Os gasolineiros fazem-no, os portageiros fazem-no, os artistas fazem-no, o pessoal dos restaurantes fá-lo, até os jornalistas o fazem. Mas há um grupo de cidadãos que não quer que os trabalhadores dos centros comerciais trabalhem aos domingos, aos feriados ou depois das 22.00. Além da iniciativa legislativa de cidadãos encabeçada por Márcia Barbosa, membro da comissão executiva da associação sindical dos trabalhadores do comércio, escritórios e serviços (CESP), e com 20 mil subscritores, também o BE apresentou, na semana passada, um Projeto de Lei no sentido de limitar o funcionamento dos shoppings... "exceto cinemas e restauração".

O principal argumento invocado por ambos é o descanso dos trabalhadores e a perda de tempo em família, mas também argumentam com a "sobrevivência" das lojas de rua e a maior atratividade que acreditam que teriam os empregos na área.

Uma visão que os representantes dos lojistas das grandes superfícies contrariam com números e com a certeza de que encerrar no "segundo dia mais forte, que representa 18% das vendas do comércio", não apenas contraria a regra na Europa ("há 34 países com as grandes superfícies abertas ao domingo", vinca a APED) como seria uma brecha aproveitada pelo e-commerce e "um incentivo para grandes plataformas internacionais" aumentarem as suas vendas. A Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição e a Associação Portuguesa dos Centros Comerciais (APCC) alertam mesmo que "o encerramento resultaria numa perda estimada de cerca de 16.000 postos de trabalho, dos quais quase 8.000 são jovens".

Iniciativas anteriores

Em 2008, o PCP e o BE apresentaram projetos de lei com vista à regulamentação dos horários dos estabelecimentos comerciais, incluindo o encerramento aos domingos e feriados. Ambas as iniciativas foram rejeitadas na generalidade com os votos contra de PS, PSD e CDS, num total de 90% dos deputados.

Em 2020, foi apresentada a petição "Pelo encerramento dos shoppings ao domingo", que não chegou ao final do processo de apreciação na legislatura em que foi apresentada. Seria apreciada na legislatura seguinte, em 2022.

Também em 2022, os PCP e BE voltaram a apresentar projetos de lei com objetivos idênticos às iniciativas legislativas apresentas em legislaturas anteriores e mais uma vez ambas as iniciativas foram rejeitadas na generalidade, agora com os votos contra de PS, PSD, Chega e IL, representando 94% dos deputados.

"Esta é a nona tentativa para regressar ao ordenamento do comércio da década de 80", vinca a APED, que assume a surpresa de "a Assembleia voltar a pronunciar-se sobre uma matéria que  rejeitou por mais de 90% dos votos" há apenas três anos.

Os argumentos

"É necessário combater a liberalização dos horários de abertura, que tem implicações diretas na organização dos horários dos trabalhadores", lê-se agora no projeto de cidadãos, onde se defende "horários regulados" que "permitam a sobrevivência dos formatos mais pequenos e tradicionais do comércio e a continuidade das lojas no centro das cidades e vilas" ao mesmo tempo que "permitam aos trabalhadores ter condições de trabalho que harmonizem a vida profissional, com a vida familiar e social", apontando especialmente o caso das "mães trabalhadoras que se vêm confrontadas com a preocupação de encontrar lugar para os filhos à noite, sábados, domingos e feriados, quando as escolas, creches e amas não estão disponíveis".

Lembrando que até 2010 as grandes superfícies fechavam aos domingos e feriados à hora de almoço, exceto em novembro e dezembro, o BE alega, por outro lado, que a liberalização de horários e o consequente trabalho por turnos veio pôr em causa o "direito ao descanso nos dias que a generalidade das famílias portuguesas tem para fruição do seu lazer". E defende que a possibilidade de funcionarem todos os dias entre as 6.00 e as 24.00 teve "impactos profundos nas áreas do comércio e serviços, e principalmente na vida dos trabalhadores destes setores, com reflexo direto na sua vida e saúde", levando a uma explosão de shoppings de grandes grupos com os quais os pequenos comerciantes não conseguem concorrer. Assim, em nome da concorrência e de uma melhor "conciliação entre a vida familiar, pessoal e profissional" e contra a "feminização da precariedade", pede o Bloco que os shoppings voltem a fechar aos domingos e feriados, sem "redução do nível remuneratório nem qualquer alteração desfavorável das condições" para os trabalhadores. Exceção feita aos "cinemas e estabelecimentos de restauração".

Os projetos serão discutidos na Assembleia já amanhã. Mas os argumentos são descartados quer pela Associação Portuguesa de Centros Comerciais (APCC) quer pela APED, que também alertam para os impactos económicos e sociais de "uma eventual alteração, incluindo na liberdade de escolha e conveniência do consumidor".

"Qualquer restrição horária nos centros comerciais terá um impacto drástico em todo o ecossistema, uma redução da atividade económica e perda de postos de trabalho", avisa a primeira, enquanto a segunda recorda também "as atuais dinâmicas culturais, sociais e económicas do país e a legítima defesa da qualidade de vida dos cidadãos". De acordo com o Retail Report 2023 da Adyen, 76% dos consumidores preferem comprar em loja, sendo Portugal "um dos cinco países da União Europeia onde foi menor a percentagem de cidadãos que fizeram compras online". De resto, a regra pela Europa é mesmo a liberdade de horários de funcionamento e mesmo em países como Espanha e França já se discute a possiblidade de liberalizar as horas de portas abertas.

Regras do retalho na Europa
Regras do retalho na Europa créditos: Retail Report 2023

Conciliação da vida profissional e da vida familiar

Com o salário médio no setor a rondar atualmente os 1.300 euros, de acordo com o diretor-geral da APED, garantir a atratividade dos empregos no setor é uma preocupação constante da associação, para o que têm contribuído os acordos feitos entre empresas e sindicatos. "Existe um Acordo Coletivo de Trabalho no setor, negociado pelas empresas e os sindicatos mais representativos, que já regula o trabalho aos domingos e por turnos, protegendo os trabalhadores em matérias como as remunerações adicionais e os tempos de descanso."

Por outro lado, vinca a associação, "o fim de semana, juntamente com a sexta-feira, constitui uma oportunidade no mercado de trabalho para trabalhadores que querem cumular dois empregos, para trabalhadores-estudantes e para trabalhadores em part-time" e essa flexibilidade é "valorizada pelos trabalhadores".

Efeitos potenciais

  • 18% das vendas ao fim de semana. De acordo com as associações do setor, o domingo é o segundo dia mais forte no volume de vendas durante a semana e de tráfego no comércio offline, indicando uma preferência clara por compras físicas durante o fim de semana.
  • Menos 16 mil empregos. O encerramento resultaria numa perda estimada de 16.000 postos de trabalho, dos quais quase 8.000 são jovens.
  • Metade em part-time. Dos cerca de 16.000 trabalhadores dispensados, 8.849 encontra-se em regime de trabalho a tempo parcial.
  • 12,6% trabalham ao domingo. Estima-se que menos de 13 em cada 100 colaboradores no retalho fazem domingos, pelo que "acabaria por haver uma redução de emprego disponível".
  • Menos rendimento. No setor do retalho, o trabalhador é remunerado em mais 100% por trabalhar aos fins de semana e feriados, ou seja, nesses dias duplica o rendimento. As horas entre as 22.00 e as 7.00 são pagas com um bónus de 25%.

Também o argumento da concorrência é refutado pelas associações, garantindo-se que o equilíbrio concorrencial entre as grandes superfícies e o comércio tradicional já existe, na medida em que têm total liberdade de horários, ou seja, "esses estabelecimentos comerciais podem estar abertos no mesmo horário que as grandes superfícies ou até num horário mais alargado, se assim o entenderem".

"As restrições aos dias de abertura só prejudicam as empresas com lojas físicas, geradoras de emprego e atividade nas cidades, podendo assim beneficiar antes as que atuam apenas online sem a necessidade de contratar trabalhadores."

Análise APED
Análise APED

Esmagadora maioria no Parlamento não acompanha projetos

O debate sobre a imposição de limites aos horários dos shoppings tem-se repetido de tempos a tempos no plenário, promovido pelo sindicato ou levado ao Parlamento pelos partidos de extrema-esquerda. E, tal como aconteceu sempre (a última vez em 2022, quando contava com o quádruplo dos atuais subscritores), quer a iniciativa legislativa de cidadãos quer a proposta do BE, com discussão marcada para quinta-feira, estão chumbadas à partida.

Além de ter "uma posição de princípio de defesa da liberdade económica", a AD não vê com bons olhos que uma legislação geral imponha restrições ou padrões laborais que devem ser dirimidos noutros fóruns. E conforme afirmou o deputado João Vale e Azevedo na Comissão Parlamentar que ouviu o grupo de cidadãos, em março, não apenas considera que a legislação atual é equilibrada como acredita que quaisquer restrições resultariam em mais perdas do que ganhos (e isso mesmo se provou quando as houve... lá iremos). Pelo que repetirá o chumbo, tal como deve fazer o PS, indicou Hugo Costa, já que os socialistas também "são favoráveis ao funcionamento do mercado, rejeitando a imposição" de um encerramento aos domingos e feriados e "não concordam com conjunto de considerandos dessa iniciativa". Também o principal partido da oposição, o Chega, considera que a decisão deve caber às superfícies comerciais, pelo que não deverá acompanhar a proposta, mesmo porque, lembrou na mesma ocasião, aquela redução de horários significaria "perder cerca de 18 mil empregos e 16% das vendas", que são feitas aos domingos.

No mesmo sentido vai a IL. "No passado a Iniciativa Liberal votou contra propostas semelhantes. A Lei atual já prevê compensação para quem trabalha ao fim de semana e em horário noturno. Quem quer estar aberto deve ter a possibilidade de estar, da mesma forma que quem quiser fechar nesses dias/horários também pode ter essa possibilidade", confirma ao SAPO o gabinete parlamentar. Assim, mesmo que Livre, PAN e JPP (que não estiveram na audição) acompanhem BE e PCP, a proposta contará com apenas 12 votos a favor.

Restrições a shoppings causaram quebras de 40% nas vendas

O tempo era de exceção, mas serviu para comprovar os piores receios dos lojistas e das associações de comércio. Na sequência da pandemia e com a Área Metropolitana de Lisboa naturalmente mais afetada pela covid do que o resto do país, no verão de 2020, o governo de António Costa decretou uma limitação de horário para as grandes superfícies. Os centros comerciais de Lisboa eram então obrigados a fechar às 20.00, levando a uma quebra de 40% nas vendas nas lojas de shoppings — números da Associação Portuguesa de Centros Comerciais (APCC), com a Associação de Marcas de Retalho e Restauração a contabilizar perdas ainda maiores, a rondar 43% face ao verão anterior.

Já neste ano, por altura da submissão do projeto de cidadãos que quer limitar o funcionamento dos centros comerciais, a mesma associação lembrou que 16% das vendas são feitas ao domingo e que mais de um terço das compras acontece em horário pós-laboral. Na audição na Comissão Parlamentar, a diretora-geral da APCC, Carla Pinto, alertou ainda o efeito que o e-commerce está a ter em todos os lojistas físicos e sublinhou que "fechar estabelecimentos comerciais aos domingos e feriados resultaria na perda de 18 mil postos de trabalho diretos".