Da psicologia clínica à terapia da fala, passando pela musicoterapia, há de tudo para ajudar quem mais precisa. E num país em que uma em cada cinco crianças e adolescentes tem pelo menos uma perturbação mental e praticamente um terço dos jovens apresenta sintomas depressivos, uma casa 100% dedicada à saúde mental dos mais novos, cujos serviços chegam mesmo a quem não tem recursos para procurar ajuda profissional, conta muito. Foi esta a missão que a presidente executiva da Fundação do Gil abraçou. Ao abrir as portas de um projeto adiado, a Clínica do Gil, Patrícia Boura realizou há três meses o sonho de poder dar a mão a estes miúdos, cuja situação se tornou mais visível com a recente pandemia e os consequentes confinamentos que perturbaram a vida de todos. A a ambição não é pequena, conta a responsável, em entrevista ao SAPO.
Portugal é um país em que pouco se fala de saúde mental, e ainda menos de saúde mental de crianças e jovens. A Clínica do Gil pretende preencher esta necessidade social?
A Clínica do Gil surge como uma resposta clara à necessidade crescente de cuidados em saúde mental para crianças e jovens em Portugal. Reconhecendo que a saúde mental infantil é um tema pouco discutido no país, queremos colmatar esta lacuna, oferecendo serviços abrangentes e acessíveis para a comunidade. Com base nos dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), que indicam que uma em cada cinco crianças necessita de apoio psicológico, a Clínica do Gil nasceu para responder a esta realidade. A nossa missão é democratizar o acesso a cuidados de saúde mental infanto-juvenil, através de um modelo socialmente inclusivo, com preços ajustados ao mercado e preços sociais para famílias em situação de vulnerabilidade. Portanto, não só preenche uma necessidade social como também promove uma mudança transformadora na vida das crianças e jovens, reforçando a importância de uma intervenção precoce e holística em saúde mental.
Citou os números da OMS, mas em Portugal qual é a realidade específica que se vive?
Em Portugal, o panorama da saúde mental, especialmente entre crianças e jovens, é preocupante. De acordo com dados também do Ministério da Saúde, 20% das crianças e adolescentes têm, pelo menos, uma perturbação mental e quase 31% dos jovens no país têm sintomas depressivos, a maioria moderados ou graves. Se os dados revelam que uma em cada cinco crianças necessita de apoio em saúde mental, só 20% recebem os cuidados necessários, o que demonstra uma carência significativa na oferta de serviços de saúde mental infantil e juvenil no país e coloca muitas crianças e jovens em risco de não receberem o tratamento adequado.
A pandemia piorou esta realidade ou foi um alerta para problemas antigos que estavam até então mais escondidos?
Sim, a pandemia da covid-19 agravou ainda mais esta realidade, funcionando como um catalisador para problemas antigos que até então eram muitas vezes ignorados ou estavam subvalorizados. A Clínica do Gil reconhece que o impacto da pandemia na saúde mental das crianças e jovens foi significativo, expondo e intensificando problemas como ansiedade, depressão e isolamento social. No entanto, muitos destes problemas já existiam antes; a crise de saúde pública trouxe foi uma maior consciência para a urgência de respostas eficazes. Ou seja, a pandemia não só piorou uma situação já frágil, como também foi um alerta para problemas estruturais que há muito precisavam de maior atenção. E a falta de resposta atempada por parte do serviço nacional de saúde (SNS) em áreas cruciais como a pedopsiquiatria e a psicologia infantil foi também evidenciada durante este período.
A Clínica do Gil tem um caráter social que passa por disponibilizar estes cuidados a todos.
A Clínica adota um modelo de negócio social, cujo objetivo é garantir que os cuidados de saúde mental estejam acessíveis a todas as crianças e jovens, independentemente da sua situação socioeconómica. Este caráter social reflete-se na estrutura de preços da clínica, que oferece tanto consultas a valores de mercado quanto a valores sociais para famílias em situação de vulnerabilidade.
Como é que isso funciona, na prática? Quem pode ali dirigir-se e ser acompanhado?
Na prática, a clínica funciona através de um sistema de autossustentabilidade: as famílias com maior capacidade financeira que optam por pagar os serviços a preços de mercado ajudam a sustentar o acesso a consultas com valores reduzidos para aquelas que não têm recursos suficientes. Além disso, a Clínica do Gil criou um Fundo de Apoio Social, em parceria com empresas que permite que crianças em acolhimento ou em situações vulneráveis possam receber tratamentos gratuitamente. Qualquer criança ou jovem pode ser acompanhada aqui, incluindo crianças acolhidas pela Casa do Gil, crianças da comunidade em geral e famílias que necessitam de apoio financeiro. Esta abertura a toda a população reforça o compromisso social da clínica em democratizar o acesso a cuidados de saúde mental.
E como é que se financia um projeto destes?
A Clínica do Gil financia-se através de um modelo de negócio social, que combina receitas provenientes de consultas a preços de mercado com preços sociais ajustados à capacidade financeira das famílias. Este sistema permite que as famílias que podem pagar o valor integral dos serviços contribuam para a sustentabilidade da clínica, enquanto subsidiam o acesso a cuidados de saúde mental para crianças e jovens de famílias mais vulneráveis. Além disso, a clínica conta com o apoio de um Fundo Social, criado em colaboração com empresas, que visa garantir que crianças em situações de vulnerabilidade, como as institucionalizadas ou provenientes de famílias com dificuldades financeiras, possam ter acesso gratuito aos serviços. Este fundo suporta os custos das terapias para aqueles que não as podem pagar. Este modelo de financiamento garante a autossustentabilidade do projeto, permitindo que a Clínica do Gil cumpra a sua missão de oferecer cuidados de saúde mental de qualidade a todas as crianças, independentemente das suas condições económicas, sendo nosso objetivo ter 50% de consultas a preços de mercado e 50% a preços sociais ou bolsas.
Em três meses de atividade, quantas crianças já passaram pela Clínica e quantos profissionais têm a acompanhá-las?
Nos primeiros três meses de atividade, a Clínica do Gil fez mais de 300 consultas. O nosso objetivo é fazer 300 consultas por mês, para podermos acompanhar o maior número possível de crianças. Sabemos que é um caminho difícil, com muitas necessidades de comunicação e divulgação para podermos atingir os nossos objetivos, mas estamos a fazer o nosso caminho. Estas crianças são acompanhadas por uma equipa multidisciplinar de vários profissionais, que inclui especialistas de várias áreas como pedopsiquiatria, psicologia, terapia da fala, terapia ocupacional, psicomotricidade e outras terapias essenciais para a saúde mental e desenvolvimento das crianças.
Então e de que forma é que se pode ajudar a Clínica a chegar a mais crianças e jovens?
Há diversas formas de colaboração. Uma das principais é através da utilização dos seus serviços por famílias que têm capacidade financeira para pagar consultas a preços de mercado. Este apoio é fundamental, pois permite que a clínica se mantenha autossustentável e, ao mesmo tempo, possa oferecer consultas a preços sociais, garantindo que crianças de famílias mais vulneráveis também tenham acesso aos cuidados de que necessitam. Outra forma de contribuir é por meio de donativos para o Fundo de Apoio Social, criado em parceria com empresas e indivíduos. Este fundo é essencial para que a clínica consiga proporcionar atendimento gratuito a quem necessita. Por fim, divulgar a missão da Clínica do Gil é igualmente importante. Divulgar a clínica e os seus serviços. A partilha de informação sobre o trabalho que a clínica realiza, seja nas redes sociais, em eventos ou através de parcerias, ajuda a sensibilizar mais pessoas e empresas para a causa, aumentando o número de apoios e possibilitando que a clínica continue a expandir o seu alcance e serviços. Desta forma, a Clínica do Gil poderá continuar a fazer a diferença na vida de cada vez mais crianças e jovens que precisam de apoio em saúde mental.