Der führer hat immer recht, o líder tem sempre razão. Eis as cinco palavras em alemão que resumem a estrutura de governo do Terceiro Reich, durante o período de totalitarismo do Nacional-Socialismo (Nazismo), em linha com o chamado Führerprinzip, o Princípio do Líder, na base do qual está a ideologia de que o líder é infalível e que a sua palavra está acima de qualquer lei escrita. Diretamente ligada aos regimes ditatoriais e à política fascista, esta máxima remete para uma total obediência e lealdade à figura que detêm o poder soberano.
Voltemos a 2020, e foquemo-nos na Casa Branca, o coração político dos Estados Unidos. Em julho deste ano, em plena pandemia e com uma crise económica a crescer, o gabinete da presidência de Donald Trump decidiu que aquele era o melhor momento para entrevistar responsáveis de saúde e centenas de nomeados políticos, em várias agências federais, para os submeter a “testes de lealdade” e, assim, estancar possíveis fugas de informação comprometedoras para a campanha de reeleição de Trump. Ainda no início do seu mandado, em 2017, o presidente organizou um jantar a sós com o então presidente do FBI, James Comey, à revelia deste último, em que lhe pediu lealdade de forma reiterada – é preciso contextualizar que o FBI tem a obrigação de conduzir as suas investigações de forma apartidária, sendo que naquela altura estava a analisar uma possível interferência russa nas eleições de 2016. Poucos meses depois, e após algumas ameaças veladas, Comey acabou por ser demitido, sendo que só o descobriu depois de ver as notícias na televisão.
Apesar dos incontáveis escândalos políticos que pontuaram os quatros anos de Trump na Sala Oval da Casa Branca, cheios de casos que mostram um presidente que tem problemas em lidar com o estado de direito democrático, ao ponto de recusar a conceder a vitória nas eleições de 2020 ao democrata Joe Biden, alegando (falsas) evidências de fraude eleitoral, a verdade é que conseguiu reunir mais de 71 milhões de votos, tornando-se no segundo candidato mais votado de sempre, só atrás de Biden. Ou seja, Trump conseguiu seduzir todo um eleitorado que está em clara rota de colisão com a outra metade dos EUA. Como foi possível?
“Trump não é um político. Ele é [visto como] um ‘líder’, alguém em quem as pessoas projetam os seus próprios desejos”, sintetiza o jornalista estadunidense Michael Goldfarb, ao jornal The Guardian. Segundo opina, o caminho que criou um eleitorado tão polarizado nos EUA teve início com o Partido Republicano, há um quarto de século atrás e em resposta à popular presidência do democrata Bill Clinton, quando o GOP (Great Old Party – Grande Velho Partido), como também é conhecido, decidiu adotar uma estratégia de conseguir o poder absoluto com base numa agenda conservadora e radical, assente em cortes fiscais para os mais ricos. Para conseguir esse objetivo era preciso controlar a Casa Branca, o Congresso (constituído pela Câmara dos Representantes e Senado) e, não menos importante, apontar juízes para os tribunais federais que apoiassem essa mesma agenda.
Unificar o eleitorado republicano para a “guerra civil político-cultural”
Todavia, faltava uma pessoa capaz de unir as diferentes correntes que dividiam o eleitorado republicano, conforme assume Newt Gingrich, antigo presidente (speaker) da Câmara dos Representantes e o principal ideólogo desta agenda republicana, no livro que lançou em 2018, intitulado A América de Trump: A Verdade Sobre o Grande Regresso da Nossa Nação.
“A América está a meio de uma guerra civil político-cultural – uma luta pela nossa própria identidade como povo. Durante décadas, este conflito foi silenciosamente combatido nas câmaras municipais, salas de aula, direções de escolas, tribunais, praças públicas e assembleias de Estado. Contudo, a eleição do Presidente Trump clarificou as linhas de batalha desta luta e elevou estes combates individuais a um conflito nacional unido”, começa logo por escrever no primeiro capítulo.
Sem medir a linguagem que usa, Gingrich admite abertamente que o grupo unificado em torno do líder Trump representa valores incompatíveis com os de quem está contra ele e a agenda republicana. Ou seja, a polarização na sociedade estadunidense, em que temos dois lados de uma guerra de onde sairá um vencedor final, é vista como inevitável. Está explicado, em parte, a pouca importância que Donald Trump parece ter dado ao fato de o seu discurso político ser inflamadamente divisivo: “A América de Trump e a sociedade pós-Americana que a coligação anti-Trump representa são incapazes de coexistir. Não há espaço para compromissos. Trump compreendeu isto perfeitamente desde o primeiro dia”.
Para Michael Goldfarb, foi o “carisma de artista” de televisão do ainda presidente que o ajudou a vencer, até às recentes eleições, todos os rivais que encontrou e a “demolir as normas e costumes de governação”. “O que Gingrich viu nele foi o que metade do país viu: um fulano autoconfiante que não estava para as tretas de ninguém, movendo-se além da delicadeza retórica da política”.
Os ressentidos que perderam o comboio da transição económica
Muito já se escreveu sobre o papel dos média na ascensão de Trump, da forma laudatória e elevatória como o canal de televisão Fox News (ligada ao aparelho do Partido Republicano) o tratou, até à constante atenção que os órgãos de comunicação mais liberais davam a tudo o que dizia ou escrevia, passando pelas informações falsas que se ‘viralizavam’ nas redes sociais, muitas vezes vindas dos dedos do próprio presidente. No entanto, há todo um grupo diretamente responsável por tornar o ‘trumpismo’ numa forma legitimada de ver e entender o mundo: os mais de 71 milhões de norte-americanos que votaram no candidato republicano. Mas, o que os faz mover?
“Uma das condições centrais do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de dependência infantil com um outro, supostamente poderoso, a quem caberia protegê-lo, premiar seus esforços, reconhecer o seu valor. O ressentimento também expressa a recusa do sujeito em sair da dependência: ele prefere ser protegido ainda que prejudicado, do que livre mas desamparado.” Quem tece esta explicação é Maria Rita Kehl, psicanalista e colunista brasileira, no site A Terra é Redonda, ao abordar o papel do sentimento de ressentimento na realidade sociopolítica. “Ressentir significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegámos, num momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar. […] O ressentido não é alguém incapaz de esquecer ou de perdoar; é um que não quer esquecer, ou que quer não esquecer, não perdoar, nem superar o mal que o vitimou.”
Num artigo publicado antes de Trump ter ganho as presidenciais de 2016, e posteriormente reeditado pela revista Scientific American, os psicólogos Stephen Reicher e Alexander Haslam explicaram como é que um homem de negócios, e figura do espetáculo televisivo, usou com perícia alguns dos princípios da psicologia de grupo. Um dos exemplos foram os seus famosos comícios políticos, os quais, segundos os dois investigadores, eram “festivais” que conseguiam criar um sentimento de identidade comum entre quem marcava presença.
Os comícios tinham sucesso no seu intuito porque várias características semelhantes podem ser observadas nos apoiantes de Trump, salientam Reicher e Haslam. Além de uma falta de confiança na política, nos políticos e nas instituições políticas, os seus seguidores são, tradicionalmente, pessoas que perderam o comboio da transição económica nos Estados Unidos, de uma indústria manufatureira para uma outra mais diversa, global e assente na informação. Trata-se de norte-americanos que fazem parte de um setor da economia em declínio, afetado por acordos de comércio-livre e pela competição dos produtos de baixo-custo, produzidos noutras partes do mundo. O sentimento de ameaça ao seu modo de vida, uma ameaça que entendem como vinda do interior do país e de fora, parece, assim, ser um elemento que os identifica e une.
Deixou de existir uma identidade comum com o ‘outro’, com o ‘estrangeiro’
O sociólogo Richard Sennet, da London School of Economics, prefere apontar o dedo a outras características aglutinadoras dos apoiantes de Trump, mas sem deixar de salientar que são, em parte, produto de uma perda de memória de uma identidade coletiva mais abrangente. Falamos do racismo e da xenofobia.
“Em parte, a base de Trump está tentando descobrir como usar a sua branquitude como ferramenta política, mobilizando uma noção de pureza e integridade nostálgicas, vinculada à cor da pele”, frisa ao The Guardian. “A exclusão dos estrangeiros – como quando Trump chamou aos migrantes mexicanos de «violadores» e «criminosos» – e a segregação de negros dentro do país são justificadas pela mesma razão: ambos os grupos são tratados como «corpos impuros». Mas só o racismo não explica a agressividade escarnecedora, a crueldade da base em relação a outros americanos.”
Sennet foi um dos coautores do estudo The Hidden Injuries of Class (As Feridas Escondidas da Classe Social, em tradução livre), publicado em 1993, o qual teve como amostra um reduto branco, da classe trabalhadora e democrata, da cidade de Boston. Muitas das famílias observadas estiveram em contato, dentro dos EUA e lá fora, com outras pessoas, devido à Segunda Guerra Mundial, pessoas com os quais partilhavam algo em comum: passaram por um sentimento de insegurança durante a grande crise económica que abalou o globo, nos anos de 1930. Mas todas essas memórias compartilhadas começaram a desvanecer por volta da década de 1970.
“Algo lhes parecia faltar, tanto nas suas comunidades locais como nos seus propósitos de vida. Essa ausência deixou-os irritados – irritados com os outros; o que foi expresso na convicção de que as elites e as classes inferiores, tanto os programas socialmente conscientes da Fundação Ford como também o gueto, estavam em conluio contra os americanos decentes e trabalhadores como eles”, recorda o sociólogo. “Expresso politicamente, esse sentimento inflou a base de apoio a Trump na última eleição. Os seus eleitores são uma mistura de reformados, trabalhadores industriais, proprietários de pequenas empresas e prósperos moradores dos subúrbios, incluindo uma fatia surpreendentemente grande de negros de classe média.”
Mais. “A base de apoio a Trump é animada por uma espécie de jogo de soma zero perverso, que permite que as pessoas se sintam melhor consigo mesmas colocando os outros abaixo de si. Inversamente, o reconhecimento de que os outros têm necessidades e direitos próprios parece ameaçar as suas necessidades e direitos. Este jogo de soma zero alimenta a hostilidade dos apoiantes de Trump em relação aos outros. Em última instância, é um jogo em que o jogador não pode ganhar – colocar os outros abaixo de si não pode, no fim, tornar alguém numa pessoa mais forte. Estas pessoas têm uma espécie de vício para com este jogo. Elas tentam sentir-se melhor consigo mesmos, mas não conseguem, então continuam a jogar, tentando converter a sua raiva e desprezo em autoestima. A consequente frustração empurra-os cada vez mais para o extremo.”
Para Adam Toozen, historiador da Universidade Columbia de Nova Iorque, faltou nas eleições presidenciais de 2020 uma clara rejeição, um “repúdio abrangente”, a Donald Trump. Apesar de ter perdido o voto popular, continuou a ser o campeão dos eleitores nas pequenas cidades e nas áreas rurais predominantemente brancas.
“Mesmo que Joe Biden seja empossado como presidente, será difícil aos seus apoiantes conciliarem-se com o fato de que Trump não foi vaiado em desgraça para fora do maior palco da política mundial”, analisa para o The Guardian. “Esta não é apenas uma verdade inconveniente para os Estados Unidos, ela também tem implicações para o resto do mundo”, dispara.