No verão de 2018, três austríacos decidiram fundar o coletivo The Refusal, tendo depressa começado a fazer intervenções artísticas naquilo a que apelidam de “espaços públicos dos jogos digitais”, ou seja, dentro do ambiente dos videojogos multijogador, em que várias pessoas podem jogar entre si e em simultâneo. O alvo preferencial deste coletivo são os jogos de guerra, aplicando táticas criativas e nada habituais que transformam os soldados que controlam, dentro do ambiente de determinado jogo, em inesperados pacifistas desobedientes: não atacam nenhum outro jogador, mantém-se escondidos e a salvo, usam todos os métodos (permitidos pela mecânica do jogo) para impedir que outros possam levar a cabo as suas missões de combate e ferir ou matar, além de que tentam convencer outros jogadores a fazer o mesmo que eles.
Na prática, estamos perante verdadeiros trolls dos jogos digitais multijogador, desestabilizando e enfurecendo quem ali está para jogar conforme as regras e metas que foram definidas.
Mas são precisamente essas regras, ou, mais especificamente, a arquitetura definida pelos criadores dos jogos, que o coletivo quer desafiar, colocar em causa e obrigar a uma reflexão. A sua principal crítica é a de que a vasta maioria dos videojogos contemporâneos se caracteriza por uma jogabilidade (isto é, todas as interações e experiências que são permitidas pelo sistema aos jogadores) que tem como único caminho o conflito violento, o combate, e a liquidação do ‘outro’ como forma de avançar no jogo.
Vamos a factos. Os videojogos, em definitivo, há muito que deixaram de ser vistos como uma ‘coisa de miúdos’. Esse estereótipo morreu, com jovens e adultos de todas as idades a alimentar um negócio que, em 2020, conseguiu lucros que chegaram a uns estonteantes 191 mil milhões de dólares, tornando-o num dos mais lucrativos a apetecíveis do mundo. A título de comparação, a indústria do cinema, a nível mundial, só chegou aos 100 mil milhões de dólares em 2019.
O poder cultural dos videojogos tornou-se imenso, assim como a sua capacidade de influência, daí que o foco do coletivo The Refusal esteja dirigido para estes artefactos culturais, especialmente numa sociedade em que a linha de divisão entre o digital (virtual) e a realidade parece desvanecer-se a cada dia que passa.
Atentemos num caso concreto. É possível, num videojogo de guerra, desertar? De forma alguma, diz o coletivo de artistas. Tal nunca é contemplado como opção, apesar de a deserção ser algo bastante comum nas guerras reais, sendo um mecanismo de defesa bastante humano. No ambiente virtual, existe sempre uma qualquer barreira invisível que obriga o jogador a manter-se no recinto de jogo, ou, então, quando foge do campo de batalha, ecoa um aviso de que tem de voltar ao mesmo, acabando abatido (nunca se chega a saber por quem) quando não o faz. A mensagem que se transmite é inequívoca: a deserção não leva a lado algum e tem de ser tratada com inclemência.
É precisamente isto que dão a mostrar e a entender num vídeo que recentemente publicaram, projeto a que deram o nome de How to Dissapear, e no qual é igualmente possível ver as rocambolescas (mas eficazes) táticas de desobediência pacifista que os artistas de intervenção aplicaram no jogo Battlefield V. Vinte minutos de filme onde se reflete sobre a forma como os videojogos podem moldar (distorcer) o nosso entendimento de como é a guerra no mundo real, quais os comportamentos a seguir, mas também o como se pode ‘resistir’.
Para o crítico de videojogos Ryan Martin, da revista online Superjump, algumas das mais importantes lições para estes novos tempos que vivemos podem vir, precisamente, dos videojogos, daí que tenhamos de estar atentos à forma como os seus criadores arquitetam e escrevem um jogo que tem como trama principal o conflito.
Num artigo publicado em maio deste ano, o jornalista apresentou uma mão cheia de problemas que, a seu ver, podem facilmente ser resolvidos através de alguns ajustes, sem comprometer a jogabilidade. O objetivo? Dar ao jogador uma contextualização que o aproxime o mais possível do que é a realidade e a complexidade de um conflito, as suas consequências para todas as partes envolvidas, sem que se cometa o pecado de simplificar em demasia a história com que o ser humano vai interagir.
O “outro” é sempre o inimigo
“Nos videojogos, esta característica está quase sempre embutida nos princípios básicos da jogabilidade”, salienta Ryan Martin. Ou seja, o inimigo que enfrentamos surge revestido de características e motivações diferentes das nossas, mas, acima de tudo, é criada uma barreira que o separa irremediavelmente do jogador, usando-se processos de desumanização do ‘outro’ – tal como ocorre nos conflitos do mundo real – que ajudam a justificar a violência (até à morte) que é cometida sobre ele.
Para começar, a mira (por nós controlada) que surge no ecrã fica vermelha quando a direcionamos para um inimigo, mudando para verde quando se trata de um aliado ou amigo. Mas isso é o menos. “Os inimigos tendem a parecer diferentes e movem-se de forma diferente do jogador. Muitas vezes, são as únicas personagens não jogáveis a quem se pode causar dano. Nos jogos em que existe um sistema de progressão [em que a personagem controlada torna-se mais forte à medida que ganha pontos], podemos obter pontos de experiência, ou alguns recursos, quando matamos personagens rotuladas como inimigas. Os inimigos estão muito claramente definidos como sendo diferentes de nós, do jogador e de personagens não jogáveis amigáveis. Isto, por norma, é combinado com uma narrativa que dá uma qualquer justificação para vermos estas personagens como merecedoras de morrerem” explica.
É por isso que, nos jogos que exploram o fantástico, lutamos contra extraterrestres, zombies ou feras com poderes mágicos, por exemplo, enquanto nos jogos mais realistas o ‘outro’, o que pode ser abatido, encaixa-se numa “categoria genérica, como um terrorista, um soldado inimigo, um criminoso” ou até um polícia. “É raro ganharmos um entendimento sobre quem são estas personagens não jogáveis [o ‘outro’ sobre o qual cometemos violência] e por que estão elas a lutar”, frisa Ryan Martin. “Quando as pessoas são vistas desta forma na vida real, elas tornam-se em alguém contra quem vale a pena entrar em guerra.”
Como fazer diferente, quando chega a altura de conceber um videojogo? O principal passo, propõe, consiste em arranjar uma forma de humanizar os inimigos que enfrentamos, nem que seja mais tarde, durante o jogo, “para mostrar como a sua representação inicial foi distorcida de forma a perpetuar o conflito”. Dar um nome humano e um contexto histórico e de vida a estas personagens é uma outra solução, assim como permitir que elas conversem entre si – recorrendo a diálogos que podem ser escutados pelo jogador, dando pistas sobre quem são – ou com o próprio humano que está a controlar o protagonista. Ou, ainda, como sucede em jogos como Halo 2 ou The Last of Us, dar a opção de jogar e vivenciar o conflito através dos olhos e opções de uma personagem que antes era um adversário. Em suma: procurar esbater a linha entre amigo e inimigo, mostrando que “ela é menos fixa” do que aquilo que inicialmente julgávamos.
A sede de vingança tem de ser um ciclo interminável?
Filmes, séries, literatura, teatro, música e até lendas. A busca de vingança e a vontade de que se imponha a justiça é um denominador comum em todos os artefactos culturais que tentam contar uma história, daí que seja uma narrativa amplamente comum nos videojogos. Nada a estranhar, portanto.
Muitas das suas personagens embarcam numa senda pessoal de vingança que dá origem a mais violência, alimentando o conflito inerente à história. Ao mesmo tempo, as narrativas dos videojogos dão-nos pistas e informação sobre atos individuais e coletivos de vingança, inclusive entre diferentes fações, que foram cometidos antes de começarmos a jogar pela primeira vez.
Todavia, algo bastante diferente é quando já cometemos um ato de vingança durante uma qualquer situação do jogo, por motivos que apenas têm a ver com o que sente e pensa o ser humano, sem que isso leve a qualquer resolução do conflito principal por parte da personagem. “Na maior parte dos jogos de ação, quando o jogador morre ele ‘renasce’ pouco tempo depois, sendo levado, geralmente, a enfrentar o mesmo cenário. Isto cria a situação perfeita para que o jogador sinta aquele desejo inabalável de matar o inimigo que o derrotou na sua última vida”, apesar de existir a hipótese de não o encarar ou de se furtar à luta. Todavia, há videojogos que são concebidos de raiz para que seja quase impossível fugir ao ato de vingança. “Em Middle Earth: Shadow of Mordor e na sua sequela, esta é uma mecânica primordial, com o jogador e a personagem não jogável inimiga a procurarem, constantemente, vingança um sobre o outro”, escreve o jornalista da Superjump.
“Comunicar aos jogadores como a vingança alimenta a violência pode ser complicado, para quem desenvolve os videojogos. Frequentemente, quem escreve a narrativa faz com que o protagonista tenha uma epifania quando está prestes a vingar-se, largando a arma. Em teoria, esta pode parecer uma boa mensagem, mas creio que, muitas vezes, isto mais parece [para o jogador] uma pregação moral”, avisa, pelo que o efeito que se pretende – o de refletir sobre a vingança e onde ela nos pode levar – acaba por não acontecer.
“Uma solução, potencialmente melhor e que também é comumente empregue, é a de mostrar as consequências da vingança para o protagonista e outras personagens. Isso, geralmente, envolve mostrar aos jogadores [a nós] que a personagem principal não se livrou da sua dor ao se vingar, apenas a estendeu.”
Mas também há uma mensagem, importante, que convém salientar na narrativa: vingança leva a mais vingança, tornando-se num ciclo que se perpetua. “Outra coisa nem sempre explorada nos videojogos é a vingança coletiva, o como as suas histórias podem fazer com que os indivíduos procurem vingança, mesmo que nada tenham sofrido a nível pessoal.”
Guerra de civilizações em modo 'simplex'
Outra premissa básica de muitos videojogos, nomeadamente dos que se encaixam nos géneros de fantasia e ficção científica, é a de conflito entre diferentes raças ou culturas, sendo criado, para cada uma das partes que entra em liça na história, características que, muitas vezes, são radicalmente contrastantes, como se não existissem grandes pontes a ligar diferentes culturas.
Por exemplo, de um lado da barricada podemos ter uma fação que valoriza e procura a independência, que não gosta de mostrar fraqueza e que recorre à violência (em vez da diplomacia) quanto se sente ameaçada; e do outro lado uma civilização que mostra traços de uma cultura cosmopolita, onde o primado da lei é valorizado e a diplomacia surge como primeira opção para resolver diferendos.
Todas estas diferenças culturais são depois matizadas na própria fisionomia (no corpo) e nos traços de personalidade que exibem ao longo do jogo. E é assim que acabamos com as personagens de uma das fações a serem fisicamente mais fortes e psicologicamente mais irreverentes, sendo que os indivíduos da fação rival compensam essa pretensa ‘lacuna’ com um maior sentido de organização e uma maior capacidade estratégica, por exemplo.
Ou seja, a cultura de cada raça ou civilização, dentro de um contexto de conflito, é “geralmente apresentado nos jogos de uma forma unidimensional”, assevera Ryan Martin. “Além do mais, as formas complexas pelas quais as diferenças culturais moldam um conflito nem sempre são exploradas”. A tendência, portanto, é para simplificar e reforçar estereótipos em relação ao ‘outro’, em vez de procurar examinar diferentes realidades e que tipo de dinâmicas complexas são colocadas em marcha por causa de diferenças culturais, capazes de levar a um confronto. Se assim fosse, seria possível “ensinar aos jogadores como é que o conflito ocorre, mas também tornar o mundo do videojogo mais envolvente ou realista”, defende.
A velha história de roubar os recursos dos outros para ficar mais forte
Os videojogos de estratégia das sagas Age of Empires e Civilization estão ancorados num dos tipos de conflito mais antigos da história da humanidade: a conquista de terra e dos seus recursos naturais. No entanto, os jogos de ação também incluem estes objetivos na sua narrativa, nomeadamente quando há que tomar de assalto um local para poder ficar com determinados recursos ou bens que aí existem, essenciais para ganhar mais pontos de experiência e, assim, tornar a personagem mais forte e aumentar a probabilidade de completar o jogo com sucesso. “Enquanto jogador, eu sei que, por norma, tomo decisões nestes jogos com base naquilo que tornará a minha personagem mais forte, em vez de me guiar por aquilo que considero ser moralmente correto”, confessa o crítico da Superjump. Na prática, ele só está a dizer aquilo que quase todos os jogadores precisam mesmo de fazer, isto se querem progredir na história em que estão enredados.
Alternativa? Não fazer sempre dos recursos um pré-requisito indispensável para poder avançar, “tanto a nível narrativo como da jogabilidade”, e, além disso, “dar uma mais profunda contextualização a esses recursos” e “comunicar melhor ao jogador quais as consequências para todos os lados do conflito, positivas e negativas, de tomar para si aqueles recursos”.
“A representação que é feita do inimigo faz uma grande diferença sobre quem os jogadores humanos estão dispostos a matar”
Alguns videojogos vão demasiado longe e só se concentram nas “motivações pessoais” como o dínamo e catalisador de toda a história com que se interage, como se o resto do mundo (virtual, neste caso) fosse um mero palco para atores, acrescenta Ryan Martin. “Muitas vezes, o conflito central da trama é feito para ser uma cruzada a solo de uma personagem, sem que haja qualquer indicação dos fatores sociais que trouxeram o jogador até ao lugar a partir do qual fez determinadas escolhas.”
Regressamos, de novo, ao velho problema de simplificar e tornar unidimensional aquilo que nos rodeia num mundo virtual, distanciando-a ainda mais do mundo real.
Uma vez aqui, a questão não está em saber como é se pode desenhar e escrever a narrativa de um videojogo sobre um ou mais conflitos… sem que nele ocorra conflito. Isso é impossível. O problema, opina Ryan Martin, está mesmo na frequente tendência para “simplificar em excesso”, uma acusação que é igualmente imputada aos dispendiosos filmes de Hollywood, nomeadamente os que nos contam histórias sobre heróis fantásticos que enfrentam vilões implacáveis.
O objetivo, no caso dos grandes estúdios da indústria cinematográfica dos EUA, é a de chegar ao maior número possível de pessoas, seja em que continente for, com os executivos dos estúdios a acreditar que é preciso simplificar as histórias para atingir uma grande e variada audiência. Um fenómeno que também abrange a indústria dos videojogos, até porque, atualmente, um videojogo pode custar centenas de milhões de dólares a ser produzido e distribuído. Só em 2020, os títulos Genshin Impact, Marvel’s Avengers e Cyberpunk 2077, custaram, respetivamente, 100 milhões, 170 milhões e 316 milhões de dólares a ver a luz do dia. O videojogo mais caro de sempre, Red Dead Redemption 2, lançado em 2018, custou entre 383 milhões e 557 milhões de dólares. Todos eles têm como premissa um conflito violento.
“Por norma, os inimigos nos videojogos são escritos para ter uma única e específica motivação, a qual é perfilhada por todos e que permeia a natureza de todo este grupo. Isto, obviamente, contrasta com a realidade [...], em que as motivações pessoais e os fatores sociais interagem de formas complexas. A representação que é feita do inimigo faz uma grande diferença sobre quem os lutadores [os jogadores humanos] estão dispostos a ferir ou matar, ou se as pessoas podem ser movidas por algo mais do que simplesmente ganhar novos recursos.”