
Nos últimos anos, os dados sobre excesso de peso e obesidade infantil mostravam sinais de melhoria. Mas, em 2022, a tendência inverteu-se: em Portugal, 32% das crianças têm excesso de peso e 15% são obesas. Apesar de, desde 2017, existirem regras claras que restringem alimentos com excesso de açúcar e sal nas escolas públicas, as creches e jardins de infância continuam sem enquadramento legislativo. Ao mesmo tempo, a literacia alimentar da população permanece baixa — em 2017, 40% dos portugueses não sabiam interpretar um rótulo — e a resistência cultural a mudanças alimentares mantém-se enraizada.
Em paralelo, cresce também o interesse de muitos pais e cuidadores em garantir uma alimentação mais saudável desde os primeiros meses de vida. Com muito ruído, mas também informação e união, as redes sociais têm fervilhado. Foi precisamente um movimento cívico, impulsionado no Instagram, que levou uma petição à Assembleia da República, resultando numa resolução com recomendações ao governo sobre a alimentação em contextos de infância precoce.
Entre as propostas estão a obrigatoriedade de menus elaborados e assinados por nutricionistas, a formação dos profissionais que preparam e servem refeições e uma presença mais consistente destes especialistas nas escolas. A bastonária da Ordem dos Nutricionistas, Liliana Sousa, conversou com o SAPO sobre as mudanças necessárias, as desigualdades existentes e o papel crucial da nutrição nos primeiros mil dias de vida.
Entre 2008 e 2019, parecia haver progressos na redução do excesso de peso e obesidade infantil, mas em 2022 os dados mostram que a tendência se reverteu. Que impacto teve a covid-19 nesta evolução?
As medidas implementadas estavam a produzir resultados positivos. Contudo, a pandemia trouxe uma realidade inesperada. O confinamento forçou uma maior inatividade das crianças e alterou significativamente os comportamentos alimentares, tanto das crianças como dos adultos. A alimentação tornou-se um refúgio emocional. Com as restrições ao acesso aos alimentos, a ida ao supermercado deixou de ser livre, e assistimos a um aumento no consumo de produtos menos saudáveis. O medo e a ansiedade também desempenharam um papel importante neste comportamento.
“Recuámos uma década naquilo que eram os resultados que estávamos a conseguir”
A conclusão a tirar é que, muito provavelmente, os resultados estavam assentes em medidas muito frágeis. De tal forma eram frágeis que, muito rapidamente, recuámos dez anos naquilo que eram os resultados que já se estavam a conseguir.
Em 2019, cerca de 29 a 30% das crianças tinham excesso de peso. Em 2022, esse número subiu para 32%. Pode parecer uma diferença pequena em termos percentuais, mas no universo infantil tem um impacto significativo.
Como é que se inverte esta tendência?
É fundamental garantir articulação e colaboração entre todos os sectores envolvidos: saúde, educação, indústria, setor social. O que temos hoje são medidas avulsas — muitas com mérito individual — mas que carecem de ligação entre si. Por exemplo, temos políticas fiscais sobre bebidas açucaradas, restrições alimentares nas escolas públicas e alguma aposta na educação para a saúde. Tudo isso é positivo, mas não está integrado. Há um défice de resposta eficaz às situações identificadas pelos estudos.
Há também uma falta de literacia alimentar generalizada no país. Em 2017, um estudo dizia que 40% dos portugueses não sabiam ler rótulos. Mas, mesmo que haja informação, como se lida com a resistência cultural e com expressões como “um docinho não faz mal”?
Nós temos sempre muita pressa de ir buscar o resultado, de ter o objetivo mensurável. Mas essa base é fundamental, é pouco palpável, é muito difícil de implementar e de medir porque estamos a falar na população em geral.
Não vale a pena trabalharmos um elemento do núcleo familiar se os outros não forem trabalhados — essa pessoa dificilmente conseguirá aplicar mudanças de forma transversal.
A informação deve ser clara, cientificamente validada e acessível. Só com essa informação é que a população pode fazer escolhas livres e conscientes.
Pode haver produtos carregados de açúcar na sua composição que, se a população efetivamente quiser ter saúde, não vai escolhê-los. E se não houver procura, a oferta diminui. Este comportamento influencia toda a cadeia.
Sabemos que o problema das escolas, relativamente à restrição de produtos nos bares, não teve o efeito esperado. Os bares têm regras, mas na periferia das escolas a oferta alimentar manteve-se inadequada.
“Como a literacia não gera resultados imediatos, é pouco apelativa politicamente.”
Isso também se nota na forma como muitas medidas são recebidas. Se os pais compreendessem que estas medidas servem para proteger a saúde das crianças, não reagiriam com resistência. Muitas vezes são os próprios pais que enviam de casa os produtos proibidos, contrariando o objetivo da política. Quando uma medida é imposta sem clarificação e sem formação, tende a ser rejeitada.
Esta formação poderá passar pelos centros de saúde e médicos de família?
A escassez de recursos humanos nos cuidados de saúde primários é um problema estrutural. Atualmente, existem pouco mais de 130 nutricionistas nos cuidados de saúde primários para todo o país. Estão ocupados, sobretudo, com tratamento de doenças, o que limita a capacidade de atuar na prevenção.
“O conceito de nutricionista de família, à semelhança do médico de família, seria muito valioso”
O conceito de nutricionista de família, à semelhança do médico de família, seria muito valioso. É no núcleo familiar que se formam os hábitos alimentares. E sim, o papel da Ordem é também sensibilizar para esta importância. Temos promovido formações e queremos ser um canal de informação credível para a população.
Sobre o papel do nutricionista no Serviço Nacional de Saúde: quantos há e onde estão alocados?
Atualmente, somos cerca de 500 nutricionistas no SNS. Mais de 300 estão em cuidados hospitalares e pouco mais de 130 em cuidados de saúde primários. É um desequilíbrio preocupante.
“Continuamos muito focados no tratamento e pouco na prevenção.”
Para mudar isso, é preciso investimento — não só em mais profissionais, mas também em melhores condições de trabalho e reconhecimento.
Há muitos profissionais de nutrição e muita informação sobre alimentação nas redes sociais, mas há também muito ruído. Qual é o papel da Ordem neste contexto?
Muitos nutricionistas utilizam as redes como ferramenta de trabalho e de comunicação — sobretudo após a pandemia —, e isso pode ser positivo. A Ordem não pode limitar a liberdade de expressão dos profissionais, desde que esta não infrinja o código deontológico.
Claro que há desafios: quando a atuação de um profissional põe em risco a saúde pública ou promove produtos de forma incorreta, a Ordem pode e deve intervir disciplinarmente. Mas a regulação deste novo modelo de comunicação evoluiu mais depressa do que os próprios códigos deontológicos. Estamos a acompanhar esta realidade e a trabalhar para reforçar a literacia através de conteúdos próprios, fidedignos e acessíveis à população.
Nas redes sociais, há muitas verdades contraditórias, mesmo entre profissionais. Como se lida com isso?
Nem sempre posições diferentes são erradas. Há profissionais mais restritivos na abordagem alimentar, outros mais permissivos. Desde que as orientações não prejudiquem a saúde da criança e não se promovam extremismos, ambas podem ser válidas.
A Ordem não é uma entidade policial e só atua quando há riscos para a saúde pública. Mas é fundamental que a informação divulgada tenha base científica e que os profissionais saibam comunicar com responsabilidade.
Um dos temas debatidos recentemente foi a regulamentação da alimentação em creches e berçários, mesmo havendo legislação em vigor para as escolas desde 2021. Porque é que este tema está só agora está a ser discutido para as faixas etárias mais jovens?
Não posso afirmar com certeza, mas acredito que a falta de articulação entre ministérios — da Educação e da Segurança Social — tenha contribuído para esse atraso. [As creches e berçários estão sobre a tutela da Segurança Social enquanto o ministério da Educação é o responsável pelo ensino do pré-escolar ao secundário.] Além disso, durante muito tempo, o acesso às creches foi visto como um privilégio e não como um direito universal. Com a mudança de paradigma, surgiu a preocupação legítima com a qualidade da alimentação nesta faixa etária.
Esta recente atenção ao tema da alimentação nas creches surgiu a partir de uma petição cidadã, promovida por Carolina Almeida, uma pessoa fora da área da nutrição. Como vê a Ordem esta iniciativa vinda da sociedade civil?
Do ponto de vista pessoal e institucional, vejo com naturalidade e até com agrado. Qualquer cidadão tem o direito — e até o dever — de participar na melhoria da comunidade. A Ordem não pode promover petições formais, mas apoiou esta iniciativa, participou nas audições e congratula-se com a aprovação da resolução na Assembleia da República.
Mais importante do que a origem da proposta, é o seu conteúdo e o impacto positivo que pode ter na saúde das crianças.
Há pouco referiu a importância de reforçar a presença de nutricionistas nas escolas. Em que ponto está esse projeto?
Já iniciámos esse trabalho, em colaboração com o Ministério da Educação. Há nutricionistas nas direções regionais de educação, mas ainda com atuação muito limitada. A nossa proposta passa por colocar um nutricionista em cada agrupamento escolar, alguém que conheça o terreno, que estabeleça pontes com os profissionais de saúde e com a comunidade educativa.
Iniciámos um projeto-piloto com o Ministério da Educação para reforçar a presença de nutricionistas nas direções regionais. A ideia é que, a médio prazo, possamos ter um nutricionista por agrupamento escolar. Este profissional não substituirá os nutricionistas das autarquias ou das empresas de catering, mas complementará esse trabalho. Terá um papel-chave na promoção da saúde alimentar, na formação de professores e auxiliares, e na identificação precoce de situações de risco — como alergias alimentares, distúrbios de peso, ou comportamentos alimentares desajustados.
Ter um nutricionista nas escolas permitiria também dar apoio técnico aos docentes e garantir que a informação transmitida está alinhada com as recomendações de saúde pública.
O ensino privado tem regras diferentes do público no que toca à alimentação. Como se pode uniformizar esta realidade?
O setor privado não está sujeito às mesmas restrições e isto cria uma sensação de injustiça. O facto de poderem fazer não significa que estejam a fazer bem. Por vezes, na mesma família, um filho tem acesso a alimentos processados numa escola privada e outro não os pode consumir numa escola pública.
“A formação e a literacia alimentar deviam ser transversais a todo o sistema educativo, independentemente da tutela.”
Uma das recomendações passa por obrigar a que os menus das escolas sejam assinados por nutricionistas. Qual é a relevância disto?
A assinatura de um nutricionista garante que aquele plano alimentar foi elaborado com conhecimento técnico. No entanto, é apenas um primeiro passo. Muitas vezes, o nutricionista é contratado apenas para elaborar as ementas, sem qualquer intervenção na sua execução.
Às vezes há alguma alteração do ponto de vista do transporte ou alguma alteração do próprio produto que impede que ele seja utilizado e, portanto, é preciso dar resposta a estas situações com substituições equivalentes àquilo que estava previsto na ementa.
O que nós sabemos que acaba por acontecer muitas vezes é que são introduzidos pratos fritos, os ditos rissóis e croquetes e outros tipos de produtos que em nada têm a ver com a composição nutricional esperada. Assumir-se apenas uma ementa assinada por um nutricionista como a garantia de que aquela alimentação vai ser adequada é frágil. Não é suficiente. A monitorização, a verificação, o acompanhamento de todo o processo, com a exigência de uma maior presença do profissional em cada local, é fundamental.
E quanto à formação de quem confeciona ou serve as refeições? Educadores, auxiliares, cozinheiros?
Os manipuladores de alimentos e os profissionais que lidam com as crianças diariamente devem receber formação. Nas empresas concessionadas, por exemplo, isso está por vezes previsto nos cadernos de encargos, e as ações de formação são asseguradas pelos nutricionistas dessas empresas.
Mas onde esse vínculo não existe, essa formação nem sempre acontece. E sem formação, as boas práticas não se consolidam. O nutricionista pode e deve desempenhar esse papel de sensibilização e formação junto das equipas.
Além disto, os nutricionistas têm competências para gerir stocks, planear menus com base na oferta existente e evitar o desperdício. Trabalhamos, por exemplo, com o Banco Alimentar, onde muitas vezes os produtos têm validade muito curta. O nutricionista tem de saber integrar esses produtos nas refeições sem comprometer a segurança e a qualidade nutricional. Essa capacidade de adaptação é essencial.
Os extremismos são sempre maus e não gosto de diabolizar o mercado ou a indústria.
O que é que está atualmente errado ou que é mais urgente mudar nas creches e jardins de infância?
É sempre uma resposta difícil porque parece que estamos a fazer acusações, mas acho que aquilo que neste momento está nas nossas mãos é a possibilidade de melhorar a alimentação das crianças com menos – com menos produtos potencialmente nocivos.
Acho que os extremismos são sempre maus e sei que também há muito a atitude de cortar com tudo o que existe no mercado e eu não gosto de diabolizar o mercado ou a indústria.
Mas colocando-me no papel de responsável de um berçário, eu quero oferecer àquelas crianças as melhores condições para garantir um crescimento adequado. E, portanto, se eu sei que do ponto de vista industrial, posso ter papas com um teor mais baixo em açúcar, com teor mais baixo em gorduras saturadas e em sal, eu devo privilegiar essas escolhas.
Depois há aqui outra questão — a gestão económica também pesa e as contas feitas no final do mês muitas vezes determinam também as escolhas. Mas não temos de dar papa industrial às crianças todos os dias. Se nós pudermos, no fundo, num dia ter uma papa devidamente escolhida — nomeadamente pelo nutricionista, sugerida àquele lanche — mas no dia seguinte pudermos optar por uma escolha mais natural (com produtos frescos, com um teor ainda mais reduzido ou até, de preferência, com zero açúcares adicionados), estamos a contribuir para um crescimento saudável e equilibrado.
Mas diria que ainda há uma dificuldade em romper com hábitos antigos — como o leite com chocolate diário, ou papas excessivamente doces. Também me recordo de colégios onde se servia pão com cremes achocolatados ao lanche.
"A verdade é que a gestão económica também pesa nas decisões, mas há alternativas saudáveis e economicamente viáveis."
Portanto, acho que nem oito nem oitenta, caso contrário, corremos o risco de as crianças não comerem porque não gostam de nada, porque não têm sabor, porque é sempre igual, e também não é isso que queremos.
E quanto à presença de uma opção vegetariana nos menus escolares? Sei que nem sempre é bem vista por algumas famílias e é uma das recomendações na petição entregue na Assembleia da República.
A opção vegetariana deve ser vista como uma oportunidade educativa. Não se trata de impor um modelo, mas de familiarizar as crianças com uma alimentação diversificada e sustentável. A produção de proteína animal tem um impacto ambiental relevante, e sabemos que o consumo de carne é, muitas vezes, excessivo.
É verdade que houve resistência por parte de algumas famílias, quando algumas escolas optaram por ter um “dia vegetariano”. Mas, na maior parte das vezes, as crianças aderiram bem. O problema não era as crianças não comerem aquele prato, eram os pais que achavam que aquele prato não era adequado e que as crianças estavam a passar fome. As crianças até achavam piada.
Isto acaba por ser também um indicador de que há sempre esta necessidade de adaptação e que o nutricionista pode ser esse elemento que ajusta, que adapta, que vai à procura da melhor solução. Porque nós temos contextos, famílias e hábitos diferentes, e, portanto, uma política alimentar escolar não pode ser rígida — tem de ser flexível o suficiente para se conseguir adaptar àquilo que são as realidades com que se confronta.
Fala-se muito na importância dos primeiros mil dias de vida. O que está em causa nestes primeiros mil dias?
Os primeiros mil dias de vida, que começam ainda antes da conceção, com a preparação da gravidez, são determinantes para o estado de saúde ao longo da vida. A alimentação é a base da nossa saúde. Quando falamos em garantir um bom estado nutricional, não nos referimos apenas ao peso: estamos a falar da composição corporal, da proporção adequada entre massa magra e massa gorda, das reservas energéticas, da saúde metabólica.
Vivemos mais anos, mas infelizmente vivemos pior esses últimos anos. As doenças crónicas — como diabetes, hipertensão ou mesmo alguns tipos de cancro — estão cada vez mais associadas a hábitos alimentares inadequados desde a infância. Hoje, sabemos que esses hábitos podem condicionar a saúde não só na idade adulta, mas desde os primeiros anos.
“No primeiro ano de vida, o crescimento é explosivo, e nunca mais será assim.”
Os alicerces lançados nessa fase são decisivos. Claro que não é uma garantia contra todas as doenças, mas reduz significativamente o risco de desenvolver doenças evitáveis e de ter uma vida adulta marcada por problemas de saúde.