em certas situações, até violento no Cardoso Pires.
Todo o lado materno da família estava associado a valores que, para ele, expressavam a mentalidade dominante em Portugal e que era alimentada pelo próprio regime de Salazar.
E qual era a relação que tinha com o pai? De que forma este o influenciou?
Ele gostava muito do pai, tinha uma grande admiração por ele e pela sua história de vida. O pai [que nasceu no seio de uma família pobre, também em São João do Peso], era um homem que tinha viajado muito, tendo chegado a oficial da Marinha. Era uma pessoa com muito mais mundo do que a esposa, a mãe do Cardoso Pires: tinham experiências de vida completamente diferentes.
Só que, apesar de o pai ter esse mundo, deixou-se dominar pela mãe – ou, pelo menos, era assim que JCP entendia a relação entre os pais. Isso provocou em JCP um sentimento de ressentimento em relação ao pai, pois acreditava que podia ter tido uma educação mais livre do ponto de vista intelectual, que não fosse tão formatada pela Igreja, até porque era uma família com posses. O Cardoso Pires censurou o pai por se ter deixado subjugar pela mãe. Ele próprio confessou isso, mais tarde, à família – com a qual eu falei, para a biografia. Segundo o JCP, o pai conduziu a sua vida de forma a dar aos filhos uma vida muito melhor do que aquela que teve, para lhes garantir um desafogo financeiro quando morresse – ele acabou por falecer quando o JCP tinha 21 anos. Só que, apesar desse esforço, JCP dizia que o pai tinha descurado o lado educativo, o qual ele esperava que tivesse sido um pouco mais liberal do que foi: acabou, antes, por ter uma educação muito marcada pela religiosidade e os valores da mãe.
O PCP exigia muito dos seus militantes a nível de comportamento moral, mas ao Cardoso Pires ninguém lhe vinha dizer o que podia, ou não, fazer.
No que se refere à sua faceta mundana, como descreveria o José Cardoso Pires? Diz-se que foi boémio e marialvas, que era protagonista de episódios de pancadaria, como quando agrediu à cabeçada um crítico que chamou de “execrável” a uma obra sua.
Ele tinha esse tipo de comportamentos em várias ocasiões. Mas outros também o tinham, não era só ele. O JCP era alguém de coragem física, que não tinha medo do confronto corpo a corpo.
Definitivamente, não era um escritor que vivesse numa torre de marfim…
Tal como explico na biografia, ele esteve integrado nos movimentos políticos do seu tempo, de oposição ao regime. Esteve ligado a projetos editoriais de jornalismo cultural. Era um homem integrado no seu tempo, que participou nele, que se revoltou contra ele e os seus contemporâneos. E também brigou. Esteve sempre no meio de tudo, dentro da arena e da luta. Saiu com marcas, algumas positivas e outras negativas, mas esteve envolvido em todas as questões relevantes do seu tempo, quer fossem políticas ou literárias. Nunca esteve fora do mundo. Só se recolhia quando era para escrever.
Há pormenores mais obscuros da vida dele que o Bruno Vieira Amaral tenha procurado revelar e contar para a biografia, mas que não conseguiu descortinar?
Da minha parte, houve interesse em saber mais sobre o envolvimento do Cardoso Pires com o Partido Comunista Português, mas isso é quase impossível, porque o partido não disponibiliza o acesso a essa documentação. Aliás, nem sabemos se há documentos nos arquivos do PCP sobre ele.
No entanto, através da correspondência a que consegui ter acesso, entre o Cardoso Pires e o Castro Soromenho e o Vítor Ramos, obtém-se uma imagem muito fiável das suas ligações políticas, do seu envolvimento político.
Ele esteve envolvido com o PCP durante a ditadura, mas logo a seguir ao 25 de abril desvinculou-se do partido. Por que o fez?
Foi militante do PCP, mas não tinha espírito de funcionário, no sentido de obedecer às diretrizes do partido. Enquanto durou a ditadura esteve ligado ao partido, mas a partir do momento em que o regime caiu afastou-se do PCP. Esta pode ser uma visão instrumental do PCP, mas o Cardoso Pires achava que só podia existir uma oposição eficaz ao regime com a envolvência do Partido Comunista. A sua militância no PCP durante o Estado Novo está muito relacionada com essa sua convicção.
Mas mesmo quando estava dentro do partido – e isto são factos relatados pela família e por militantes comunistas –, a relação com o PCP era por vezes conflituosa e intempestiva. Ele não concordava, em nada, com os limites que eram impostos pelo partido, tanto na esfera literária como de comportamento pessoal. O PCP exigia muito dos seus militantes a nível de comportamento moral, mas ao Cardoso Pires ninguém lhe vinha dizer o que podia, ou não, fazer.
Quando lhe disseram que os escritores portugueses apontados para um possível Nobel da Literatura eram o Saramago e o Lobo Antunes, ele assumiu isso com alguma naturalidade, porque sabia que os seus livros não tinham sido tão traduzidos como os deles.
A rivalidade e os momentos de conflito que teve com o José Saramago, já depois do 25 de Abril, foram mesmo grandes ou houve aqui uma certa dose de empolação, criada por alguns círculos literários, inclusive pelos média portugueses? Costuma-se dizer que “o conflito vende”…
Existia, de facto, uma rivalidade entre ambos, pelo que é perfeitamente natural que a história dessa rivalidade acabasse nas notícias.
O José Saramago era mais velho do que ele [nasceu em 1922, três anos antes de JCP], sendo que ambos estudaram na mesma escola primária. Começaram a publicar quase ao mesmo tempo [o primeiro romance de Saramago foi Terra do Pecado, de 1947, enquanto JCP se iniciou com Os Caminheiros e Outros Contos, em 1949], mas depois o Saramago não publicou mais nada durante várias décadas. Tiveram um percurso, embora diferente, dentro do Partido Comunista Português, eram da mesma geração e foram criados em Lisboa, cruzaram-se e conheciam-se. Mas o Cardoso Pires tinha um estatuto, na literatura portuguesa, completamente diferente dele no final da década de 1960: o JCP era já reconhecido como um dos grandes escritores portugueses, com traduções noutros países, enquanto o Saramago ainda não tinha publicado nada de relevante.
Só que a partir de certa altura, quando o José Saramago passa a dedicar-se exclusivamente à escrita, os seus estatutos, dentro e fora do país, começam lentamente a mudar. Isto é inegável.
E não há qualquer empolação relativamente à grande polémica que foi a entrega do primeiro prémio da APE [Associação Portuguesa de Escritores] em 1983, relativo a livros publicados em 1982, em que os dois grandes concorrentes eram os livros do JCP, com A Balada da Praia dos Cães, e do José Saramago, com o Memorial do Convento.
Sendo que, para os padrões da época, o prémio pecuniário era bastante generoso: 750 contos. Só para servir de comparação, o salário mínimo nacional era de 15 contos. Atualmente, e se fizermos os cálculos no site no INE, com valores adaptados à inflação, isso dá perto de 23 mil euros.
Era generoso, sim. Tratava-se do primeiro prémio da APE destinado a um romance após o 25 de Abril de 1974. Tinha um peso e importância grandes, daí que toda a gente tenha comentado e discutido: chegou-se a formar claques, em que uns torciam pelo Cardoso Pires e outros pelo Saramago.
Houve uma real indignação, junto de alguns setores e meios, quando o prémio foi atribuído ao livro do JCP. Nada disto foi empolado.
E também é verdade que, a certa altura, o nome do JCP deixa de ser equacionado para entrar nas contas do Nobel. Ele próprio falou sobre isso: quando lhe disseram que os escritores portugueses apontados para um possível Nobel da Literatura eram o José Saramago e o António Lobo Antunes, ele assumiu isso com alguma naturalidade, porque sabia que os seus livros não tinham sido tão traduzidos [para outras línguas] como os deles. Creio que a partir de certo momento passou a viver tranquilo em relação a isso, não era coisa que o atormentasse.
Mas como era a relação dele com o Saramago?
Existia uma relação fraterna entre ambos, mas não eram amigos íntimos. Respeitavam-se mutuamente. Mas o JCP não era um grande apreciador da obra do Saramago, tendo falado sobre isso em algumas ocasiões.
É impossível escrever sobre o Cardoso Pires sem mencionar o nome de Saramago?
Para mim, enquanto biógrafo, era impossível não falar. Podia não ter falado do Saramago, mas depois ficaria uma cratera demasiado óbvia na biografia. É através das relações entre os escritores que se consegue explicar o que foi a literatura portuguesa, especialmente a partir dos anos 80. Se alguém pensar que a questão Cardoso Pires-Saramago está demasiado empolada, então creio que não leu esta biografia. E se outros pensarem que tentei transformar o Saramago num vilão, numa espécie de arquirrival do JCP, então só posso considerar que são uns cretinos irrecuperáveis, pois não é isso que faço no livro.
Em todos os seus livros está presente a ideia de que o ser humano não se reduz a uma só dimensão, seja ela intelectual, política ou económica. Ele é condicionado por todas estas dimensões, mas também é formado em oposição a estas mesmas forças que o procuram condicionar.
Olhando agora para trás, com mais distanciamento temporal, qual foi o grande legado do José Cardoso Pires para a literatura portuguesa?
A forma como ele, num primeiro momento, traz para a literatura portuguesa a influência dos escritores norte-americanos das décadas de 1930 e 1940 foi importante. Ajudou a libertar a literatura portuguesa de um peso mais barroco e retórico dos nossos grandes escritores.
Mas o JCP, depois, não seguiu esse legado inicial. O que dele fica, mais tarde, é a sua capacidade de, através da ficção, analisar a sociedade em que viveu. Enquanto escritor, acreditava que os romances também serviam para isso, que tinham a função se serem instrumentos de análise, isto dentro das regras e dos princípios que são próprios da literatura.
Em todos os seus livros está presente a ideia de que o ser humano não se reduz a uma só dimensão, seja ela intelectual, política ou económica. Ele é condicionado por todas estas dimensões, mas também é formado em oposição a estas mesmas forças que o procuram condicionar.
Em A Balada da Praia dos Cães, por exemplo, ele faz uma análise muito certeira. O livro aborda o caso em torno de um crime cometido nos anos 60, e que envolvia pessoas ligadas à oposição e que chegaram a tentar derrubar o regime por via de um golpe militar. O que interessava a JCP não era tanto os pormenores sórdidos deste caso, nem dissecar os membros da oposição ao salazarismo – o tentar encontrar uma explicação para a oposição ao regime ter fracassado tantas vezes. O que lhe interessava era tentar perceber como a atmosfera de medo e repressão, criada pelo Estado Novo, depois contaminava a esfera de vida de todas as pessoas, incluindo aqueles que procuravam derrubar a ditadura. Através dos seus livros, e através deste romance em particular, o JCP tentou perceber como é que o medo condiciona tantas opções que tomamos na vida.
Os seus livros são muito importantes para compreender a atmosfera mental daquela época. Da mesma forma que os livros do Eça de Queirós são importantes para percebermos Portugal no final do século XIX. Os livros do Camilo Castelo Branco também o são, pois ajudam-nos a entender o Portugal rural e nortenho do seu tempo – sendo que o Camilo também recorria, muitas vezes, aos fait-divers e aos crimes passionais para refletir sobre aquela sociedade.
Não estamos perante um escritor que tivesse publicado uma enorme lista de livros, em comparação com outros autores. Até se dizia que demorava muito tempo a acabar uma obra. O Cardoso Pires era alguém que receava uma opinião negativa em relação ao que escrevia? Ou, pondo a questão de outra forma, sentia a necessidade de ser validado, enquanto escritor?
Um escritor que precise constantemente de ser adulado, de validação dos outros, normalmente publica mais. Se assim fosse com o JCP, então ele teria publicado mais livros. Ele era de uma enorme exigência e rigor, quase obsessiva, para com aquilo que escrevia. Há provas mais do que suficientes de que ele estava atento às críticas, tanto as boas como as más, mas não era um escritor que andasse a pedir mimos aos críticos ou aos leitores. O seu desafio era outro: o de escrever livros o mais perfeitos que fosse possível.
Quando estava a escrever não bebia, nem sequer saía. Era uma espécie de monge. Depois, quando acabava o trabalho, após períodos muitos intensos de escrita, voltava a sair, a beber e a estar com os amigos.
Mais tarde, na sua carreira de escritor, procurou desvincular-se da imagem de boémio e marialvas. Qual era a intenção desta dissociação?
Ele não queria que a imagem de boémio e brigão, de escritor da noite e do álcool, se sobrepusesse ao seu valor literário. Isso é algo perfeitamente legítimo.
Mas ele, ao fazer isso, estava mais preocupado com a impressão que poderia dar de si próprio aos outros, ou acreditava que esse estilo de vida poderia prejudicar o seu trabalho?
Ele nunca achou que isso pudesse prejudicar o que escrevia. Isto porque sabia separar essas duas vidas: ambas nunca coincidiam. Quando estava a escrever não bebia, nem sequer saía. Era uma espécie de monge. Depois, quando acabava o trabalho, após períodos muitos intensos de escrita, voltava a sair, a beber e a estar com os amigos.
Mas, de facto, criou-se uma cristalização e até uma mitificação dessa imagem de boémio. Não sei até que certo ponto essa imagem não terá sido alimentada por ele mesmo, involuntariamente, quanto mais não fosse para se distinguir dos escritores mais solenes e académicos: ele gostava de transmitir a ideia de que era um escritor afastado dos meios mais bafientos e a cheirar a naftalina.
Claro que, com isso, há o reverso da medalha, que é a sua redução a uma caricatura. E ele sentiu que poderia haver uma desvalorização dos seus méritos literários por existir uma imagem pública, muito forte, relacionada com questões extraliterárias.
O JCP queria era escrever, ser escritor. Mas, em Portugal, isso ainda hoje é um problema. Em Portugal, quem é que atualmente vive apenas dos livros que publica? Pouquíssimos escritores!
Ser apenas escritor não basta, é preciso ter outro ofício…
Exatamente. Tem de ser. O Cardoso Pires, por exemplo, teve uma editora, chegou a ser diretor-adjunto do Diário de Lisboa – sendo que, na prática, ele é que era o diretor. Ele percebeu que não era impossível viver só da escrita, mas só os livros não bastavam. Contudo, o JCP nunca quis um trabalho das nove às cinco, não era esse o tipo de vida que procurava, pelo que ia gerindo a sua vida através dos direitos de autor das suas obras, através de colaborações com jornais e através da editora que tinha. Era isto que lhe permitia, depois, ter períodos em que se podia dedicar de forma exclusiva à escrita de livros.
No meu caso, procuro que as outras atividades que faço estejam o mais perto possível da escrita, que estejam relacionadas com ela: através de colaborações com jornais ou fazendo traduções, por exemplo. O que se pretende com isto é ganhar tempo, e ganhar tempo é ganhar dinheiro, para nos podermos dedicar aos livros que queremos escrever. Foi precisamente isso o que tive de fazer para poder escrever esta biografia.
Quis escrever uma biografia que fosse rigorosa, e, depois, que gostasse de ler enquanto leitor. Não fiz concessão alguma para chegar a mais pessoas.
Integrado Marginal. Foi este o título que escolheu para a biografia. Duas meras palavras. O que nos dizem elas sobre o José Cardoso Pires?
Estive à procura de um título que fizesse a síntese da vida dele, mas este título é apenas uma aproximação a essa síntese. Se nem uma biografia chega para abarcar uma vida inteira, também não será um título que vai explicar todo os traços de personalidade de alguém. Esta foi uma definição que o JCP deu dele mesmo, já numa fase adiantada da sua vida. Mas o livro tem 600 páginas e de forma alguma anda todo à volta da questão do integrado ou do marginal. É estúpido quem pegar no título e tentar desmontar a biografia com base nele. São duas palavras que nem me soam bem, mas tinha de existir um título que coubesse na capa do livro [risos].
De quem partiu o desejo de escrever esta biografia? Da editora ou do Bruno Vieira Amaral?
A vontade partiu de mim. Não se faz um trabalho destes, que demorou três anos, se não tivermos vontade, a menos que sejamos masoquistas. Eu queria escrever uma biografia (esta foi a primeira que escrevi), e à fome juntou-se a oportunidade de comer, porque eu nunca iria começar a trabalhar numa biografia se não tivesse um acordo com uma editora. O convite acabou por vir da Contraponto e eu aceitei.
O livro parece fugir um pouco ao que é o cânone de uma biografia. Ao lê-lo, fiquei com a sensação de que obedecia aos ritmos e características de um romance. Acredita que assim consegue chegar a um público mais vasto, inclusive aqueles que nunca leram uma palavra escrita pelo José Cardoso Pires?
Em primeiro lugar, eu quis escrever uma biografia que fosse rigorosa, e, em segundo, que gostasse de ler enquanto leitor. Não fiz concessão alguma para chegar a mais pessoas. Quando dividi a biografia em capítulos mais breves foi apenas para facilitar o meu trabalho, para conseguir gerir as toneladas de informação que obtive sobre o José Cardoso Pires. Estamos a falar de muitas fontes, muitos documentos, do cruzamento de várias entrevistas – algumas delas com 50 anos a separá-las. Face a esta montanha de informação, temos duas hipóteses: ou tentamos escalar a montanha, ou tentamos rebentá-la para a partir em pequenas rochas, de modo a gerir melhor cada pedaço. Optei pela última, para não despejar toda a informação para dentro do livro, para que o resultado final seja legível.
Isto é um projeto editorial, não um projeto académico, pelo que não estava preocupado em ser avaliado por professores, como se estivesse a defender uma tese. O que fiz foi uma biografia com os meus critérios, o meu gosto pessoal e o meu estilo de escrita. Esta biografia não está escrita ao jeito de um romance, está dentro de um género literário que é a biografia, só que não é uma biografia académica.
Uma biografia não é toda a vida da pessoa, tudo o que lhe aconteceu. Aquilo que se parece com um romance, numa biografia, mais não é do que a vida de alguém sem os momentos chatos, os momentos irrelevantes. A minha intenção é que estejam nesta biografia todos os momentos relevantes da vida deste homem, para que o leitor o possa compreender e conhecer melhor. Tive de fazer uma seleção dos factos (que são tantos) mas sem enganar o leitor: a biografia tinha de ser legível e sólida.