Em Os Vivos e os Outros, o seu livro anterior, tenta mostrar como as pessoas se podem reinventar depois de pensarem que o mundo acabou.
A história é sobre um grupo de escritores que se reúne num festival literário na Ilha de Moçambique e que devido a uma tempestade que assola o continente ficam completamente isolados naquele espaço. O livro é sobre o poder da palavra, da literatura e da narrativa, sobre o poder da palavra para reinventar o mundo. É um livro sobre utopias, sobre a necessidade de criar novas utopias para podermos sobreviver às situações que hoje enfrentamos.
O mundo está assim tão carente de utopias?
Sim, está. A queda do Muro de Berlim [em 1989] e o conjunto de eventos que depois se seguiu parece que desautorizaram o sonho, a utopia.
Muitos intelectuais apontam esse período como o momento em que as “grandes narrativas” que tentavam explicar o mundo tiveram o seu fim. Concorda?
Concordo. O problema é que, e mais do que nunca, precisamos de voltar a sonhar, precisamos de criar utopias ajustadas a este tempo novo.
O Mais Belo Fim do Mundo, que vai agora publicar, inclui 400 páginas de crónicas e textos de ficção que escreveu nos últimos três anos. O que vamos encontrar ao longo dessas linhas?
A maior parte das crónicas e dos contos que lá estão são sobre estes estranhos tempos que estamos a atravessar, com a angústia que estamos a viver, da pandemia à situação política. Por exemplo, alguns dos textos foram publicados no Brasil, dai que fale da tragédia que se abateu sobre o país com a eleição de Jair Bolsonaro como presidente.
Este livro acaba por ter uma estranha relação com o anterior romance, com ambos a falar sobre o isolamento e a necessidade de utopias. Ele parece um eco de Os Vivo e os Outros.
Se o folhearmos vamos encontrar otimismo ou pessimismo?
Eu gosto de relembrar que sou angolano, e os angolanos, regra geral, são otimistas, porque os pessimistas já se suicidaram todos. Num país como Angola não há espaço para pessimistas. Tal como eu escrevi num dos meus livros, o pessimismo é um luxo dos povos felizes: nós, angolanos, não nos podemos dar a esse luxo.
Os portugueses podem… e são insistentemente pessimistas, muitas vezes sem razão para isso. Ainda há pouco tempo estava a falar com uma amiga brasileira e ela perguntava como é que num país com tanto sol e tanta luz as pessoas são tão pessimistas.
Esse sentimento transparece muito na literatura portuguesa?
Transparece, completamente. Na literatura e na música. Atenção que eu tenho horror a isto de definir os povos, pelo que estou a fazer uma generalização. Mas se há algo que pode caracterizar o povo português é a melancolia, o exercício da melancolia, a sua exaltação.
Parece-lhe um sentimento que chega a roçar o masoquismo, por vezes?
Um pouco, e vou dar um exemplo. Neste momento, Portugal em termos de combate à pandemia é um dos países com mais sucesso no mundo. Mesmo assim, se ligarmos a televisão ou falarmos com as pessoas na rua só se ouve pessimismo. As pessoas, em Portugal, parece que passam todo o tempo a criticar.
Recentemente li o livro Humanidade - Uma História da Esperança, do [historiador neerlandês] Rutger Bregman. Ele faz uma leitura da história da humanidade de um ponto de vista otimista, mas avisa que as más notícias são sempre notícia, mais vezes que as boas notícias, e que preferimos olhar para o mundo com uma visão pessimista. Mas quando olhamos mais profundamente e atentamente percebemos que as coisas não são bem assim.
O Rutger Bregman dá um exemplo literário, O Deus das Moscas [publicado em 1954 pelo britânico William Golding], que eu li quando era muito jovem, mas na altura não gostei nada do livro, nem nunca entendi porque ganhou ele o Nobel da Literatura [em 1983].
É um livro com uma visão muito pessimista sobre a natureza humana…
Precisamente. A história é sobre um grupo de crianças que acabam sozinhas numa ilha e que, com o passar do tempo, acabam a comportar-se como animais selvagens. Só que o Bregman foi em busca de algo semelhante que tivesse mesmo acontecido, de um acontecimento real que se possa comparar com o que surge descrito em O Deus das Moscas. Foi então que descobriu a história de um grupo de crianças, do arquipélago de Tonga [país com 169 ilhas, situado no Oceano Pacífico], que decidiu fugir num barco: só que elas apanharam uma tempestade e acabaram por ir parar a uma ilha deserta. Ficaram lá 15 meses até serem descobertas. Quando foram finalmente resgatadas [em setembro de 1966, tal como explica Bregman num artigo para o jornal The Guardian] verificou-se o contrário do que o William Golding ficcionou. As crianças tinham estabelecido um modelo de vida não violento e muito próximo de uma verdadeira democracia.
Ou seja, com este e outros exemplos concretos o Bregman defende que as pessoas, de uma forma geral, são boas. Esta visão otimista da vida humana é uma coisa muito difícil de aceitar em Portugal, mesmo quando as coisas correm muito bem. Eu chego a Lisboa, vindo de Luanda, entro num táxi e elogio a luz de Lisboa, mas depois só ouço o condutor a queixar-se e a dizer que “está tudo horrível, que está tudo errado”. Aliás, a expressão que eu mais escuto é: “isto nunca esteve tão mal”.
Essa forma de olhar para a realidade, que está a descrever, acaba por condicionar a nossa capacidade de sonhar e de explorar novas e diferentes alternativas para o futuro?
Isso pode acontecer, sem dúvida. Se o pessimismo fizer com que a pessoa mergulhe na melancolia e no fatalismo, então ela acaba por perder uma capacidade transformadora. Esse é o problema do pessimismo absoluto, um tipo de pessimismo que leva ao niilismo, à aceitação do destino como se fosse algo absolutamente inevitável e não contrariável. Quando assim é, a pessoa não luta, desiste de lutar, e isso é mau.
Sempre houve racismo e racistas, eles não desaparecem de repente. O que aconteceu em muitos países foi que de repente as pessoas se acharam autorizadas a exprimir as ideias racistas e xenófobas que já tinham.
Apesar do seu otimismo, há fenómenos e acontecimentos que neste momento estão a marcar o mundo e que o preocupam, tal como sugerem alguns dos textos que tem escrito para revistas e jornais. Quais são os problemas que mais atenção deveriam merecer e para o quais tenta alertar?
Devíamos dar mais atenção à ideia de que é preciso acreditar nas pessoas. É preciso acreditar na humanidade e na capacidade transformadora das pessoas face a eventos trágicos. É preciso acreditar que somos capazes de nos adaptar, sobreviver e melhorar o nosso mundo. Ao contrário da ideia que prevalece (e que é um grande equívoco), as coisas hoje não estão piores, elas estão melhores em relação ao passado: à medida que recuarmos no tempo podemos ver que o nosso mundo era muito pior. Já tivemos a escravatura como algo aceitável e instituído em todo o mundo, houve uma altura em que as pessoas eram mortas em espetáculos, em que eram acusadas de feitiçaria e queimadas vivas…
Hoje em dia, felizmente, já estamos muito longe disso, o que não significa que de vez em quando não ocorram casos em que há pessoas a cometer atrocidades. Ainda há pouco li a história de uma mulher, ligada ao Estado Islâmico, que está a ser julgada na Alemanha por escravatura e por ter deixado morrer crianças que eram escravas. O Estado Islâmico, que é a franja das franjas do horror absoluto, ainda é capaz de praticar este tipo de horror, mas ele já não é aceite pelo resto da humanidade. A mundo mudou muito, e mudou muito em relativamente pouco tempo: nós temos a capacidade de nos regenerarmos e de criar sociedades mais humanas. É importante realçar esta ideia.
Acredita que as novas forças políticas ligadas à extrema-direita irão ganhar mais poder nos próximos tempos e constituir uma séria ameaça à democracia? O que sucedeu nos EUA, quando Trump e muitos dos que votaram nele recusaram aceitar o resultado das eleições, não deveria constituir um sério aviso?
Em primeiro lugar, há que dizer que tudo é passageiro. Eu acredito que estes movimentos de extrema-direita serão mais passageiros do que o habitual. É verdade que a emergência de Donald Trump contribuiu muito para o alastrar de certo tipo de ideias, mas também é preciso referir que ele não foi eleito pela maioria da população: só o foi devido ao sistema norte-americano do colégio eleitoral, que é algo completamente arcaico.
Mas o Jair Bolsonaro, no Brasil, ganhou as eleições com o voto da maioria, sem necessidade de um colégio eleitoral.
Sim, ele foi eleito, mas não pela maioria da população, pois houve muitas abstenções [apesar de o voto ser obrigatório]. Ele foi eleito devido ao apoio dos evangélicos, que apesar de representarem uma baixa percentagem da população total são muito militantes.
No Brasil os grupos evangélicos têm uma grande capacidade de mobilização e votam em massa num candidato político que seja da sua predileção…
É um grupo pequeno, mas teve importância na eleição de Bolsonaro. O fenómeno dos grupos evangélicos é algo importante de estudar, pois considero que se trata de algo muito perigoso. Na Europa, de uma forma geral, eles não conseguiram a mesma afirmação e por uma razão muito simples: os países europeus estão mais bem organizados que o Brasil, além de que existe um bem-estar social que não tem comparação – os estados, na Europa, apoiam a população de um modo que não acontece no Brasil ou em Angola.
Em Angola existe um combate da parte do Governo a este tipo de entidades, o qual, para mim, tem a sua razão de ser, pois na sua maior parte trata-se de puro charlatanismo: estamos a falar de igrejas que prometem curar pessoas das doenças que sofrem. São criminosos que se organizam para sugar as populações mais pobres e desfavorecidas, e no limite, como se vê no Brasil, podem ter muito poder político e conseguir controlar o aparelho de estado. Nos EUA este fenómeno também se verifica, mas o Brasil é o melhor exemplo e o que aí aconteceu é um alerta para este tipo de organizações, as quais usam a capa da religião para crescer e se afirmar.
“Vivemos num mundo de mudanças muito rápidas, mas nem todos nós conseguimos assimilar essas mudanças da mesma maneira. Há muitas pessoas com medo delas, pois elas incluem uma revolução de costumes.”
Como explica o ressurgimento e crescimento da extrema-direita racista e xenófoba na Europa e nos EUA? Durante décadas, após a Segunda Guerra Mundial, estes grupos estiveram como que na penumbra, mas, nos últimos anos, parecem ter perdido o pudor e entraram na arena política.
A expressão certa é mesmo essa: perderam o pudor. Creio que a emergência e afirmação do Donald Trump autorizou essas expressões [políticas]. Sempre houve racismo e racistas, eles não desaparecem de repente. O que aconteceu em muitos países foi que de repente as pessoas se acharam autorizadas a exprimir as ideias racistas e xenófobas que já tinham. Eu não acredito que representem a maioria das pessoas. A maioria não pensa assim, trata-se de um grupo minoritário muito mobilizado que começou a exprimir-se.
Em Portugal verifica-se o mesmo com o Chega. Esse partido é outra forma de charlatanismo. Quem se interesse um pouco e siga a carreira do líder do Chega, o André Ventura, percebe que ele não é alguém que acredita naquilo: é um charlatão, é alguém que está a usar certas ideias para adquirir poder e dinheiro.
As pessoas, no geral, são crédulas, querem acreditar em alguma coisa, e este tipo de charlatães sabem disso. O Trump fez exatamente o mesmo.
Isso é um sinal de que estamos ávidos por narrativas que expliquem o complexo mundo em que neste momento mergulhámos, que procuramos histórias em que nos possamos encaixar e nos tragam sentido?
Não é só isso. Vivemos num mundo de mudanças muito rápidas, mas nem todos nós conseguimos assimilar essas mudanças da mesma maneira. Claro que com estas mudanças surgem muitos exageros, mas há muitas pessoas com medo dessas rápidas mudanças, pois elas incluem uma revolução de costumes, inclusive a nível ético e moral. Se alguém cresceu num contexto de ódio ou antipatia para com que se mostre diferente no plano sexual – os homossexuais, por exemplo –, torna-se difícil que aceite a revolução que está em curso. O feminismo, o crescente poder das mulheres… para algumas pessoas isso é difícil de aceitar. Todo este grupo de pessoas acaba, no fim, por se rever na linguagem que Trump e Bolsonaro usam.
Uma das características da atual extrema-direita é que graças às novas tecnologias da comunicação, com destaque para as redes sociais digitais, tornou-se mais fácil partilharem e reforçar uma narrativa comum (um conjunto de ideias e discursos) entre pessoas que antes estavam geograficamente dispersas e isoladas. Steve Bannon, um dos ideólogos da extrema-direita norte-americana e antigo conselheiro de Donald Trump na Casa Branca, pretende criar, por exemplo, um movimento de extrema-direita transnacional. Isto poderá ser uma realidade?
Curiosamente, estes movimentos, que também são ultranacionalistas, pela sua própria natureza não conseguem criar movimentos internacionais. Por exemplo, recentemente o Vox, partido de extrema-direita em Espanha, publicou um mapa em que Portugal surgia anexado a Espanha, o que obrigou o Chega, que se diz seu aliado, a demarcar-se disto. O nacionalismo de um vai sempre contra o nacionalismo do outro. Dois movimentos ou partidos ultranacionalistas, em países diferentes, não se conseguem aliar.
Isto, a meu ver, beneficia a democracia, pois uma grande aliança europeia ultranacionalista, por exemplo, parece-me algo que não prática nunca funcionará. Atentemos no caso do Mário Machado [antigo membro do grupo Hammerskins Portugal e fundador do movimento nacionalista Nova Ordem Social]: ele pode se um skinhead em Portugal, mas não pode ser skinhead na Alemanha, ele não seria aceite entre os skinheads alemães e mais depressa seria uma vítima, por ser português, do que um algoz. Em vez de dar pancada, ele é que acabaria a levar pancada.
“É preciso que se autorize a utopia, que as pessoas pensem para além daquilo que são lugares-comuns e se atrevam a pensar diferente e «saiam da caixa». É importante um pensamento mais radical.”
Mesmo assim, não teme que o futuro seja a humanidade a fechar-se em ilhas, cada país ou sociedade fechada sobre si própria e a acreditar que é autossuficiente e não precisa dos outros? E isso não está a suceder um pouco com o Reino Unido, após o Brexit e com toda a retórica inflamada que a levou a se separar da União Europeia?
É verdade que o Reino Unido se fechou mais, mas não o está a fazer com sucesso nem com vantagem para a sua população. Aliás, o que está a acontecer ao Reino Unido é um alerta para quem tem este tipo de ideias.
Todavia, Boris Johnson, que foi um dos grandes defensores do Brexit e é o atual primeiro-ministro, tendo ganho em 2019 as eleições legislativas com um vitória que deu ao Partido Conservador o maior número de deputados desde 1987, parece estar de pedra e cal no poder?
Vamos ver por quanto tempo isso assim será. O que está a suceder não me parece vantajoso para a população e ainda só estamos no início [o país saiu oficialmente da União Europeia a 31 de janeiro de 2020]. Coisas muito piores ainda poderão acontecer.
O que se está a passar com a democracia para, de momento, tanto se criticar este sistema político, um pouco por todo o mundo?
As democracias precisam de se reinventar. Como é que Donald Trump ganhou as eleições em 2016? Ele ganhou-as porque todo o sistema americano é extremamente arcaico, ele foi pensado para uma determinada época, pelo que não está adaptado para os tempos atuais. Como já referi, a maioria dos norte-americanos não votou nele quando foi eleito presidente. Já no Brasil, onde existe uma multiplicidade de partidos democráticos, predomina um sistema de corrupção.
Como é que um processo de reinvenção da democracia, capaz de a tornar num sistema político ainda melhor, pode ter início? Que ingredientes são necessários?
A primeira condição é que a pessoas dialoguem: é preciso haver debate. E isso já está a ser feito. Mas neste debate é preciso que se autorize a utopia, que as pessoas pensem para além daquilo que são lugares-comuns e se atrevam a pensar diferente e «saiam da caixa», como se costuma dizer. É importante dar autorização a um pensamento mais radical.
Por norma, o que é radical não é mal visto? Partidos e comentadores políticos, inclusive intelectuais, parecem transmitir uma mensagem que dá a entender que qualquer forma de radicalismo é mais prejudicial do que benéfica para a sociedade, esgrimindo diferentes argumentos em defesa dessa posição.
Há 150 anos defender um mundo sem escravatura era uma posição quase impensável. E se recuarmos dois mil anos reparamos que nem os profetas mais radicais, como Jesus Cristo, foram capazes de imaginar esse mundo. A Bíblia não imagina nem defende um mundo sem escravos porque isso parecia impossível.
Se eu disser que imagino um mundo sem exércitos, a maior parte das pessoas vão dizer que isso não é possível. Todavia, já há países que não têm um exército. A Costa Rica, por exemplo, é um deles.
A Islândia e o Panamá também não têm.
E, no entanto, são países que funcionam muito bem, entre muitas razões porque podem usar a verba que um exército regular gasta para outras coisas, nomeadamente para o seu desenvolvimento. Mas se alguém defender isto, atualmente, é visto como um ultrarradical. Não há nenhuma força política em Portugal ou na maior parte da Europa, por exemplo, que defenda esta ideia. Em Portugal, ainda por cima, isso seria muito fácil, pois um exército não me parece algo indispensável ao país.
O mesmo não sucede, de momento, com Angola ou Moçambique, por exemplo, onde ter um exército é mesmo importante. O facto de Moçambique não ter um exército em condições obrigou o país a pedir auxílio ao Ruanda e à África do Sul, para enfrentar o problema que existe em Cabo Delgado. Ou seja, para estes países é relevante ter um exército, mas para Portugal não é. No entanto, apesar da irrelevância de ter um exército, não há nenhum partido político que diga “vamos acabar com o exército”.
São este tipo de ideias que temos de começar a colocar em cima da mesa e debater.
A nível político, o «menu» de ideias e propostas que os partidos políticos apresentam aos eleitores não parece ser sempre igual, sejam quais forem os problemas (velhos ou novos) que é preciso solucionar?
Um dos problemas da democracia e talvez uma das razões que explica o aparecimento de forças de extrema-direita tem a ver com isso. Os partidos do centro, centro-esquerda e da esquerda foram perdendo a sua identidade. Tornaram-se iguais uns aos outros. Se recuarmos até 1975, o PS era absolutamente diferente do CDS-PP: mas um militante deste último partido, em 1975, hoje em dia provavelmente já estaria no PS.
O que quero dizer é que também é preciso que os partidos políticos se reinventem e voltem a defender ideais. Atualmente escutamos pouco a defesa de ideais.
“O sistema em que a maior parte dos países do mundo vive não está a conseguir resolver os nossos problemas. […] Estamos a sofrer com o aquecimento global e se seguirmos o atual caminho não resolvemos nada. Já chegámos a um ponto de não retorno.”
Qual o papel que um escritor, um intelectual, pode ter para agitar águas paradas e trazer mais criatividade e arrojo ao pensamento político?
Para um escritor é mais fácil defender certas ideias, como o fim dos exércitos, mas para um político isso é mais difícil, pois terá menos possibilidade de sucesso, de ganhar umas eleições.
Se o Agualusa escrever um livro onde conta a história de um mundo muito diferente do atual, os leitores podem adorar e comprar a obra, mas se ouvirem um político prometer exatamente o mesmo que descreve, eles poderão considerar que a ideia é insensata ou impraticável. Como se explica esta dissonância?
Mas é assim que uma utopia se instala. Uma utopia é contagiosa. Num primeiro momento não acreditamos naquilo, mas se existirem duas pessoas que acreditem então passa a ser mais fácil, começa a haver diálogo. A utopias passam à prática dessa forma, pouco a pouco, por contaminação. Contudo, o mais importante é autorizar a expressão dessas ideias e admitir que precisamos de utopias. O sistema em que a maior parte dos países do mundo vive não está a conseguir resolver os nossos problemas.
Quando escolhe o título O Mais Belo Fim do Mundo para o livro não se está a referir a uma qualquer espécie de apocalipse que trará o fim de tudo. É a sua forma de dizer que estamos no fim de ciclo de uma forma de estar e agir sobre o mundo, que é mesmo possível mudarmos e fazer diferente?
A civilização humana está encostada à parede. Estamos a sofrer com o aquecimento global, com tragédias como ciclones e secas, e se seguirmos o atual caminho não conseguimos resolver nada. Todos nós já percebemos isso. Neste momento o sul de Angola está a sofrer uma seca terrível, e todos os anos Moçambique é afetada por ciclones – sendo que a subida do nível do mar vai causar ainda maiores problemas –, isto só para dar dois exemplos. Eu sobrevoei a cidade da Beira quando o ciclone Idai [em 2019] a atingiu e parecia que tudo tinha sido tomado pela água.
Já chegámos a um ponto de não retorno [no que se refere às alterações climáticas]. Já chegámos… Isso ninguém pode ter dúvidas. Mesmo pessoas como o Trump, que tentam negar o aquecimento global, no íntimo sabem que aquilo que dizem não é verdade. Este tipo de negacionismo serve apenas para manter o apetite pelo lucro imediato, para que nada mude.
O período de pandemia que o mundo ainda atravessa é o momento ideal para refletir sobre o que afinal queremos para o futuro?
Sem dúvida. Eu, como escritor, nunca me teria atrevido a imaginar um mundo no qual os aviões não circulariam. Angola fechou todos os seus aeroportos. A cidade de Luanda esteve isolada do resto do país. Isto era inimaginável, mas aconteceu. O que nós percebemos com isto é que um vírus pode trazer custos económicos absurdos e elevadíssimos para todo o mundo. É por isso que eu acho que os países, os governos e as empresas terão de assimilar esta lição. Nós sabemos que se não fizermos nada outro vírus acabará por vir, provavelmente pior do que este. As nações e as instituições têm de aprender a atuar juntas, temos mesmo de conseguir mudanças.
A pandemia, o surgimento do coronavírus parece estar relacionado com a deflorestação, com a destruição de ecossistemas. Se assim é, então fica mais barato comer menos carne, por exemplo. Acredito que a maioria das pessoas acabará por aceitar este tipo de coisas.
Os assuntos que até agora abordámos surgem no livro que em breve será lançado. Que tipo de ideias e emoções espera suscitar com ele junto dos leitores?
Os bons livros suscitam inquietações. Eu quero que este livro crie inquietações sobre estes temas, sobre a necessidade de criar novas utopias, as deficiências das democracias e a necessidade de as reinventar.
*A apresentação do livro, que tem a chancela da Quetzal Editores, está agendada para o dia 6 de novembro, às 17h30, na Livraria da Travessa, em Lisboa. O escritor moçambicano Mia Couto será o principal convidado e falará sobre a nova obra de José Eduardo Agualusa.